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PAIXÃO

Ficção



Dizem que a paixão é um sentimento patológico, uma doença, que felizmente é transitória. Eu me casei com Nely sem nunca ter me apaixonado por ela. Mas por Michele corto qualquer dedo, corto a mão inteira, corto tudo, menos o pau


Um conto de RUBEM FONSECA



Certa ocasião, eu estava apaixonado por uma garota e, para provar a ela a grandeza do meu sentimento, decepei o dedo mínimo da minha mão direita. Dizem que a paixão é um sentimento patológico, uma doença, que felizmente é transitória. Eu nunca estive apaixonado por Nely, mas me casei com ela. Eu sou escritor, e os escritores são todos (com exceções fulgurantes) uns pés-rapados. Nely tinha dinheiro, herdado do pai, além de ganhar muito em sua profissão de advogada especializada em indenizações.


Tenho de contar a verdade. Eu era um escritor fracassado. Nem isso, nem fracassado eu era, o que já seria alguma coisa. Eu era um escritor que nunca conseguiu ser publicado. Enviei meus originais a todas as editoras, e, sem exceção, foram devolvidos com aquelas explicações hipócritas de rotina. Falei com Nely se ela não podia financiar a publicação de um dos meus livros, um apenas, numa dessas editoras que fazem isso, mas ela perguntou se eu não tinha vergonha na cara, que não participaria de algo indigno como aquilo.


Nely é muito ciumenta, contratou uma equipe de detetives particulares que me vigiam noite e dia. Sabem como me encontro com a Michele, a paixão da minha vida? No consultório do doutor Amâncio, um cirurgião amigo meu. Ele me cede uma das salas, e, numa cama de ferro, eu faço amor com Michele. Aliás, foi Amâncio quem encontrou a solução para o meu problema.


Por Michele corto qualquer dedo, corto a mão inteira, corto tudo, menos o pau. Gosto de fazer amor com Michele. Fazer amor com paixão exige um rito, um protocolo, uma pompa, uma solenidade. Mas para isso é preciso que o corpo da mulher com quem vamos fazer amor seja muito bonito, perfeito, como o de Michele. E que você esteja apaixonado por ela.


Eis o rito: a mulher deita-se na cama, inteiramente nua, e você contempla seu corpo, da cabeça aos pés, de frente e de costas. Depois, aproxima o seu rosto do corpo dela e sente o aroma de cada parte do corpo, dos cabelos, das axilas, dos seios, dos pés, da vagina, das costas, das nádegas. Em seguida, prosseguindo no ritual, sente o sabor da mulher passando a língua em todo o seu corpo, nos lábios, na língua, nos seios, novamente nas axilas, na barriga, no umbigo, nos pés, na vagina — onde a língua deve explorar todas as reentrâncias, pois os sabores da vagina são inúmeros e variados em cada fragmento, e, em certos momentos, você deve fazer um cone com a língua e enfiá-lo o mais fundo possível nessa frincha voluptuosamente saboreável. Depois as nádegas e o ânus. A língua deve percorrer e descobrir os prazeres contidos nesse mágico orifício de altíssima sensibilidade que pode proporcionar um deleite excelso.


Somente após esses prolegômenos devemos introduzir o pênis na deslumbrante greta, que estará balsamicamente vaporizada, preparada para recebê-lo.


Como fazer isso com Nely? Ela tem o corpo feio, seios caídos, bunda mole, barriga flácida. E, quando sugeri que consultasse um cirurgião plástico, ela riu, perguntou, com mordacidade: "Você me acha alguma dondoca botoqueira? Eu sou uma profissional liberal, uma advogada famosa, respeitada, que ganha a vida trabalhando". Estava implícito na maneira como ela disse isso que eu era um vagabundo que não trabalhava, pretextando ser um escritor.


Tive uma longa conversa com meu amigo Amâncio. Não sei o que faço da minha vida, estou apaixonado por Michele e a minha mulher me asfixia, me humilha, deixa-me infeliz.


Amâncio ficou algum tempo calado. Depois disse que tinha a solução do meu problema. Eu sei que você quer dar um apartamento para Michele, não quer?


Quero, gostaria de satisfazer o maior desejo dela, que é ter um apartamento de cobertura no Leblon. Mas eu não tenho dinheiro nem para comprar um barraco na Rocinha.


Eu tenho a solução do seu problema.


A solução apresentada por Amâncio me deixou horrorizado.


Não consigo fazer isso, Amâncio, não tenho coragem.


Pensa, pensa bem.


Eu jamais faria uma coisa daquelas. Mas naquela noite Nely me disse que estava cansada de viver com um parasita, que ia arranjar um emprego burocrático para mim, que eu não podia deixar de aceitar. Anda, diz que sim, anda.


Está bem, está bem, amanhã eu vou lá nesse escritório.


Mas em vez disso fui ao consultório do Amâncio.


Topo, eu disse.


Está tudo preparado, disse Amâncio. Ele me deu uma agulha e disse que eu, quando ela estivesse dormindo, raspasse na pele de Nely, bastava um arranhão. A agulha estava infectada com tétano. Lembrei-me de que alguém teria comentado comigo que uma boa maneira de se livrar de alguém era infeccionando essa pessoa com tétano, mas eu não me lembrava quem.


Uma boa maneira de se livrar de alguém era infeccionando essa pessoa com tétano

Fiquei acordado, com a agulha na mão, sem coragem de fazer aquilo. Então Nely começou a roncar, e creio que foi isso que me levou a fazer o que Amâncio mandou.


Pela manhã Nely disse que tinha um arranhão na perna, e eu respondi sugerindo que ela pusesse um band-aid. O band-aid não serve para merda nenhuma, havia me dito Amâncio, fecha o registro da água para impedir que a Nely tome banho, se ela lavar o ferimento com água e sabão está tudo perdido, água e sabão matam qualquer infecção.


Nely foi para o escritório sem tomar banho, com o band-aid na perna. Eu fiquei em casa sofrendo, arrependido, me achando um assassino execrável, um crápula da pior espécie. Liguei para o consultório do Amâncio. Calma, calma, passa aqui para conversarmos.


Amâncio me explicou que o período de incubação do tétano podia variar de três a 21 dias e, quanto mais afastada do sistema nervoso estivesse a ferida, mais longo seria o período de incubação e que, quanto mais longo o período de incubação, maior a probabilidade de morte, por isso eu fiz o arranhão na perna.


Deus me perdoe, eu disse.


O que está feito está feito, disse Amâncio.


Quando a gente quer que o tempo passe depressa, ele passa muito devagar, Transcorridos os 21 dias, nada aconteceu. Mas, no vigésimo terceiro dia, Nely começou com contrações dos músculos mandibulares. Liguei para Amâncio. Ah, que bom, ele disse, esse é o primeiro sinal do tétano, o chamado trismus, a Nely vai ficar sem poder abrir aboca. Você me chama para examiná-la.


Nely, meu amor, liguei para o doutor Amâncio, ele vem aqui examiná-la.


Amâncio examinou Nely demoradamente.


Isso não é nada, Amâncio disse, é tensão nervosa, você deve estar com algum problema no escritório, Vou lhe dar um calmante, uma injeção.


Ele aplicou uma injeção na veia de Nely.


Maravilha, Amâncio disse, olha o rosto dela.


Olhei. Nely estava rindo.


Ela está rindo, eu disse.


Isso mesmo. Chama-se risus sardonicus, um espasmo dos músculos em volta da boca, causado pela rigidez do pescoço e das costas. Maravilha. Agora vamos esperar a diaforese, ela vai suar, suar, suar, a temperatura vai aumentar, ela vai ficar com taquicardia e vai morrer de asfixia causada pelos espasmos do diafragma. (Esqueci de dizer que Amâncio usava e abusava da palavra "maravilha", a comida estava uma maravilha, o filme era uma maravilha, o sapato era uma maravilha, e por aí afora).


O próprio Amâncio deu o atestado de óbito: falência geral de múltiplos órgãos, que é a causa que todos os médicos colocam no atestado de óbito quando não sabem ao certo a causa mortis. A Nely não tinha outros parentes e, como as visitas estavam proibidas, ninguém viu o risus sardonicus estampado no rosto dela em seu leito agônico, mas eu confesso que sempre me lembrava de sua fisionomia de curingão e até mesmo tive alguns pesadelos com Nely sentada na mesa de jantar, me olhando com um sorriso de escárnio ou desdém, enquanto eu comia um prato de cebolas, a comida que eu mais odeio.



Tive pesadelos com Nely me olhando com um sorriso de escárnio enquanto eu comia um prato de cebolas

Nely possuía inúmeros imóveis e investimentos variados. Peguei uma parte e comprei com o dinheiro que obtive uma cobertura dúplex na praia, que coloquei no nome da Michele. Esse era o sonho dela, uma cobertura na Praia do Leblon. (Na verdade tive ainda de gastar uma quantia razoavelmente grande na reforma da cobertura. O apartamento estava em excelentes condições da habitabilidade, mas as mulheres são loucas para fazer uma reforma, e ela foi feita: uma nova cozinha, dois novos banheiros, algumas paredes derrubadas, uma sauna nova, assoalho mudado. Enfim, um apartamento novo. E a mobília... Gastei muito dinheiro.)


Olha, ela me disse quando as obras terminaram: você continua morando na sua casa e eu moro na minha, a coisa que mais acaba com o amor é duas pessoas viverem juntas, se friccionando o dia inteiro, conheço mais de mil casos. Outra coisa, ninguém pode aparecer na casa do outro sem avisar.


Ela tinha razão. Como não havia a tal fricção, as nossas relações continuaram primorosas como antes, talvez até mesmo tivessem melhorado, pois fodíamos com mais conforto.


Amâncio vivia me cobrando, você está me devendo, ele dizia. Amâncio podia ser um bom contaminador de tétano, mas parece que como médico não era grande coisa. Tinha poucos clientes e gastava grande parte do seu tempo frequentando boates e casas pouco respeitáveis, ele mesmo confessava que gostava de foder putas. Você não precisa usar camisinha se fode uma puta, você tem de usar camisinha se fode com uma mulher casada, essas, sim, pegam doenças dos maridos, que são bissexuais. Conhecendo suas inclinações, eu não me incomodava quando ele e Michele iam visitar exposições de pintura, o que faziam amiúde.


Dei uma boa quantia de dinheiro para ele e também uma procuração com plenos poderes para comprar, vender, subestabelecer, tudo.


Um dia Amâncio disse que precisava da minha ajuda. Ele possuía um sitio na serra, pouco além de Pedro do Rio, e ia convidar um conhecido para passar uns dias lá, mas na verdade queria prendê-lo no porão da casa.


E depois?, perguntei.


Depois de alguns dias eu o solto. É para lhe dar um susto. Ele é um berdamerda.


E se ele gritar pedindo socorro?


Pode gritar à vontade que ninguém vai ouvir. Eu não tenho caseiro e tranco a casa com trancas e fechaduras invioláveis. Fica tranquilo.


Porra, você vai matar o cara?


Não sei. Já disse, é um filho da puta. E está atrapalhando a minha vida. Não deixa eu ficar com a mulher por quem estou apaixonado.


Eu não sabia que você também estava apaixonado. É uma puta?


Não, não é uma puta.


O sítio ficava num local isolado. A casa era antiga, toda de pedra, muito bonita.


E o cara?, perguntei.


Chega daqui a pouco, o Amâncio respondeu. Vem, vou te mostrar o porão.


Um alçapão foi aberto na sala, e Amâncio apontou para a abertura.


Está vendo? A gente desce por essa escada de madeira, tira a escada e deixa o filho da puta apodrecer lá dentro. Desce pra você ver.


A escada tinha inúmeros degraus. O porão era muito escuro. Quando cheguei, desci o último degrau e disse: porra, esse lugar é fundo pra caralho.


Tem uma lanterna a querosene aí; por favor, acende a lanterna.


Com o isqueiro iluminei o porão. Achei a lanterna sobre uma mesinha ao lado de uma cama com um colchão de palha.


É um cubículo, eu gritei.


Nesse momento ouvia escada sendo puxada.


Chegou a nossa visita, volto já, disse Amâncio.


Depois de algum tempo ouvi uma voz feminina.


Olá, Pedro.


Michele?


Em carne e osso, ela respondeu.


O que você está fazendo aqui?


Eu estava perplexo.


O berdamerda que Amâncio queria matar de fome era eu. Eu estava fodido. Sabia que nem ele nem a Michele estavam brincando. Agora eu entendi aquelas exposições de pintura que os dois frequentavam juntos várias vezes por semana. E um dia eles foram a Paris juntos ver uma exposição e eu achei normal, era o meu melhor amigo e a mulher que dizia me amar loucamente. Eu era um crédulo idiota. A mulher por quem Amâncio estava apaixonado era Michele.


O que você está fazendo aqui, Michele?, repeti.


Vim ajudar o Amâncio a enterrar você. Bai, bai, querido. Obrigada pelo apartamento.


Antes que a porta do alçapão fosse fechada, eu gritei: Michele, Michele, por favor, chama o Amâncio, chama o Amâncio.


Amâncio apareceu no alto do alçapão.


O que você quer?


Amâncio, você é o meu melhor amigo, me arranja um caderno grosso, várias canetas e um pouco mais de querosene. Enquanto não morrer de fome, eu quero escrever um romance aqui. Sinto que será a minha obra-prima.


Vou arranjar, ouvi ele dizer.


Ele demorou um pouco. Pensei na minha procuração com direitos de subestabelecer. E lembrei-me de quem me dissera que causar uma infecção por tétano era uma boa maneira de se livrar de alguém.


Mais tarde, a porta do alçapão se abriu e várias canetas e um caderno grosso foram jogados lá de cima. E também várias latas com comida e refrigerantes. Vi o rosto de Amâncio na abertura do alçapão.


Amâncio, você subestabeleceu para Michele a procuração que eu lhe dei?


Sim. Por quê?


Ele não terminou a frase. Ouvi um tiro, e Amâncio desapareceu da porta do alçapão. Então Michele a fechou com um estrondo.


Amâncio tivera a sorte de uma morte rápida e talvez indolor? Ou Michele ia deixá-lo morrer sangrando como um porco? Mas nada é pior que morrer de fome, pensei. Eu tinha de arranjar uma maneira menos lenta e dolorosa de me despedir. Com a lanterna, procurei no porão uma coisa afiada para cortar os pulsos. Dizem que morrer com os pulsos cortados é uma forma indolor, até mesmo agradável de se despedir da vida. Talvez eu pudesse cortar as veias dos pulsos com os dentes. Não ia ser fácil, mas acho que eu ia ter de fazer isso. Mas não precisava ser naquele dia. Outra hipótese era botar fogo no colchão de palha e morrer asfixiado. Mas não precisava ser naquele dia.


Então tive uma inspiração. Eu podia aproveitar o silêncio, a solidão para escrever. Isso mesmo, deixar uma mensagem para a posteridade, uma obra-prima que um dia seria encontrada com a minha caveira ao lado, o que daria ainda mais publicidade ao livro.


Sentei-me na cama, coloquei a mesinha na minha frente, peguei uma das canetas, abri o caderno e comecei a escrever furiosamente.


Os editores, esses putos, iam disputar como hienas o direito de editar o meu livro.

ILUSTRAÇÕES RAFAEL GRAMPÁ



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