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O PECADO ORIGINAL

Ficção



De gorila-bebê a líder revolucionário:

a fulminante trajetória de Juan, o único


Por NELSON MOTTA


Desde que defendeu sua tese de doutorado (Antropologia, Leningrado), o dr. Solomon Markov dedicou sua vida à criação da prova viva das teorias que o fizeram um proscrito pelo Instituto de Ciências. Hábitos, condicionamentos, dados culturais influindo no comportamento e na forma física das espécies. Condições climáticas, adaptabilidade, qualidade da alimentação, hormônios.


Além de um requintado double de chef cordon-bleu e gastrônomo conhecido, o dr. Solomon era bastante audacioso.


Isolado na selva tropical com financiamento do Guggenheim Institute, Markov iniciou o trabalho de campo de sua tese selecionando um gorila-bebê de excelente formação óssea e muscular. Passada a fase de amamentação, de infindáveis mamadeiras de leite em pó, Markov passou a alimentar seu gorila experimental da mesma forma que a si mesmo: dentro dos requintes e preciosismos de um chef cordon-bleu especializado em cozinha francesa.


Nos primeiros dias, ficavam abandonados no chão da gaiola os médaillons, revirados os potes de sauce bearnaise e os soufflés, e estraçalhadas as garrafas de Château Lafitte. Só os cálices de Grand Marnier despertavam a atenção e a fome do gorila-bebê, batizado de Juan por Markov.


Pressionado pela fome crescente, Juan teve que acostumar seu paladar aos manjares ocidentais, comendo e bebendo tudo o que Markov colocava dentro da gaiola. Nos meses seguintes, Markov já não se preocupava com a alimentação de Juan, perfeitamente adaptado à alimentação absolutamente estranha aos de sua espécie. Markov sabia que Juan não só gostava dos requintados soupers que lhe eram oferecidos, com já não seria capaz de se adaptar à alimentação básica dos gorilas. Nem sequer sobreviveria com ela. Sem os hormônios e vitaminas de Markov, sem seu tempero inigualável.


A alimentação era o ponto fundamental das teses de Markov sobre fatores importantes nas espécies.


Com a total adaptação de Juan a sua nova nutrição, Markov notou que o animal ganhara extraordinária docilidade. E passou a mantê-lo livre pela casa e arredores, sem qualquer temor quanto a uma possível fuga: Juan voltaria sempre para o lugar onde encontraria a única alimentação que seu organismo admitia. Mais de 200 km em estrada de terra separavam a fazenda do vilarejo mais próximo.


Com o passar do tempo, mais que a distância e a alimentação, a amizade por Markov não criava qualquer idéia de fuga em Juan. Ainda pequeno, sentado sobre almofadas, ele comia à mesa com Solomon. Saboreando com igual prazer os mesmos e finos pratos preparados com carinho e sabedoria cada vez maiores pelo cientista.


De forma sensível, o comportamento de Juan mudava a cada dia. Tentou imitar Markov no manejo de garfo e faca na mesa, e em poucos dias comia com perfeição, sem que Markov tivesse feito qualquer movimento para induzi-lo à aprendizagem; para maior brilhantismo do projeto científico, era mais rigoroso apenas atender os impulsos que o instinto do animal determinasse.


A presença de Juan pela casa e pelos arredores, observando a atividade de Markov, caminhando a seu lado, se interessando por plantas, animais, aparelhos, objetos, móveis, roupas, encantava os dias do cientista, dava-lhe nova alegria.


O próprio Juan indicou para Markov o que ele já havia notado: que os pêlos estavam rareando nas costas e nas coxas, e ele estava caminhando sensivelmente mais ereto. Pouco tempo depois, o cientista ganhava um precioso auxiliar nas tarefas da casa. E se entendiam numa linguagem muda porém muito expressiva; suficiente para uma perfeita compreensão entre os dois.


O "CHEFE" ENTROU EM PÂNICO: ERAM IRRESISTÍVEIS AS BANANAS DO EMBAIXADOR

Dois anos depois, Juan já andava totalmente ereto. Sua pele era escura, lisa e com pêlos somente onde os homens o tinham. Uma densa barba escura cobria parte de seu rosto, onde apareciam dois olhos amarelados, grandes e brilhantes. Os sons começavam a se organizar em sua garganta de voz grave e forte. A primeira palavra que conseguiu pronunciar foi "Markov", o que emocionou demais o pesquisador. Depois iniciou a fascinante caminhada pelos sons que designavam os objetos da casa. E as sensações. E os sentimentos.


Até se expressar com correção absoluta num espanhol de sotaque russo e sonoridades imprevistas. Com uma voz grave e forte.


A alfabetização de Juan foi rápida. Fazia contas, lia romances de aventuras, perguntava sem parar a Markov sobre todas as coisas e seu significado.


Quase adulto, Juan viu seu nariz ir aos poucos se afilando ao mesmo tempo que o maxilar encerrava seu processo de atrofia, se fixando em dimensões normais para um rapaz fortíssimo.


Juan demonstrava, para orgulho de Markov, generosidade, inteligência, paciência e disciplina; tudo sob a regência de seu intocado instinto natural. A memória da infância era nebulosa para Juan e ele só se lembrava com nitidez e afeto da figura de Markov cuidando para que ele vivesse cada vez melhor.


Uma tarde, Juan e Markov entraram no velho jipe e enfrentaram os duzentos quilômetros de terra até o povoado. Na casa de Mariquinha Bala, a única prostituta do vilarejo e da região, Juan saiu do quarto um pouco perturbado, mas fez Markov prometer-lhe que voltariam na semana seguinte. Logo que saíram, Mariquinha confessou a sua mãe Zoraide que nunca tinha visto nada igual em seus experimentados trinta anos de profissão. Capengava.


Numa das idas à casa de Mariquinha, sozinho com o jipe, Juan teve um pressentimento. Voltou para a fazenda e viu diversos soldados cercando a casa. Escondido no mato, esperou que eles partissem para procurar Markov.


Diante do corpo baleado e agonizante de seu criador, ele chorou, se desesperou e ficou sabendo que Markov tinha sido tomado por simpatizante de guerrilheiros.


Sem Markov seria penoso para Juan viver sozinho no meio da selva. E, sobretudo, havia nele uma curiosidade enorme, uma vontade de conhecer e experimentar tudo. Do povoado até Santo Domingo foram .alguns dias de estrada e muita excitação.


De empregado na fábrica até dono da loja de livros não se passou muito tempo para Juan Markov, chamado "Cara de Macaco". Até que um dia estourou a revolução contra o governo do ditador Domingues. Mas também responsável pela morte de Markov, na lembrança de ódio de Juan.


Como um dos líderes da rebelião vitoriosa, "Cara de Macaco" viu o poder se encaminhar naturalmente para suas mãos e passou a exercê-lo com rigor e inédito senso de justiça no país.


Antes da retirada definitiva da Embaixada Americana de Santo Domingo, o embaixador solicitou e foi atendido em audiência por Juan Markov. Pouco depois de iniciada a negociação, um dos assessores do embaixador abriu a caixa e entregou a Markov um presente como prova de amizade de seu país: uma fruteira de prata, com as bananas mais maduras e cheirosas da American Fruit. Um calafrio percorreu a espinha de Juan mas ele ainda conseguiu controlar-se por instantes antes de se entregar totalmente ao pânico, com os maxilares travados, os olhos injetados, trêmulo, perdendo a consciência. Tudo o levava irresistivelmente em direção à fruteira, sem que sua vontade pudesse conter os impulsos de seu instinto. Devorou em segundos a primeira banana e logo depois outra, e mais outra, e todo o cacho. O embaixador encolheu-se amedrontado no sofá quando Juan começou a guinchar e rosnar, jogando a fruteira vazia longe. Após rasgar com fúria seu uniforme de campanha, Juan começou a arrastar-se pelo chão, com seus braços pendendo ao longo do corpo, enquanto os pêlos cresciam pelo corpo inteiro.


Pendurado no lustre e guinchando sem parar, foi abatido a tiros por um oficial da guarda palaciana, que ficou sabendo pelo embaixador e seus assessores que "Juan Markov fugira pela janela, sem que ninguém soubesse os motivos. Talvez com medo do gorila".


Da mesma forma, ninguém ficou sabendo que o "assessor do embaixador" era o agente Tatami Taylor, em missão especial e coroada de êxito.


NELSON MOTTA


Nelson Motta estréia este mês como autor publicado em livro. Lançará, pela Editora Rocco, sua coletânea de contos O Piromaníaco, da qual faz parte este "O Pecado Original". O leitor de Homem, entretanto, já o conhece desde o número 10 da nossa revista, onde se divertiu com a história "A Mulata e o Super-Homem".


Nelson Cândido Motta Filho é paulistano. Nasceu em 1944 e aos 10 anos foi morar no Rio. Após rápidas tentativas na área do desenho industrial e da advocacia, foi trabalhar no Jornal do Brasil. Nesse período, em 1966, ganhou o I Festival Internacional da Canção com a música Saveiros, feita em parceria com Dori Caymmi.


Depois desse sucesso na música, a carreira jornalística de Nelson Motta ganhou impulso: tornou-se colunista diário na Última Hora, passando depois para O Globo, onde está até hoje. Fez parte do júri do Programa Flávio Cavalcanti em sua melhor fase, entrando depois para a TV Globo, onde fez telejornal, programas de música pop e quadros para o Fantástico. Atualmente está na equipe do telejornal Hoje. Além do jornal e televisão, foi produtor de discos da Philips, produtor dos concertos pop Hollywood Rock e dos espetáculos de sua mulher Marilia Pera (a peça Apareceu a Margarida e o show A Feiticeira).


ILUSTRAÇÃO WALTER HUNÉ



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