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NEY MATOGROSSO | SETEMBRO, 2009

Entrevista



Uma conversa franca com um dos maiores e mais performáticos cantores do Brasil sobre nudez no palco, produtores com jeito de bicheiro, perseguição da censura, festas movidas a cocaína, sexo com mulheres, com homens e com 15 pessoas ao mesmo tempo


"O seu Ney é totalmente discreto. Quase não se ouve a voz dele no prédio. Aqui ele é totalmente diferente de quando sobe no palco", sussurra, em tom de confidência, o porteiro de um prédio antigo no Leblon, na zona sul carioca, ao saber a qual andar o editor da PLAYBOY iria. Longe da exuberância que há 36 anos marca o personagem Ney Matogrosso nos palcos, o cidadão Ney de Souza Pereira surpreende os vizinhos e todos que dele se aproximam pela simplicidade e pela serenidade. Para se ter uma ideia de sua discrição, pouco depois de se mudar o cantor deu uma festa de aniversário em seu apartamento. Precavida, a vizinhança se preparou para sentir o chão tremer. No dia seguinte, e mais de too convidados depois, no entanto, ninguém tinha motivos para reclamar de nenhuma perturbação da ordem e dos bons costumes. A confusão entre o homem e o personagem não é nova. Em 1976, quando Ney apresentava o show do álbum Bandido, que incluía o sucesso Bandido Corazón, um dos marcos de sua carreira, uma pessoa na rua perguntou como ele tomava banho com todas aquelas pulseiras, penas, plumas e colares.


Nascido em Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, há 68 anos, Ney saiu de casa aos 17 anos, paradoxalmente fugindo do pai, um militar, e se alistando na Aeronáutica, de onde saiu como soldado. Ele já gostava de teatro e de música, mas acabou indo trabalhar no laboratório de anatomia patológica do Hospital de Base de Brasília, onde fez lâminas de biópsia e trabalhou com recreação para crianças em estado terminal. Ainda nos anos 1960, teve suas primeiras experiências como cantor. Participou de um coral, de um festival universitário e chegou a montar um quarteto vocal. Mas queria ser ator e, em busca desse sonho, desembarcou no Rio de Janeiro em 1966.


Chegou à cidade "como um hippie solto no mundo", como gosta de se definir, e vivia do artesanato de peças de couro para sobreviver. Vendia cintos para butiques e fazia teatro. Enquanto isso, em São Paulo, o jornalista João Ricardo e o estudante de arquitetura Gerson Conrad tentavam emplacar seu projeto musical, mas faltava uma voz. Por intermédio de uma amiga em comum, a Luli (que mais tarde coassinaria o sucesso O Vira e formaria a dupla Luli &Lucina), Ney conheceu João e foi convidado a se mudar para São Paulo e se juntar ao grupo. Depois de algum tempo de ensaio, o Secos & Molhados estreou, em dezembro de 1972, na Casa de Badalação & Tédio, anexo do Teatro Ruth Escobar, onde Ney fazia parte do elenco da peça A Viagem (e reza a lenda que ali nasceram, por acaso, os rostos pintados, quando Ney saiu da peça para o palco e esqueceu de tirar a maquiagem). A banda gravou seu hoje clássico primeiro disco [Secos & Molhados] no primeiro semestre de 1973. No segundo semestre, ele já havia vendido 1 milhão de cópias, algo inimaginável para a época a primeira tiragem da gravadora Continental foi de 1.500 cópias. No ano seguinte, depois de shows no México e num Maracanazinho lotado, a banda gravou seu segundo disco e acabou em meio a trocas de acusações e ressentimentos.


Ney seguiu solo e emplacou sucessos como Homem com H, Seu Tipo e Pro Dia Nascer Feliz. Nos anos 1990, revisitou a obra de Chico Buarque e gravou um belo disco intimista ao lado do violonista Raphael Rabello [1962-1995]. Nos últimos dois anos, Ney percorreu o Brasil com o ótimo show Inclassificáveis. Nos intervalos das apresentações, retomou a carreira de ator assumindo o papel principal em Luz nas Trevas - A Revolta de Luz Vermelha, filme de Helena Ignez e Ícaro Martins, concebido como uma sequência de O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogerio Sganzerla.


Ney acaba de ganhar o Prêmio Shell 2009, mais um reconhecimento à consistência de seu trabalho. E está lançando novo disco, Beijo Bandido, com clássicos modernos da música brasileira. Para refletir sobre passado, presente e futuro, Ney recebeu o editor Jardel Sebba para esta segunda entrevista à PLAYBOY [a primeira foi em maio de 1981] em duas longas conversas. A primeira num quarto de hotel, em São Paulo, e a segunda em seu amplo apartamento no Rio. Simpático, enérgico e passional, Ney é de uma franqueza arrebatadora. Como raríssimos artistas, é capaz de falar de seus erros, medos, anseios, raivas, alegrias e da própria vida sem máscaras.


PLAYBOY Se o casal Brangelina [Brad Pitt e Angelina Jolie] vier na sua direção, para que lado você corre?


NEY MATOGROSSO Eu quero os dois, claro! Pode ser que lá nos finalmentes vá pender para um lado ou para o outro. Mas acho os dois deliciosos.


PLAYBOY Contaram-me que, quando o Secos & Molhados foi se apresentar no Fantástico, você se engraçou com a Sandra Bréa e vocês consumaram o ato. É verdade?


NEY [Risos.] Não. Eu me engracei com ela, mas ela me esnobou. Ela era a apresentadora do Fantástico com o [Luiz Carlos] Miéle, e estávamos prestes a entrar em cena quando ela levantou a saia e começou a arrumar alguma coisa, não sei se era uma cinta-liga. Fiquei desavergonhadamente olhando pra ela, que ficou puta e me deu uma esnobada. Eu pensei: "Ah, bobona..." Mas não rolou. Ela me esnobou!


PLAYBOY As pessoas falam dos seus relacionamentos com homens, mas você sempre diz que transa na verdade com pessoas...


NEY [Interrompendo.] Sim, transei com muitas mulheres. Mas é muito mais difícil as pessoas aceitarem que eu transo com mulheres do que com homens. Os próprios gays dizem que isso não existe. Existe! Hoje em dia não, que estou mais devagar em todos os sentidos, mas teve momentos em que transava com homem e com mulher com a mesma facilidade.


Transei com muitas mulheres. E é mais difícil aceitarem que eu transo com mulheres do que com homens. Os gays dizem que isso não existe. Existe!

PLAYBOY Qual fui a última vez que você esteve com uma mulher?


NEY Faz tempo. Foi na década de 1980. Depois passei por muito perrengue, né? Tive um grande amor que morreu, e não havia espaço para envolvimento. Fiquei 13 anos com ele. Depois tudo o que aconteceu foi completamente inesperado. Não sou uma pessoa que caça, acho estranho. Eu não sei como abordar ninguém. Eu não chego num lugar e dou em cima de alguém, eu dou bola. Se perceber que o caminho está aberto, me aproximo.


PLAYBOY Você já disse que sofreu assédio de mulheres loucas e liberadas. Algumas famosas também?


NEY Sim.


PLAYBOY Você comeu alguma capa da PLAYBOY?


NEY Não, mas várias se enroscavam em mim igual a cobras... Mas eu não gosto dessas, dessas mulheres serpenteantes. Mas, se tivesse comido, também não diria...


PLAYBOY Na loucura dos anos 1970, com quantas pessoas você já acordou?


NEY Já fui pra cama com mais de 15 várias vezes. Mas você acha que alguém trepa em 15 pessoas?


PLAYBOY Eu, sinceramente, não sei...


NEY Ninguém trepa! Fica naquilo, você deita em cima daquele topo, aí vai caindo lá pra baixo, aquele monte de gente em cima de você, aí você sai e vai lá pra cima, e fica nisso. Se for transas, tem de sair dali. Ali é só a sacanagem, sabe? Sexo não precisa ser necessariamente a dois, mas com 15 é impossível, você não se concentra. Era muito mais uma brincadeira do que sexo. Mas estou falando dos anos 1970, de outra mentalidade.


PLAYBOY As mulheres se espantam quando descobrem que você tem tesão nelas e quer comê-las?


NEY Não, mas tem muita mulher que quer, e eu também não sou obrigado a corresponder a todas, né? Eu não tenho de provar nada, não tenho insegurança em relação a isso. Não tenho nenhum impedimento técnico. Fico pensando às vezes que é comodismo meu transar com homem. Por entender melhor. Porque eu não entendo cabeça de mulher. Você entende?


PLAYBOY Não...


NEY Eu entendo até uma parte. Mas aí parece que faz uma curva por trás e ali tem uma tocaia que você não sabe o que vai acontecer. Essa é a impressão que tenho com as mulheres. Tenho medo daquela curva. Não sei o que pode vir. As mulheres com quem transei, algumas bastante loucas e liberadas, todas queriam casar. E eu tenho horror a casamento, a qualquer compromisso formalizado. Elas diziam que éramos todos livres e tal, mas de repente lá vinha a tal curva! [Risos.] Era comum a todas elas.


PLAYBOY Seu namoro mais famoso foi com Cazuza [cantor e compositor, 1958-1990]. Ele já era um cara que queria cantar quando vocês se conheceram?


NEY Não, ele cantava comigo, no meu carro. Cartola, Dolores Duran, músicas de fossa. Nunca percebi nele a intenção de ser cantor. Ele nunca me falou nada. O que eu percebia era uma necessidade de realização, mas não podia imaginá-lo como cantor ou compositor.


PLAYBOY Vocês se mantiveram próximos nos depois do fim do romance?


NEY O tempo todo. A gente nunca se afastou, inclusive na reta final. O processo foi doloroso porque não foi só o Cazuza que eu perdi por causa da aids. Em um ano foram 13 pessoas. Quando essa história passou, eu olhava pro lado e pensava que não tinha mais com quem conversar da minha vida. O Cazuza estava nesse contexto, nessa quantidade de perdas praticamente diárias. Morriam três por semana, sabe, era uma loucura, e a gente não tinha nenhuma perspectiva de que aquilo fosse melhorar, que fosse chegar aonde chegou, de as pessoas estarem tomando remédios e vivendo como se não estivessem doentes.


PLAYBOY Quando você fez exames de aids, depois de ter se relacionado com pessoas que tinham a doença, a perspectiva da morte te assustava?


NEY Te confesso que fiz esperando que desse positivo com muita tranquilidade, dentro do que é possível ter tranquilidade com essa perspectiva.


PLAYBOY Te assustava mais o sofrimento ou a morte?


NEY O sofrimento. Eu vi muitos sofrerem. Vi e cuidei de muitos. A degradação física. Mas, por um lado, nunca imaginei que um organismo humano pudesse resistir tanto. Vi pessoas que tiveram quatro, cinco doenças fatais, uma atrás da outra, e se mantiveram. Isso me impressionou. Foi mais uma surpresa que um alívio. No meu primeiro exame, duvidei. Achei que podiam ter errado. Aí fiz de novo e continuei fazendo, mas, claro, comecei a usar camisinha.


PLAYBOY Você sentia ciúme do Cazuza, mesmo ele sendo apenas seu amigo?


NEY Não, não tenho ciúme de amigo. De jeito nenhum. Eu tive um namorado depois, e o Cazuza vivia me dizendo: "Esse seu namorado é uma gracinha". E eu falei: "Sirva-se". E ele se serviu. [Risos.] Não sei se ele tinha ciúme de mim. Ele era uma pessoa ciumenta, mas a gente só teve uma briga, na qual a gente decidiu que era o fim da história. Mas nunca nos afastamos. Três dias depois do rompimento, a gente já estava no telefone às gargalhadas.


PLAYBOY Muita gente já se frustrou querendo transar com o Ney Matogrosso e só encontrou o Ney de Souza Pereira?


NEY Sim. Teve até um cara que queria transar comigo fantasiado! Ele queria que eu saísse do show, fosse para o camarim e ele entrasse comigo. E eu disse não. Primeiro, não vai entrar nesse camarim e, depois, não vai me tocar. Não tem essa, não é para isso.


Eu adorava ir ao programa dos Trapalhões. Não acho que eles estavam debochando de mim. Eu também ria na cara deles. Não sou do tipo 'não-me-toque'

PLAYBOY Pelo elemento sexual no palco, as pessoas esperam que você seja uma máquina sexual fora dele?


NEY Sim, mas eu sempre fui muito sexualizado fora do palco. Entendo o que você está falando, e eu notei isso mais em mulheres do que em homens. Elas esperavam que eu fosse furioso pra cima delas, só que eu sou o extremo oposto. Eu gosto de carinho. E elas não entendiam.


PLAYBOY Quando vê hoje cantoras como Ana Carolina na capa da revista VEJA assumindo sua bissexualidade, tem um dedo seu ali?


NEY Especificamente nessa coisa de Ana Carolina, o que tem é Maria Bethânia e Gal Costa, que foram precursoras de uma atitude clara diante do Brasil. Foram as primeiras cantoras que vi nuas em capa de revista quando estar nu numa capa de revista era interessante. Eu liberei pros homens. Não existia liberdade nenhuma para esse tipo de coisa. Pelo contrário, as pessoas só serviam de deboche e chacota.


PLAYBOY Chacotas como a que Renato Aragão fazia com você em Os Trapalhões?


NEY Mas eu nunca achei aquilo deboche nem chacota. Eu adorava fazer.


PLAYBOY Mas ele não estava rindo da sua cara?


NEY E eu rindo da dele. Eu tinha prazer de ir lá. Fui muitas vezes. Sempre gostei e sempre me diverti muito. Não achava que ele estivesse debochando de mim. Eu não sou do tipo "não-me-toque". Mas soube que tinha adesivo de carro em São Paulo que dizia: "Mate um Paulo Ricardo hoje e evite um Ney Matogrosso amanhã". Isso, sim, era pesado. O Jornal do Brasil, por exemplo, durante dois anos nem escreveu meu nome. Dizia que eu era um travesti, e eles não publicavam nome de travesti. E eu sempre fui homem, do sexo masculino, peito peludo, perna cabeluda. Gosto de ser do sexo masculino. Em nenhum momento da minha vida eu quis ser mulher.


PLAYBOY O Secos & Molhados teve uma carreira muito breve [entre 1972 e 1974]. Vocês nunca chegaram a ser uma família?


NEY Não. Que família? Que família? Eu tinha minha vida, eles tinham a deles. Era uma convivência profissional. Éramos colegas, tentamos ser amigos. Consegui ser mais amigo do Gerson [Conrad]. Éramos íntimos, tínhamos uma convivência, mas como eu poderia ser amigo de alguém de quem desconfiava? Comecei a desconfiar muito cedo, quando o João [Ricardo] foi me conhecer no Rio, na casa da Luli, uma amiga em comum, e lá eu o vi tratá-la muito mal. E a Luli me deu de bandeja pra ele. Achei estranho ele tratá-la mal daquela maneira. Eles eram amigos. Aí ele me convidou para vir para São Paulo. Eu topei e, quando cheguei, fui direto pra casa dele. Quando cheguei, ele estava dormindo. Sentei na beira da cama dele e disse: "Só vou te falar uma coisa: nunca faça comigo o que eu vi você fazendo com a Luli, porque você só fará uma única vez. Você não terá uma segunda chance, eu não aceito isso". Ele então teve uma enxaqueca e nem levantou da cama. Ele sabia, desde o primeiro dia, que eu estava sacando ele. Nem quem dorme comigo vai me tratar mal, não tem isso.


PLAYBOY É verdade que no início da sua carreira musical, em 1972, você vivia de artesanato?


NEY Sim. Vivi por um bom tempo disso em São Paulo. Eu fazia teatro infantil de manhã, mas tinha momentos em que não me pagavam, e eu passava perrengue. Alugava dois cômodos na Bela Vista, na casa de uns espanhóis. Num eu trabalhava; no outro, dormia. Uma vez fui fazer a peça pela manhã, dei dois passos para trás e caí. Quando vi, não tinha tropeçado em nada. Aí percebi que havia dois ou três dias eu não comia nada! Mas sabe o que me ocorreu naquele momento? Eu já estava na história do Secos & Molhados e pensei: "Estou sendo testado para ver se vou desistir. Quem está me derrubando está me testando. Pois não desistirei! Comendo ou não, tendo dinheiro ou não, vou fazer, vou realizar". Foi muito louco porque, assim que levantei, pensei isso.


PLAYBOY Passou fome então?


NEY Sim, mas não era um coitadinho. Aquilo era uma opção de vida. Eu poderia estar trabalhando num emprego que o meu pai tinha me oferecido, ganhando muito bem, e não quis. Ele não entendia uma coisa: a minha vida era pobre, mas eu era felicíssimo. Tinha uma liberdade que não há dinheiro que pague. Era responsável por mim, não dependia de ninguém.


PLAYBOY E, quando aconteceu aquele sucesso repentino e fenomenal do Secos & Molhados, isso não te encantou?


NEY Não. Nunca considerei que nada que tenha conseguido fosse definitivo. Em cada coisa que vou fazer, eu me empenho da mesma maneira como se fosse a primeira vez. Nunca acreditei no sucesso. Quando aconteceu, eu já tinha 30 anos, sabia o que me interessava na vida. Nunca subiu à minha cabeça. Dinheiro nunca foi a minha meta. Eu era um ser humano que nunca havia desejado um automóvel na vida. Comprei um por precisar estar em muitos lugares ao mesmo tempo, mas pensava: "O que vou fazer com um automóvel?" Eu nunca havia pensado em ter um. Tinha uma sacola nas minhas costas, e tudo o que era meu cabia ali.


PLAYBOY O Secos & Molhados despontou de forma exuberante no meio da ditadura militar. Você teve problemas com o governo?


NEY Eu recebia recadinhos dizendo que estava exagerando. Recentemente fiquei sabendo que um cantor daquela época ouviu na censura que eu não tinha mais jeito, que comigo era "só matando". Isso foi em 1973. Na primeira vez que aparecemos na televisão aqui em São Paulo, teve um inquérito, porque a censura era dentro da televisão. Quando fizemos o show no Rio, a censora ficava no meu camarim a noite toda. E eu ficava nu provocando, zanzando pra lá e pra cá. E ela fingia que nada estava acontecendo.


Em 1973, recebia recadinhos dizendo que eu estava exagerando. Um colega chegou a ouvir na censura que eu não tinha mais jeito. Que era só matando

PLAYBOY Qual era o teor desses recados?


NEY Disseram que eu não podia usar rabo de cavalo porque era coisa de mulher. Engraçado é que, anos depois, a gente via aqueles yuppies todos de rabinho de cavalo e era normal, mas a censura dizia que eu não podia usar. Aí expliquei que era porque eu não queria valorizar os cabelos. Então perguntaram do olho pintado, porque, para eles, quem pintava o olho era mulher. Também disseram que eu não podia requebrar. Sugeri que não mostrassem meus quadris, só a minha boca. Foi aí que veio a frase: "Mas e esse olhar?" Bom, aí eu me fingi de morto. Eu sabia qual era esse olhar. Existia uma regra naquela época de que artista não podia olhar pra câmera. Quando fomos pela primeira vez à TV Globo, eu olhei pra câmera no ensaio e uma voz surgiu dizendo que era proibido. "É proibido, mas eu vou olhar! ", decidi. E olhei. Naquela apresentação e sempre.


PLAYBOY Você chegou a se sentir ameaçado de forma mais séria?


NEY Sim, tinha gente que me seguia. Na época do Secos & Molhados, eu morava num sobrado e, quando olhava pelas frestas da janela, sempre tinha um carro parado na porta com uns sujeitos olhando, apontando e conversando. Em São Paulo tinha um cara que aparecia toda noite dizendo que trabalhava no DOI-Codi. Ele falava que tinham avisado que eu sofreria um atentado e que ele tinha sido encarregado de cuidar da minha segurança. Ele queria porque queria me levar em casa, mas eu sempre fugia. Um dia, eu estava saindo do teatro e ele disse: "Eu tenho que te levar em casa". Peguei um amigo pelo braço e fiz com que ele entrasse comigo no carro desse cara. Na esquina de casa, falei que ele podia me liberar porque era naquela rua que eu morava. Olha que ingenuidade minha. Obviamente ele sabia não só onde eu morava, mas tudo a meu respeito.


PLAYBOY Você acha que seu amigo salvou sua vida?


NEY Não sei, não posso afirmar. Talvez tenha me salvo de um psicopata, que podia nem ser do DOI-Codi.


PLAYBOY Quando você saiu de casa, aos 17 anos, seu pai te agrediu fisicamente e você o agrediu de volta. Você bateu em outras pessoas além dele?


NEY Uma única vez, num colega na Aeronáutica. Saímos na porrada três vezes em um ano. Eu não gostava dele, e ele não gostava de mim, então tudo era pretexto. O cara me roubou, mexeu nas minhas coisas. Mas foi a única vez.


PLAYBOY Mas você é bom de briga?


NEY Não sou bom de briga, mas não tenho medo. Uma pessoa não vai ficar me desacatando, não sou um cordeirinho. Eu sou de paz, mas não sou idiota.


PLAYBOY Havia alguma chance de você ser um bom militar?


NEY Claro que não. Aquilo não me interessava. Foi um pretexto, um rito de passagem. Eu era adolescente e, é bom lembrar, estávamos em 1959, quando não existia informação nem televisão em Mato Grosso. Saí do núcleo familiar e fui conviver com um mundo exclusivamente masculino, como um leão na selva, com todo mundo querendo delimitar território. E você tem de ter alguns confrontos para delimitar os seus.


PLAYBOY Você consumiu cocaína, mas eu já o vi repudiando sua relação com a droga. Teve problemas com ela?


NEY Nunca tive problema com ela, apenas entendi que ela era mentirosa. Ela te deixava numa situação em que você se achava o máximo, brilhante e, quando aquilo passava, as ideias brilhantes não passavam de bobagens. Não se mantinham. Tive relação com a cocaína durante pouquíssimo tempo porque nunca gostei de nada que me liga. Gosto de coisas que me deixem sereno, relaxado. Eu já sou muito excitado na minha cabeça.


PLAYBOY Ao longo dos anos 1980, era complicado ser artista e não usar cocaína?


NEY Chegou um momento em que eu ia a festas em que todo mundo cheirava. Nos anos 1980, o sinal fechava no Rio e as pessoas batiam uma carreira, cheiravam e partiam com o carro. Eu tinha amigos que cheiravam e não ia deixar de ser amigo deles por causa disso. Eu chegava às festas, com aquele monte de gente enlouquecida de cocaína, e me oferecia para bater carreiras para eles. Ficava lá batendo para aqueles malucos, e eles não acreditavam que eu não cheirava. Eu virava a noite junto, só que careta.


PLAYBOY O mais inacreditável não é nem você não cheirar com eles, e sim já ter cheirado e não ter recaídas. Era porque não gostava. Hoje não gosto do convívio [com quem usa cocaína] porque as pessoas ficam estranhas, aceleradas, cheias de ideias.


PLAYBOY Com a maconha a relação era melhor?


NEY Era uma droga que me deixava reflexivo, introspectivo, numa boa. Mas teve uma época em que rejeitei porque, quando eu fumava, acontecia de, por exemplo, você me dizer alguma coisa e a minha cabeça martelar: "Ele está querendo te dizer outra coisa, não é o que ele está falando". Isso foi virando paranoia. Era como se eu tivesse um intérprete dentro de mim. Fumar pra ficar ouvindo conversa paralela? Cortei. Nunca fui dependente de nada, só de remédio para dormir.


PLAYBOY Ainda toma remédio para dormir?


NEY Não. Hoje tomo um ansiolítico, uma coisa leve. Eu tomava barbitúrico. Cheguei num ponto em que tomava três diferentes e dormia duas horas por noite. Quando aconteceu isso, na década de 1980, eu cortei e nunca mais tomei. Quase pirei, fiquei três dias acordado. Foi num Carnaval em que me convidaram para desfilar. Quando vinha a escola, tudo era exagerado. A cor era insuportável, o som, o movimento, tudo. Achei que fosse ficar louco.


Tomei ácido umas 20 vezes e parei. Nunca havia tido experiência num. Há uns oito anos me convidaram para tomar de novo. Topei. Foi uma merda

PLAYBOY Você ainda fuma maconha?


NEY Esporadicamente, e bota esporadicamente nisso. Não sou maconheiro e não entendo quem fuma cinco, dez baseados por dia. A maconha sempre me foi muito reveladora porque usei dosadamente. Ela sempre me mostrou aspectos de mim. Eu entendo coisas, fico mais sensível, até a respeito das pessoas, mas não vou afirmar que uso. Não gosto [de fumar] socialmente, não gosto de ter de conversar. Gosto de fumar e ver beija-flor na cachoeira, sabe?


PLAYBOY Na época em que o ácido era muito forte, você teve alguma bad trip?


NEY Era forte, mas era muito bom. Nunca tive experiência ruim com ácido. Tomei umas 20 vezes e parei. Há uns oito anos me chamaram para tomar, avisaram que não era igual, mas tomei. Era uma merda, pura anfetamina. Não abriu porta de percepção nenhuma, não revelou nada, uma porcaria.


PLAYBOY Não foi você que ficou mais velho?


NEY Não, é que a droga é ruim, é malhada. Antes de eu nascer [risos], quando eu tomava lá na década de 1970, o ácido abria as portas de percepção. Era diferente.


PLAYBOY Você se lembra dessas experiências?


NEY Lembro da primeira vez que tomei. Fui pra Búzios, vesti uma roupinha branca e fiquei na praia sempre fiz isso pra tomar ácido. Quando aquilo bateu, compreendi o valor de todas as coisas, entendi que eu não valia mais do que o grão de areia daquela praia, do que aquela onda que quebrava. Chorei muito quando entendi isso.


PLAYBOY Depois de experimentar de tudo, não fica tudo muito chato depois?


NEY Não, eu não acho chato viver. E não acho que para a vida ser engraçada você precise ter drogas. Sempre usei drogas de uma maneira tão especial e tão diferente dos outros que não sou nem um exemplo. Para mim havia ritual, sempre busquei alguma coisa, autoconhecimento, compreensão de mim e do mundo. Nunca tomei ácido para ir dançar numa festa. Não entendo. Não bebo. Já tomei porre, mas não gosto. Gosto de vinho com comida, não de álcool puro.


PLAYBOY Qual era o problema da onda?


NEY Não gosto de perder o controle, sou controlador. Nem maconha nem ácido me faziam perder o controle. Para falar a verdade, nem álcool. A única coisa com a qual eu perdi o controle foi lança-perfume. Botei no nariz e, quando acordei, estava no chão. Não sei como fui parar lá. Foi a primeira e única vez.


PLAYBOY Então o problema não era tanto o álcool...


NEY É , mas eu me lembro de uma experiência com o álcool que a última coisa que estava fazendo era tomando cerveja, que não gosto. Aí eles me convidaram para tomar Steinhäger. Todo mundo pegava um copinho e virava. Acordei nu na rua, debaixo de um cano jorrando água. Depois disso, nem Steinhäger nem nada, pensei. Mas, há uns quatro anos, eu estava com uns amigos numa boate, com todo mundo bebendo. E tomei vodca. Fiquei completamente louco, mas não gosto. Não mesmo.


PLAYBOY Vamos falar de música. Seu novo disco, Beijo Bandido, revisita clássicos da canção popular. Isso é sinal de que não há renovação na música brasileira?


NEY Esse projeto nasceu quando a Lucélia Santos me convidou para participar de um show em homenagem ao aniversário de morte do Chico Mendes. Imaginei fazer algo com clássicos modernos da música brasileira. Mas eu também gravei, por exemplo, um compositor de Maceió que me deu um disco quando fiz show lá, o Júnior Almeida. Não há estagnação. A estagnação não está nas pessoas, mas nos atravessadores, nas rádios, nas gravadoras. Essa gente não presta atenção. Já mandei discos de artistas novos para gravadoras, e eles não se interessam, não arriscam. São conservadores.


PLAYBOY Você costuma ser colocado numa linha de nobreza da música brasileira. O Prêmio Shell de Música, que você ganhou recentemente, é uma confirmação disso. Incomoda ser considerado um medalhão?


NEY Acho que o prêmio consolida a minha posição como um artista da música brasileira, mas não gosto da palavra "medalhão". Acho pejorativa. Sugere que um medalhão já chegou ao ponto máximo da carreira, que não tem mais o que conquistar. O prêmio, pra mim, tem a ver com a minha carreira inteira. É um reconhecimento pelos serviços prestados à música, mais do que refletir um momento específico. O curioso é que eu nem sabia que estava sendo cogitado para esse prêmio, nem sei como isso funciona.


PLAYBOY Mas essa reverência não incomoda um ex-hippie em alguns momentos?


NEY Não, pelo contrário. Consegui, nesses 35 anos de carreira, autonomia artística. Quando gravei Inclassificáveis, o pessoal da gravadora nem sabia do que se tratava. Só souberam quando ficou pronto. E assim foram todos os outros discos. Só convido para ouvir quando fica pronto. A partir do momento em que decidi que tomaria aquele rumo artístico, nunca interferiram na minha obra. Quem tentou não conseguiu. Quando saí da Polygram e fui para a CBS [atual Sony], nos anos 1980, tinha feito [o disco] O Pescador de Pérolas e saí porque eles disseram que não era comercial. Quando a Sony me procurou, eu disse que só assinaria se lançassem o disco. Eles lançaram, mas não confiaram. Não investiram. Foi aí que eu vi que tinha de fazer o meu caminho. Foi aí que entendi aquela gente toda coberta de ouro, que mais parecia um bando de bicheiros, querendo opinar em tudo.


A estagnação não está nos artistas, mas nos atravessadores, nas rádios, nas gravadoras. Essa gente não presta atenção. Não se interessa, não arrisca

PLAYBOY Essa gente que você diz é a direção da gravadora?


NEY Sim. Direção, direção artística, direção não sei do quê. Eles usavam ouro demais pro meu gosto. E achando que entendiam do riscado musicalmente, que sabiam o que era e o que não era. Não sabiam, como ninguém nunca soube, como não sabem hoje. Nada é previsível como eles sempre imaginaram, não é. Se fosse, O Pescador de Pérolas não teria feito o sucesso que fez. Se fosse, o Secos & Molhados não teria feito sucesso.


PLAYBOY Você sempre falou mal das gravadoras multinacionais, mas nunca deixou de ter uma por trás dos seus trabalhos...


NEY Sim, mas porque eu sempre fui atraente, apesar de falar mal deles. Falar mal, não, falara verdade. Dentro da CBS era assim: eu gravava um disco e mandava pra Nova York, pra puta que o pariu, pra casa do caralho, gastava um dinheiro pra gravar, pra mixar, lançava o disco, e eles não faziam nada. Eu não entendia. Eu dizia lá dentro da gravadora: "Essa gente aqui não vale nada". Era dose para eles engolirem, mas não me liberavam. Como eu devia ainda um disco para eles, fiz um show, mas não cantei nenhuma música daquele disco. Afinal, se eles não trabalhavam, eu é que não ia trabalhar por eles. Pedi desculpas aos meus colegas que haviam me dado repertório, mas não ia cantar nenhuma daquelas músicas porque aquela gravadora não merecia que eu trabalhasse por eles. Foi a única vez que tive entrevero mesmo com gravadora. Nas outras eu vi a maldade, não gostei e pedi pra sair fora.


PLAYBOY Você tirava a roupa no palco em 1977 e voltou a fazê-lo recentemente no show do disco Inclassificáveis. A idade, 68 anos, não te fez ter medo do ridículo?


NEY É diferente, hoje estou vestido do pé ao pescoço. Aquilo que eu uso no palco é uma roupa que induz à nudez porque é cor da pele. Sou muito crítico. Não esperaria que me dissessem que estou fazendo papel ridículo. Como acho que está tudo certo comigo, que ainda posso fazer isso, eu faço, o que não significa que vá passar a vida inteira fazendo. Tive medo do ridículo antes de fazer 60 anos. Foi um momento de questionamento, e talvez tenha sido o único na minha vida. Não tive isso aos 30 nem aos 40, mas, quando ia fazer 60, fiquei meio inseguro. Eu não sabia se podia usar aquela roupa, se tinha de mudar a maneira de me vestir, de me comportar, porque é uma idade muito emblemática. Mas entendi que nada tinha mudado. Eu era a mesma pessoa.


PLAYBOY A idade não pesa na sua libido?


NEY Não. Medi os meus hormônios, e eles estão diminuindo, é normal. Mas o tesão continua o mesmo. Adoro trepar.


POR JARDEL SEBBA

FOTOS MARCELO NADDEO



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