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RETRATO DE FAMÍLIA RETOCADO COM PÓLVORA

Ficção



Elke cheirava a uísque barato e perfume caro. Naquele momento, eu a quis. Meu irmão nem tinha sido enterrado ainda, e desejei sua mulher


Um conto de MARÇAL AQUINO


Incrível como a morte faz bem para a biografia de algumas pessoas.


De uma hora para outra, mágoas são esquecidas e se perdoam ofensas e vilezas, e canalhas de grande porte acabam elevados, se não à condição póstuma de santos, ao menos à de benfeitores da comunidade.


Meu irmão Miguel. Velavam a carcaça dele no salão nobre da Câmara de Vereadores numa noite fria e chuvosa de julho, imprópria para guardar defunto. Freiras, noviças e umas velhinhas que eu nunca tinha visto na vida puxavam a reza, sentadas numa fileira de cadeiras junto à parede. No centro, o caixão lacrado tinham dado cinco tiros em Miguel, três na cara.


À tarde, eu havia presenciado o trabalho dos homens que lavaram o cadáver. Quatro colonos da fazenda, gente bem simples. Meu irmão devia estar acima dos 150 quilos. Os braços queimados de sol destoavam do restante pálido do corpo, pareciam pertencer a outra pessoa. Os homens levaram quase 1 hora para realizar a tarefa, não emitiram uma mísera palavra durante esse tempo. No fim, não quiseram aceitar o dinheiro que ofereci. E não adiantou insistir. Um deles chegou a chorar, disse que gostava muito de Miguel e fazia aquilo em nome da amizade. Na varanda da Câmara, bandejas com pinga em copinhos de plástico circulavam entre homens de expressão grave, confinados ali por causa da chuva, pouco à vontade com aquela promiscuidade forçada.


Padre Bento, na verdade um ex-padre que era nosso prefeito, discorria sobre a breve porém marcante intervenção do falecido na política local. Suplente de vereador em duas legislaturas, lembrou, merecia virar nome de rua. (O problema é que há muitos anos não surge uma rua nova neste lugar estagnado.) Padre Bento avisou que decretaria luto oficial por três dias "em homenagem a esse nosso grande contemporâneo".


E também grande entusiasta do comércio informal como exterior, o ex-padre poderia acrescentar, não tivesse ele mesmo o rabo preso como contrabando, atividade que, por sinal, vinha subsidiando minha família desde os tempos do meu bisavô. Padre Bento me chamou de lado e descemos a escada da varanda e nos abrigamos sob o beiral da Câmara. Ele gastou um tempo sem falar, preparando o cachimbo. Apalpava o terreno.


Padre Bento vivia em pecado com uma indiazinha fazia uns anos já. Era corrupto, lascivo e vaidoso. Seus cabelos, presos num rabo de cavalo, tinham tintura suficiente para pintar de acaju a fachada da Câmara. Ele terminou de encher o cachimbo. Então me olhou.


Jordão pediu pra sondar se você consente que ele venha se despedir do seu irmão.


Não tenho nada contra, respondi.


Que bom. Imaginei que você não ia se opor.


Era um dos suspeitos, talvez o número um. Miguel dera uma violenta surra em Jordão uma semana antes, em público, durante um torneio de bilhar. Mas havia outros suspeitos. Vários. Desafetos com graus diversos de ódio. Se fosse para reunir todo mundo com motivo para matar meu irmão, melhor seria organizar uma fila e distribuir senhas.


Miguel dera uma violenta surra em Jordão, mas havia outros suspeitos. Se fosse para reunir todo mundo com motivo para matar meu irmão, melhor organizar uma fila

Padre Bento aproximou a chama do isqueiro do cachimbo e ficou baforando contra a cortina de água que o beiral derramava à nossa frente. Na hora, um aroma agradável de chocolate instaurou-se entre nós. Um táxi parou junto ao meio-fio e, quando partiu, deixou uma mulher sob a chuva. Elke. A viúva. Ela subiu a escadaria da Câmara com dificuldade, como se temesse escorregar. Não nos viu. Erguia o casaco acima da cabeça para proteger do aguaceiro os cabelos oxigenados.


Sua mãe já sabe?, Padre Bento perguntou.


Se depender de mim, não vai ficar sabendo tão cedo.


Mas uma hora ela acaba descobrindo.


Não precisa ser agora.


Aos 70 anos, isolada na fazenda da família, minha mãe se recuperava de uma cirurgia complicada, seguida de uma infecção hospitalar. Eu havia proibido que a informassem da morte de Miguel. Seu filho caçula. O favorito.


Quando souber, ela vai ficar louca.


Tive de concordar.


E vai querer vingança.


Contra quem?, perguntei.


Ao invés de responder, Padre Bento bateu com vigor os pés no chão para espantar a friagem que subia pelas pernas. O celular em seu bolso tocou os acordes do Bolero de Ravel. Ele pediu licença para atender e se afastou até a outra ponta do beiral. Ouvi-o dizer:


Pode chegar, sem problema.


Foi engraçado: nem bem Padre Bento desligou, Jordão emergiu de um carro estacionado na praça. Já estava ali fazia tempo, à espreita, aguardando apenas meu consentimento. Ele fechou a porta do carro e ficou ensopado de chuva antes mesmo de conseguir equilibrar-se nas muletas para atravessar a rua. Foi quando escutamos um princípio de tumulto e vi que os homens da varanda se aglomeravam na porta do salão nobre. Demorei um pouco a compreender o que acontecia. Alguém desceu até o meio da escada e gritou meu nome. Pediu que eu subisse depressa. Alertou:


A Elke tá aprontando.


* * *


Elke veio ao mundo com o nome de Vanda Beatriz.


Tinha surgido na cidade uns oito anos antes, como a falsa loira de um grupo de dançarinas que ganhava a vida se exibindo em rodeios e feiras agropecuárias pelo interior do país. Marotas do Fantástico. O fato é que, depois de uma apresentação, elas resolveram confraternizar com os nativos numa churrascaria. Foi quando Elke conheceu Miguel. E um se entusiasmou como outro.


Ela viu em meu irmão o que quis ver. Um fazendeiro bronco, engraçado e meio louco. Um caipira rude metido a playboy. Um solteirão endinheirado. E Miguel era mesmo tudo isso. Porém Elke não considerou outros atributos que faziam a fama local de meu irmão, um arruaceiro acostumado a dar pontapés e cabeçadas em seus oponentes pelos bares, quando não tiros. Um psicopata mimado pela mãe do qual as pessoas tinham medo ou ódio, ou ambas as coisas. Um dos reis do contrabando na região.


Elke deixou que Miguel a apalpasse entre uma picanha e um shoulder steak, especialidade da nossa região, e mais tarde, na caminhonete estacionada em lugar ermo, deixou que meu irmão fizesse outras coisas nela. Inclusive um filho. Elke enxergou aí uma chance de trocar as incertezas da carreira artística pela segurança de uma vida mais pacata, num lugar que, em momentos de intimidade etílica, chamava de "antro de bugres".


É possível que, por algum tempo, enquanto sua barriga se avolumava, Elke tenha pensado em sorte grande. O primeiro prêmio. Ainda mais ao se ver acolhida sem reservas pela matriarca da família. Mas Elke e meu irmão nunca formaram um casal de verdade. Culpa do estilo crespo de Miguel e também, faça-se justiça, do gênio miserável da minha cunhada. Os dois eram chegados na birita e na porrada. Se estavam bem, brindavam com champanhe contrabandeado; se não, um podia tentara jugular do outro com o caco de uma taça.


O filho deles nasceu de oito meses. Ganhou o nome do saudoso avô, um amor desesperado de parte da avó e uma enganosa indiferença do pai. Na época, Miguel praticamente estava morando na zona. Quando ameaçou ir embora da cidade com o menino, Elke ouviu um rilhar de dentes:


Só não te mato porque você está amamentando meu filho.


É contra esse pano de fundo que, um dia, desceu de um ônibus na rodoviária um coroa vindo de São Paulo. Andou por bares enchendo a cara com a cachaça local e falando de Elke. Contou que eram casados e que ela havia fugido dele, chegou a mostrar uma fotografia em que os dois apareciam, ela ainda em seus tempos castanhos de Vanda Beatriz. Não demorou e avisaram Miguel, e ele se encontrou com o sujeito e parece que o convenceu a embarcar de volta para São Paulo. É o que dizem que aconteceu, embora eu não conheça ninguém que tenha visto o coroa entrando em ônibus algum. E dele não se falou mais.


Elke se sentia prisioneira. Uma refém. Sabia que, se tentasse fugir com o filho, acabaria espancada — ou talvez até morta. E ninguém faria nada a respeito. Isso a deprimia. Então ela recorria ao álcool fazendo com frequência uma ronda pelos bares da cidade. Alguém sempre me telefonava antes que o vexame passasse do limite ou ela caísse bêbada na rua. Eu a recolhia e a levava para casa.


Numa dessas ocasiões, antes de descer do carro em frente do sobrado onde vivia, Elke abriu o segundo botão da blusa que vestia e aventou:


Vamos embora deste lugar de merda. Eu e você.


Exibiu parte de um sutiã de renda e uma promessa de um seio grande, firme, bonito. Eu me limitei a descer do carro e a ajudá-la a atravessar o jardim e a entrar em casa, o que a irritou.


Elke abriu o segundo botão da blusa e aventou: "Vamos embora deste lugar de merda. Eu e você". Exibiu parte de um sutiã de renda e uma promessa de seio grande, firme, bonito

Covarde. Você morre de medo do seu irmão. Queria ver se tivesse que enfrentar o Miguel.


Elke estava sendo injusta. Na verdade, eu era um escasso integrante da fauna masculina da cidade que se atrevia a se aproximar dela. Os demais evitavam qualquer contato com ela, chegavam a mudar de calçada quando a viam, como se portasse alguma doença contagiosa. E ninguém podia censurá-los por isso. Bastava lembrar o ocorrido com Jordão, de quem Miguel era grande amigo, por sinal.


Mas eu não tinha motivo nenhum para temer meu irmão. Pelo menos até essa noite.


Fui para casa, não há por que omitir, pensando naquele começo de seio. Ficou queimando dentro de mim. Como um incêndio que eu não queria que se apagasse.


* * *


De forma temerária, subi de dois em dois os degraus escorregadios e, para entrar no salão, tive de me espremer entre os curiosos que obstruíam a porta. Elke, bêbada, dava seu showzinho: aos gritos, exigia que abrissem o caixão, queria ver o rosto de Miguel pela última vez.


As mulheres tinham interrompido o terço e acompanhavam, com um misto de fascínio e apreensão, o espetáculo proporcionado por aquela criatura inesperadamente loira, para quem os homens embrutecidos olhavam com 90% de desejo e 10% de temor, que acabava por prevalecer, pois nenhum ousava aproximar-se dela. Elke me viu. Baixou o tom. Gemeu:


Faz alguma coisa, João. Por favor.


Eu a segurei pelo braço com a intenção de afastá-la do caixão — meu receio era que ela o derrubasse. Elke ergueu um copo com um resto de uísque.


Vim tomara saideira com o seu irmão.


Então riu e soltou um arroto involuntário, o que a fez rir ainda mais. Tentei conduzi-la para fora do salão, mas Elke resistiu. Aumentei a força e isso a irritou: ela quis me arranhar o rosto e perdeu o equilíbrio nos saltos, e quase acabamos no chão.


A patota de machos assistia com evidente satisfação ao redor, nenhum esboçava o menor gesto de ajuda. Era óbvio que a maioria ali torcia por Elke. Estavam a ponto de aceitar apostas no recinto.


Apertei os pulsos dela e a arrastei na marra em direção à porta. Ela gritou e derrubou o copo. E depois mordeu meu braço.


Eu sabia que a política local quanto a agressões a mulheres se alinhava com o vigente nos rincões mais profundos do Brasil bruto. Por isso, não me causou estranheza nenhuma o ar de aprovação que surgiu no rosto dos homens presentes diante da bordoada que desferi em Elke. Ela desmontou. Eu a amparei antes que chegasse ao chão e consegui, enfim, levá-la para fora.


Os homens abriram uma clareira para que eu saísse na varanda com Elke. O silêncio entre eles era tal que foi possível ouvir o momento em que as mulheres retomaram a reza dentro do salão. A chuva parecia ter aumentado, e também o frio. Jordão estava parado na entrada da varanda, apoiado nas muletas. Me olhou, ressabiado. Talvez estivesse triste coma morte de Miguel, mas não dava para ver isso em seu rosto. Para falara verdade, em seu rosto só dava para ver que continuava inchado, cheio de hematomas azulados e de costuras no supercílio. Passei um dos braços de Elke por cima do meu ombro, respirei fundo e a carreguei.


Embora eu pudesse sentir um olhar coletivo de inveja às minhas costas, foi uma empreitada nada invejável descer a escadaria com minha cunhada nos braços. Seu cobiçado corpo pesava bem mais do que eu imaginava. Patinei nos degraus, lisos como sabão. Alguém riu na varanda. Elke agarrou-se ao meu pescoço e, do meio da bruma alcoólica, deixou escapar uma queixa contra a chuva, que ia nos deixando encharcados.


Está estragando meu cabelo. Perdi a tarde no salão.


Cheirava a uísque barato e a perfume caro, ambos contrabandeados. Cheirava também a suor — sua axila estava próxima do meu nariz —, um odor pungente, nem um pouco desagradável.


Acho que foi o que mexeu comigo. Naquele momento, eu a quis.


Meu irmão nem tinha sido enterrado ainda, e desejei sua mulher. Seu cadáver furado de balas a poucos metros, e eu pensando em tirar as roupas dela e em morder sua carne pálida. Quando chegamos à rua e a depositei no chão, eu ofegava.


Meu coração socava forte na garganta. Para me abrigar da chuva enquanto recuperava o fôlego, recuei para o beiral e me encostei na parede. Elke encostou-se ao meu lado. Tremia de bater os dentes, os cabelos escorrendo água. Ali, pela primeira vez, me pareceu frágil.


João.


A voz de Elke soou rouca. Ela tocou a cabeça no lugar em que eu tinha batido, suspirou. E, de forma inesperada, me agarrou e beijou apertando com seu corpo o meu contra a parede. Não tive chance de resistir. Não deu tempo nem de pensar se era certo ou errado — pensei apenas que era bom. Muito bom.


Tão bom que fechei os olhos e me deixei envolver por aquela vertigem. Me entreguei. E Elke também — suas mãos se intrometiam por dentro da minha camisa e me arranhavam o peito. Ficamos tão entretidos um com o outro que não notamos a chegada do carro, que estacionou perto de nós, junto ao meio-fio. Dele, precedida por um empregado da fazenda de guarda-chuva em punho, desceu a senhora minha mãe.


Emergi do meu mergulho em Elke e dei com minha mãe parada sob a chuva, me olhando. Vestia luto dos pés à cabeça grisalha, coberta por um lenço de renda. Me fitava com uma expressão que parecia ser de piedade, se a piedade tivesse espinhos.


Emergi do meu mergulho em Elke e dei com minha mãe parada sob a chuva, me olhando. Me fitava com uma expressão que parecia ser de piedade, se a piedade tivesse espinhos

Eu não falava com ela havia quase uma década. Para ser exato, desde a época em que meu pai foi assassinado numa rixa com um contrabandista rival. Minha mãe esperava que eu assumisse os negócios da família, mas preferi continuar com minha rotina pacata, distante dos assuntos da família. Miguel se tornou o chefe do clã. Fui deserdado.


Alheia, Elke ainda permanecia atracada comigo e demorou a perceber o que ocorria. Tentei afastá-la, ela insistiu em me beijar. Tive de empurrá-la. Então Elke e minha mãe se encararam.


Biscate, minha mãe disse.


E cuspiu no chão molhado. Daí me olhou uma última vez e, sem conceder-me a migalha de uma palavra, virou-se e ofereceu o braço ao empregado para que a ajudasse a subira escada.


Fiquei com a impressão de que tinha acabado de entrar na lista dos suspeitos pela morte de meu irmão.


Elke havia se afastado na direção de um poste, no qual se apoiou para vomitar copiosamente na rua.


* * *


Saí da cidade faz alguns anos já. Nunca mais voltei. Nem mesmo quando morreu minha mãe. Soube que o lugarejo parou no dia de seu enterro. Padre Bento, de volta à prefeitura, decretou luto oficial.


Elke ainda vive lá. Poderia ter partido, se quisesse, após a morte de minha mãe. Ninguém iria impedi-la. Mas preferiu ficar, e não é tão difícil entender por quê.


Seu filho, um tanto precoce, cuida da fazenda que herdou e dos negócios do contrabando. Dizem que vai bem — tem a determinação da avó, a voracidade da mãe e a falta de escrúpulos do pai. A própria Elke conquistou prestígio na cidade: é uma espécie de primeira-dama informal. As coisas acabaram dando certo para ela.


E também para mim.


Uma noite, umas três semanas depois do enterro de Miguel, fui à casa de Elke. Queria a continuação do beijo que minha mãe havia interrompido. Encontrei-a sozinha, o filho estava numa colônia de férias. Porém me recebeu com frieza, como se nada houvesse acontecido entre nós. Minha presença no sobrado pareceu incomodá-la. Então resolvi ir embora.


E já estava quase saindo quando meu nariz captou na sala um aroma de chocolate. Foi por isso que fingi ir embora, mas, ao invés de partir, aguardei algum tempo no jardim. E depois entrei outra vez na casa.


Padre Bento tinha Elke nos braços e uma expressão de surpresa no rosto quando me viu. Bem ao seu estilo conciliatório, ele disse:


Temos um problema, João. Eu gostaria de saber se é possível você esquecer o que viu.


Eu precisaria ir embora desta cidade, respondi. Mas, para isso, preciso de dinheiro.


Padre Bento sorriu antes de dizer:


Podemos dar um jeito nisso.


ILUSTRAÇÕES FENÍCIO E RALPH STEADMAN



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