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A MULHER NUA

Ficção


Mulher nua na calçada

Não, eu não estava sonhando! Havia mesmo uma mulher toda nua passeando por Ipanema

Por ORÍGENES LESSA


Não caída de um oitavo andar ou de alguma cobertura com duas salas, três quartos e demais dependências. Nem mesmo de um primeiro andar. Está em pé, não fraturada nem contundida, e caminha. Deve ter descido de elevador. Deve, não. Veio. Não há casas térreas por aqui. Veio pela porta da frente, talvez, atravessando o hall sofisticado com lambris de madeira nobre, prometidos pelos incorporadores, quando foi lançado o edifício (valorização fabulosa nestes últimos anos).


Haveria gente no apartamento, quando ela desceu? Talvez sim, mas ocupada e nada viu. Talvez seja ela apenas um caso de solidão desesperada ou desesperadora. Talvez só ela, e provavelmente nem ela, saiba como saiu e por que saiu nua assim em pêlo, e com todos os pêlos, os da axila inclusive, que eu a vi erguer o braço e coçar o nariz com o dorso da mão, num gesto despreocupado de dona-de-casa a caminho da feira (não, se fosse à feira, o gesto não seria despreocupado, os preços andam de enlouquecer qualquer pessoa...), ou com o jeito de quem vai, simplesmente, comprar um jornal (se é que mulher entre os 30 ou 40 anos, um pouco mais, um pouco menos, desce de seu apartamento às onze e meia da manhã para comprar jornal, principalmente estando nua).


A verdade é que ela está nua ali na calçada e caminha tranqüila, a cabeça levemente inclinada, os olhos no chão, como quem quer evitar cacos de vidro ou cocô de cachorro que ofendam seus pés (porque está descalça, a nudez é completa).


Confesso que não a tinha notado no princípio. Ao passar pela esquina, vi a jornaleira (a banca pertence a uma senhora de meia-idade, muito simpática, sempre vestida normalmente). Eu do lado de cá, a mulher nua pelo de lá. Dela eu não sabia. Por acaso, levado por uma vasta manchete entrevista na banca, uma vaga euforia me tomara. Devemos alcançar auto-suficiência total, em termos de petróleo, no máximo até 1982.


— Assim também é uma pouca vergonha...


A jornaleira estava fora da banca (saíra para ver melhor?) e dialogava com outra senhora, amiga ou freguesa. Ambas completamente vestidas. E tão naturalmente vestidas que eu nem dei pelo fato de estarem... Afinal de contas, de estranhar seria que não estivessem, apesar do tempo em que vivemos. Convencionou-se há muitos séculos, alguns dizem que desde o jardim do Eden, que homens e mulheres em público, e mesmo em casa, no seu relacionamento normal, estejam vestidos (sempre achei que uma ditadura que abolisse por completo o uso do vestuário causaria um prejuízo incalculável a um dos setores mais importantes da indústria nacional e mesmo das multinacionais. Milhões de pessoá, neste exato momento, dependem, direta ou indiretamente, do vestuário e de seus componentes, integrantes e subsidiários. Seria até interessante levantar uma estatística sobre o assunto).


Mas naquele momento não era nisso que eu pensava, nem teria propósito. Estava com o pensador voltado para o nosso petróleo, imaginando como seria bom sermos auto-suficientes nesse campo. A Argentina, por exemplo, é auto-suficiente desde 1936, eu li não sei onde. Mas eu não estava nem sequer pensando no caso da Argentina, estava apenas levemente eufórico (qual o bom brasileiro que não estaria?) quando acompanhei, curioso, o olhar da dona da banca (dona Eurósia, se não me engano, sou freguês há muito tempo). Não estava pensando em nudez de mulher nenhuma naquele instante e naquela rua (muito menos de dona Eurósia, que eu não sei se o amigo conhece). Mas petróleo e nudez se associaram no meu pensamento, levados por alguma palavra de dona Eurósia, da interlocutora ou de algum passante, que não registrei, mas que foi apertar algum botão no meu subconsciente. E a palavra nudez, ou a idéia da nudez, de preferência feminina, sempre foi algo muito grato ao meu coração de brasileiro (dizem que brasileiro é fogo ...). O fato foi que eu senti que havia alguma nudez (e oxalá feminina!) no ar ou na rua. É a chamada intuição dos psicólogos ou dos astronautas, sei lá! Cheguei a pensar que se tratava de alguma jovem banhista que vinha da praia (o amigo já deve ter intuído que eu caminhava por uma rua de Ipanema, na quadra da praia, e do lado de cá da quadra, é claro). Realmente aquela jovem que rebolendendava a carnação provavelmente rija um pouco mais adiante, há quatro ou cinco anos poderia chamar a atenção de algum transeunte não atualizado. Tinha 25/27 de seu corpo inteiramente a descoberto. Aliás, os 2/27 restantes deviam ser também muito agradáveis de ver e tocar. Mas aquilo não poderia ter chocado dona Eurósia, com banca de jornais e revistas na esquina da Maria Quitéria com Prudente de Morais, uma das esquinas mais valorizadas de Ipanema. (O amigo, inteligente como é, já deve ter percebido que eu ganho para a motoca dos meus filhos trabalhando no setor de imóveis.) Milhares de corpos semelhantes, com mais ou menos tanga, mais ou menos seios, passam por dona Eurósia se desmanchando e reintegrando à luz do sol, sem apelo maior.


Portanto, não era dela que dona Eurósia (aliás Eulógia, agora me lembro) parecia falar. Mesmo porque, examinando melhor, havia agora vagos olhares, em verdade não exageradamente interessados, postos na outra calçada, um pouco mais à frente. Por outro lado, na margem fronteira da rua, vindos em direção contrária à minha, cidadãos novos e velhos, em trajes civis ou de praia, estavam olhando para trás, embora, sem perda de tempo, se recuperassem, apressando o passo, com um sorriso, sem maior empolgação.


— Mas ela está nua mesmo! — disse alguém, num tom de quem apenas confirma.


Evidentemente não estava falando da garota de há pouco e das novas que pareciam rebentar do seio da terra para alegria dos homens em geral, não minha em particular, porque eu estava a fim de avaliar um apartamento para um investidor que me distinguia com sua preferência. Falava-se de uma nudez não na minha, mas na outra calçada. Pelo jeito, pelos olhares, a cabeça voltada, a nudez em questão caminhava em rumo paralelo ao meu. E no mesmo sentido.


Dois carros com pressa, um ônibus se desconjuntando, me impediram de ver. Um pedestre apavorado, ao fugir do ônibus, quase me atirou contra um poste. Refiz-me, afinal. E vi. Realmente havia algo na outra calçada. Fazia comigo uma diagonal de 25 a 30 metros. Cor morena uniforme, sem os claros de ancas ou seios tão comuns na praça. Meia altura. Passo descansado. Cabeça baixa. Mulher? Estava de costas, o cabelo era curto, talvez fosse homem. Foi esse o meu primeiro pensamento, alienado que estou quase sempre. Homem devia ser, se o cabelo era comprido. Agora quem tem idéias curtas somos nós... De qualquer maneira, resolvi tirar a diferença. E eu, que não sou dessas coisas e que sempre me dei muito ao respeito, pelo menos na rua, onde podem passar ao acaso clientes do meu escritório, soltei, na direção daquela nudez inesperada, um psiu que encheu a rua e foi direto ao ouvido da nudez, que se deteve, no exato segundo, e pacificamente se voltou para o ponto de onde partira o psiu, como se estivesse há muito esperando por ele. Parou, aguardou por alguns segundos e, logo a seguir, retomou a caminhada tranqüila. Para a minha curiosidade, porém, fora o suficiente. Era mulher... Só o que me constrangeu foi sentir que o meu psiu chamara a atenção mais para mim que para a simpática senhora, que de passo curto, retomara seu caminho.


Procurei, quanto possível, disfarçar. Encarei, com ar de censura, um mensageiro que passava ao meu lado, com um malote de escritório na mão. O psiu era dele... Dele ou meu, porém, não teve maiores conseqüências. Foi logo esquecido, como já o estava sendo a mulher. E eu pude enfim regressar à minha curiosidade espicaçada porque, de uma forma ou de outra, sempre tem o seu quê de insólito uma dama descer à rua inteiramente nua, na fase final do strip-tease.


— Será que eu não estou sonhando? Acreditem ou não, eu pensei essa besteira. Sonhando, por quê?


Claro que não estava. Duas novas garotas, que vinham da praia, uma protegida dos olhares profanos por uma larga toalha aberta na altura da nádega, explodindo na tanga, a outra destoalhada e quase destangada, me convenceram da realidade outra vez. Ambas, chamando muito mais atenção, aliás. Sorriam com desdém da colega mais nua e menos generosamente aquinhoada, é justo dizer. Estávamos em Ipanema, era pouco mais de meio-dia, um cliente me esperava na rua Farme de Amoedo, ela estava nua.


NINGUÉM LIGAVA. PARECIA QUE SÓ EU É QUE VIA O CORPO NU DA MULHER

Como quem sabia estar sendo deselegante e, acima de tudo, provinciano, resolvi atravessar a rua e acompanhar de perto aquela Godiva pé-no-chão. Queria ter mais certeza. Queria observar as reações dos outros, na calçada ou nos carros. Na verdade, o único a apresentar uma relativa reação era eu. Os outros deviam estar altamente ocupados. Apenas olhavam, acreditando ou não, e tocavam seu barco. Mas eu sou do tempo, confesso, em que não era natural ou freqüente (digo mesmo, era raríssimo!) mulher caminhando na rua sem roupa no corpo. Eu cheguei a ter dúvidas, quando jovem, sobre o episódio de Lady Godiva, há pouco mencionado. Nudez, sim, mas na cama, no teatro, no cinema, nos museus de arte, na pintura religiosa. Mas açulado pela vã curiosidade, lá fui eu. Lá ia... Ela, nua. Eu, vestido. Ela, na frente. Eu, no vácuo. Eu, comigo, a pensar: "Só pode ser louca ..." Essa observação original não devia ser apenas minha. Outros que a olhavam pareciam, pelo jeito, ter a mesma impressão. De fato, era a hipótese mais fácil. Mas outras haveria. Acompanhando-lhe, com fingido desinteresse, o calmo rebolar das ancas, por sinal amáveis, eu a imaginava drogada, bêbada (o jeito não era) ou, sei lá, simplesmente engajada, como livre atiradora, num protesto qualquer. Contra a moral vigente, contra o establishment, contra a hipocrisia social, contra o custo da carne, coritra a taxa do lixo, contra as sujeiras do marido.


Mas aquele modo manso, indiferente, não comprometido, não parecia ligado a protesto nenhum. Afastada, por completo, a hipótese de uma Lucrécia Bórgia ou de uma Messalina rediviva. Jeito bom, distante, sem aparente engajamento com os caprichos do sexo. Uma exibicionista? De quê? Feia não era. Bem razoável até. Balangandans muito legais, corpo e molejo de ninguém jogar no lixo... Mas também não de sair à rua com tamanha confiança. Afinal de contas, passavam por ela, quase tão nuas e até mais sugestivamente nuas que ela, prodígios de carne ao sol pertencentes às melhores famílias. É verdade que a mulher (e afinal o homem também...) raramente se dá conta de que nem sempre é, ou já não é, uma Vênus de Milo ou um dos muitos Apoios. Não era esse o caso, com certeza.


De qualquer forma, se eu quisesse perscrutar-lhe o caso e penetrar no seu pensamento e nas suas razões (que interessavam tão pouco aos demais pedestres ou motorizados daquele popular logradouro de Ipanema), seria preciso não me limitar ao estudo ou pelo menos ao exame de suas pernas, coxas, nádegas e busto vistos pelas costas. A pessoa está no olhar. O estado de espírito relampeja nos olhos. As íntimas razões estão no olhar e não nas nádegas. Estávamos começando a ficar sós na rua. Ela nua, eu vestido (um cliente me esperava). Ela na frente, eu, como sempre, no vácuo. Ela, talvez, querendo comunicar alguma coisa. Eu, se possível, querendo saber, ainda que fosse apenas o endereço dela.


Resolvi, por isso, estugar o passo, ultrapassá-la pela direita, examiná-la com a devida discrição, própria de homens educados. Foi o que fiz, deslizando sutil, aparentando uma justa indignação contra uns papalvos que a olhavam de um ônibus que vinha do Meyer. O subúrbio ainda estranha essas coisas... Enquanto isso, eu descia o olhar experimentando em diagonal para a direita e reencontrava, com simpatia, os comprovantes de feminilidade daquela nudez de pouca exposição nas praias, porque de coloração toda uniforme. (A essa conclusão eu já chegara, quando a examinava pela retaguarda.) Não era, porém, nesses detalhes que eu estava empenhado. Era nos olhos, as clássicas janelas da alma. Se estava louca, se estava com ódio, se estava com medo, se estava feliz, se estava drogada, se apenas com vontade de ser presa (no Meyer seria) ou de sair no jornal (hoje, com libaneses, palestinos, irlandeses e montoneros à solta raramente sobra espaço para uma simples mujer desnuda). A operação, porém, não era fácil. Um gentleman não olha, não vê. No Hyde Park é assim. Eu, como todo sul-americano complexado, faço questão de parecer um gentleman e, como todo gentleman, raramente procedo como se o fosse. Mas, ainda assim, não quis ser muito óbvio. Caminhando um pouco à frente, como viessem alguns plebeus, digo pedestres, em sentido contrário ao nosso, meu e dela, e como eles esboçassem um sorriso sem requinte maior, encarei-os com o mesmo olhar de censura que já aplicara no rapaz do malote de escritório e, ato contínuo, olhei-a com a digna solidariedade do homem civilizado que mora no Leblon e já esteve em Saint-Tropez. Seus olhos vieram ao encontro dos meus. Olhava-me, contudo, com absoluta naturalidade, como se ela estivesse vestida ou como se ambos estivésse-mos nus. Nada mais diziam seus olhos, os mais cinzentos e mudos que já vi na minha vida. Para ela, tanto se lhe dava que eu estivesse ou não ao seu lado, solidário ou não. Pouco lhe importava que houvesse um guarda lá na esquina, evidentemente incrédulo, mas que não a prenderia nem tomaria partido, com certeza, porque inspetor de trânsito não tem o direito de sair de sua alçada específica para se meter na vida particular dos pedestres, desde que eles não estejam perturbando o tráfego. E ela já o teria visto, por acaso? Se o vira, seus olhos não o diziam, nem interessados pareciam. Como não estavam interessados naquele senhor que vinha ao nosso encontro, mergulhado num jornal aberto, e que pareceu levar o maior susto do mundo quando se viu de esbarrão no corpu nu, mas pediu desculpas educadamente e recomeçou a caminhada mergulhado na leitura e darido novos esbarrões e topadas. Devia estar lendo, com certeza, a reportagem anunciada na manchete que tanto sensibilizara o meu coração de brasileiro: em 1982, no máximo, seremos auto-suficientes em petróleo .


LOUCA, REBELDE, ENGAJADA? QUAL SERIA O MOTIVO DAQUELA NUDEZ TÃO DIGNA?

Ela continuava no seu tranqüilo caminhar. "Talvez nem saiba que está nua", cheguei a pensar. Talvez nem mesmo soubesse que havia o resto do mundo e que o Brasil é uma ilha de paz num mundo conflagrado. Com a maior indiferença, deixou que alguém, uma senhora de verde, com ar de parente constrangido, lhe tocasse no braço e lhe dissesse o que eu em vão tentei ouvir, já sem preocupação nenhuma de parecer cavalheiro. Com a mesma indiferença deixou-se levar. Deu alguns passos, conduzida sempre, dirigiu-se para a entrada de um belo edifício, no qual eu já vendi quatro apartamentos. Vi-a atravessar o pequeno jardim com piso de pedra portuguesa, subir docilmente a escada de mármore italiano, aproveitando-se da oportunidade para não demonstrar o menor interesse pelo espanto do porteiro. Com certeza saíra a espairecer e já vinha voltando...


Parei diante do edifício, com alguns populares, para vê-la sumir atrás do majestoso portal de cristal importado. Depois, segui. E já estava quase na esquina quando. vejo dois garotos de praia que se encontram. Um deles, excitadíssimo:


— Você viu que barato? Pegaram a avó do Roberto no meio da rua, completamente nua, xingando a mãe de todo o mundo!


Devia ser ela. Só podia ser. Já estavam, porém, inventando novela. Eu vi. A pobre não estava xingando ninguém. Vinha até muito calma, serena... Mas, em matéria de avó, tenho visto muito poucas tão bem apanhadas ...


ILUSTRAÇÃO ALBERTO NADDEO


ORÍGENES LESSA costuma contar que, lá pelos anos 20, prometeu para si mesmo: "O Brasil ainda há de aprender o meu nomer, um desabafo ocorrido após a leitura dos jornais que noticiaram a coroação de Coelho Neto como Príncipe dos prosadores brasileiros. Orígenes Lessa foi o estudante encarregado de saudar o poeta e, nos jornais, seu nome virou Diógenes, Eurígenes, Henrique, etc. Hoje, além de ter conquistado muitos leitores com sua obra já bastante extensa, Orígenes Lessa é conhecido pelos milhões de espectadores da novela O Feijão e o Sonho, extraída do seu romance de maior sucesso, publicado em 1938. Nascido em Lençóis Paulista a 12 de julho de 1903, passou a infância no Maranhão, período que utilizou como matéria-prima para o romance Rua do Sol (1955). Seu primeiro livro foi uma coletânea de contos, O Escritor Proibido (1929), seguido por Garçon, Garçonette e Garçonnière e A Cidade que o Diabo Esqueceu. Orígenes Lessa foi um dos pioneiros da ficção-científica no Brasil, com seu A Desintegração da Morte (1948). Entre seus livros mais famosos, estão: Balbino, Homem do Mar (1960), Zona Sul (1963), A Noite sem Homem (1968) e Beco da Fome (1972). Contista sensível e extremamente agudo em retirar o poético ou o grotesco do cotidiano, seu estilo todo pessoal está presente em A Mulher Nua, que marca a estréia do autor em Homem.



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