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JORGE AMADO | NOVEMBRO, 1980

Playboy Entrevista



Uma conversa franca com o mais importante escritor brasileiro, que está completando 50 anos de vida literária e 17 milhões de livros vendidos!

Há cinqüenta anos; no mês de dezembro de 1930, Jorge Amado, então um rapaz de 19 anos, concluía o manuscrito original de seu primeiro romance, O País do Carnaval. Nesses cinqüenta anos de vida literária, ele se tornou o escritor brasileiro mais lido do país e o mais traduzido no mundo todo (são mais de trezentas traduções, em 39 línguas).


Ao longo dos seus trinta livros — romances, contos, biografias, viagens, teatro, uma história para crianças — uma constante se apresenta: uma preocupação permanente pela sorte do povo sofrido da sua Bahia natal, preocupação que o faz auto-retratar-se como "romancista de prostitutas e vagabundos". Convencido de que jamais foi incoerente em suas posições ideológicas (que incluíram desde uma ativa militância no Partido Comunista, pelo qual chegou a se eleger deputado federal em 1945, pelo Estado de São Paulo, a uma vigorosa defesa dos artistas baianos atingidos pelas chamadas patrulhas ideológicas), Jorge Amado tem, como disse no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (1961), "a alegria de ter conservado jovem o coração, por não ter rompido jamais a unidade entre minha vida e minha obra".


"Romancista da poesia do povo", como escreveu o crítico Antônio Cândido, Jorge Amado é também o cantor maior da vida baiana. Nascido em Ilhéus, a 10 de agosto de 1912, sua infância e adolescência deram-lhe uma vivência que se reflete por toda a obra. A infância, nas terras do cacau, inspirou-lhe Cacau, Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus e Gabriela, Cravo e Canela. A adolescência, vivida nas ruas de Salvador, quando ele se misturava com o povo do cais, dos mercados e feiras, dos candomblés e festas populares, foi a raiz de livros como Jubiabá, Capitães da Areia e Mar Morto.


Publicado seu romance de estréia, O País do Carnaval, em 1931, já na sua segunda obra de ficção, Cacau, ele tem seu primeiro entrevero com a censura: a polícia apreende a edição. Isso se repetiria, com monótona insistência, durante a ditadura getulista, com ABC de Castro Alves, Suor, Capitães da Areia, etc., culminando em 1943 com a queima, em praça pública, na sua Salvador, de1.694 exemplares de vários dos seus livros, por ordem do Comando da VI Região Militar.


Quer por razões políticas, quer por razões morais (Jorge Amado era considerado um escritor que, além de usar palavrões nos seus textos, atentaria contra a moral e os bons costumes pelas suas descrições realistas de cenas "fortes", como se dizia na época), seus livros eram tratados como uma ameaça às instituições durante o Estado Novo, e continuariam sendo malvistos até bem depois do fim da era getulista. Inimigo declarado de toda forma de censura, Jorge Amado, em março de 1970, assestou um golpe decisivo contra a censura prévia de livros, durante o governo Medici, quando — juntamente com Érico Veríssimo — declarou publicamente seu repúdio à medida proposta pelo então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, dizendo que não publicaria mais livros no Brasil caso a censura prévia entrasse em vigor.


Essa luta e sua vocação oposicionista valeram-lhe várias prisões, sendo a última em 1945, juntamente com Caio Prado Júnior e Oswald de Andrade. Seu mandato de deputado federal foi cassado em 1948, quando o PC foi declarado ilegal, medida seguida pela invasão de sua casa em Nova Iguaçu, Estado do Rio de Janeiro, por agentes do DOPS. A violência levou-o a partir para a França. Só voltaria ao Brasil quatro anos depois (nos anos seguintes, fez várias viagens à Europa).


Quando, em 1958, Jorge Amado publica Gabriela, Cravo e Canela, esgotando em quinze dias os 20.000 exemplares da primeira edição, ele surge como fenômeno editorial. A partir daí, todo livro que publica se torna imediatamente um best-seller (com seus exemplares indo somar-se à extraordinária cifra de 17 milhões de exemplares, em que é estimada a edição de sua obra).


O aparecimento de Gabriela ocorre mais ou menos próximo do seu afastamento do Partido Comunista Brasileiro, fato que lhe valeu uma série de críticas por parte de intelectuais de esquerda. Logo em seguida, sua entrada para a Academia Brasileira de Letras veio engrossar o número dos que atacaram sua obra e suas posições ideológicas.


Dezenove anos mais tarde, porém, essas críticas — embora não tenham cessado de todo — diminuíram bastante, ante a atitude de franca oposição do escritor às medidas políticas tomadas pelos governos pós-1964, como o AI-5. E uma revisão de sua obra já, começou, com dezenas de teses, aqui e no exterior, sendo preparadas. O último livro de Jorge Amado, Farda Fardão, Camisola de Dormir, publicado em 1979, ainda é best-seller em todo o país, enquanto se espera seu próximo romance, talvez A Guerra dos Santos, que ele vem escrevendo há vários anos.


Hoje, Jorge Amado é praticamente o único escritor brasileiro a viver de literatura; mora em Salvador, onde tem duas casas: uma na rua Alagoinhas, no Rio Vermelho, e outra, de praia, na Pedra do Sal, em Itapoã. Ali, foi encontrá-lo o editor de PLAYBOY, Geraldo Galvão Ferraz, para uma entrevista de sete horas de duração, uma rara concessão do escritor, cujas entrevistas são quase sempre dadas por escrito.


Com os pés calçados em singelas sandálias havaianas, apoiadas na terra baiana que tanto cantou, Jorge Amado (ao lado de Zélia, com quem tem dois filhos, João Jorge e Paloma) falou sobre sua obra e sua vida, enquanto o sol de Itapoã subia e descia no céu, refletido — com o mar e os coqueiros — nos vidros do terraço gostosamente baiano (como o papo de Jorge Amado) da sua casa, na rua que tem o lírico nome de Lagarto Azul.


PLAYBOY Você ainda se considera "apenas um baiano romântico e sensual"?


JORGE AMADO Eu creio que sim. Como fiz essa autodefinição em 1958, é claro que hoje sou um baiano romântico e sensual mais velho.


PLAYBOY Sendo, antes de mais nada, baiano, você incluirá a Bahia no seu próximo romance?


JORGE Tenho umas três ou quatro idéias que estou desenvolvendo... Um livro começado há bastante tempo. A Guerra dos Santos, em que pretendo fazer um corte da sociedade baiana, especialmente dos descendentes de escravos, a partir praticamente da morte e da eleição de uma mãe-de-santo. Porque a guerra de santos acontece quando a eleição de uma mãe-de-santo não é pacífica. Há várias candidatas e os santos lutam entre si. É um livro que já comecei e não me senti tão amadurecido com ele a ponto de levá-lo adiante. Uma parte do que quero dizer está clara, a outra não. [N. da R.: um trecho de A Guerra dos Santos foi publicado no número 1 de nossa revista.]


PLAYBOY E as outras idéias?


JORGE Gostaria de escrever uma pequena história com a temática do cacau. Já tratei dessa temática em vários momentos da minha vida: no começo do meu trabalho de romancista, em Cacau; mais ou menos quando comecei minha maturidade, com Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus; e vinte anos mais tarde, com Gabriela. Mas isso ainda é uma idéia muito fugidia na minha cabeça.


PLAYBOY Você tem realmente um interesse profundo pelas coisas da Bahia ou isso é só para consumo externo?


JORGE Eu não faço nada para consumo externo. Sou um baiano nascido aqui, que vivi toda minha infância e juventude aqui, jamais deixei inteiramente a Bahia. O tempo mais longo que estive fora foram os cinco anos que vivi na Europa, de 1948 a 1952. Tenho uma profunda ligação com a vida baiana, sobretudo a popular. Logo, com todo esse complexo de coisas de ordem folclórica, religiosa, pitoresca da vida baiana. Conheço efetivamente estas coisas, de dentro. Tenho um conhecimento vivido delas. Não fosse assim eu não poderia escrever sobre elas.


PLAYBOY Você é um materialista e também, no candomblé, otum arolu do terreiro do Axê Opô Afonjá. Dá para conciliar?


JORGE Esta pergunta está respondida por um personagem meu, o Pedro Archanjo, no romance Tenda dos Milagres. Ele é um homem do povo que se torna um cientista. Não é uma invenção; é uma recriação da realidade (o exemplo mais próximo de Pedro Archanjo é Manuel Querino, personagem real no qual foi inspirado). Archanjo, um homem que vem do candomblé, torna-se materialista através do estudo. Quando um professor da faculdade de medicina pergunta-lhe como ele consegue ser as duas coisas, responde que em nenhum momento deixou de ser do candomblé, que o materialismo não o limita.


PLAYBOY E o seu materialismo nunca o limitou?


JORGE Uma das coisas realmente dramáticas da nossa realidade cultural, no Brasil de hoje, é a extrema limitação que as posições de ordem ideológica trazem àqueles que as tomam. Quando jovem, vivi num tempo em que fomos extremamente dogmáticos e estreitos em nossas concepções, sobretudo aqueles que, como eu, eram stalinistas. No entanto, creio que hoje essa estreiteza é ainda maior. Cada pequeno grupo se revolta contra toda e qualquer tentativa de ir além de seus limites. Eu creio que tudo que é seita é horrível. Aprendi isso através de uma dura experiência; acho que deforma o homem. Então, costumo

dizer que sou materialista, mas acredito em milagres, quando esses milagres são feitos pelo povo.


PLAYBOY Esse horror ao sectarismo é que explica sua defesa de Gil e Caetano contra as patrulhas ideológicas?


JORGE Eu os defendi no seu direito de assumir a posição que quisessem. O que eu achei absurdo foi atacarem um homem como Caetano, chamando-o de traidor. Traidor de quê? Ninguém pode negar a atuação de Caetano, o que significam a sua criação e a sua posição de oposição à ditadura estabelecida no Brasil. Acho que nesse período nenhuma palavra foi tão revolucionária quanto a de Caetano: "É proibido proibir". E defendi, ao defender a ele e a Gil, e a muita gente no Brasil, o direito de a pessoa pensar pela sua cabeça. Eu já pensei pela cabeça dos outros e sei como é terrível isso. Pago um preço muito alto para pensar pela minha cabeça. Levo pancada de todos os lados, mas acho que ainda assim é barato.


"Eu já pensei pela cabeça dos outros e sei como é terrível. Pago um preço alto para pensar pela minha. Mas vale a pena"

PLAYBOY Você acha que vai levar pancada com seu projetado livro sobre Angola?


JORGE Esse livro de Angola é uma coisa jornalística que nem sei se farei. Nem como. Eu estava em Angola no ano passado, pouco antes da morte de Agostinho Neto. Nunca quis ir a Angola antes da independência, apesar dos muitos convites que recebi. A simples ida significaria uma aceitação da situação colonial. Mas estive lá um tempo curto, dentro de um espaço limitado, porque não era fácil viajar por lá; assim, meu conhecimento da realidade angolana é pequeno. Mas eu gostaria de fazer alguma coisa sobre Angola, para ser útil ao povo angolano que está saindo do zero para construir uma vida nova. Não quero, porém, fazer um livro só romântico, poético, muito menos de oba-oba. Mas não quero fazer algo prejudicial a Angola. Por exemplo, em todo o país a que fui depois de sair de Angola, a primeira pergunta era: e os cubanos?


PLAYBOY Sim, e os cubanos?


JORGE É uma pergunta séria. Não acho ótimo que os cubanos estejam em Angola, pois os angolanos é que devem decidir aquilo lá, em princípio. Mas não vi cubanos em Angola, ou melhor, mal os vi de longe, no quartel deles. Não os vi se envolvendo na vida angolana, não vi nenhum cubano em ministérios, em postos culturais, em manifestações de massa. O que me faz vencer minha natural — e creio que justa — pouca simpatia pela presença de tropas estrangeiras em Angola é que, se não fossem os cubanos que chegaram lá, Angola seria hoje pior que uma colônia portuguesa: seria um território da África do Sul...


PLAYBOY — Jornalismo não está em seus projetos a curto prazo. E um livro de memórias?


JORGE Não. Até o momento não pretendo escrever um livro de memórias. Eu tive uma vida extremamente rica de acontecimentos. Vivi a vida de forma muito ardente e tive todas as oportunidades. Tive sobretudo oportunidade de conhecer homens (no bom sentido, de homens e mulheres) extremamente apaixonantes quanto à sua personalidade. Tive a honra de conhecer e ter vivido a intimidade de alguns dos homens mais importantes do nosso tempo, dentro da vida cultural. E vivi acontecimentos como o Estado Novo, a guerra, o pós-guerra, a guerra fria, o stalinismo, a luta pela paz. Seria o homem ideal para escrever um livro de memórias.


PLAYBOY E por que não?


JORGE Eu não tenho nenhuma vocação para importante. Não dou, por isso, muita importância às coisas: sempre vejo o lado mais divertido delas. Por exemplo, se fosse escrever memórias, gostaria de contar as pequenas coisas que talvez fossem surpresas enormes para o leitor, mas ficaria nesses acontecimentos aparentemente pequenos na vida do homem. Ilya Ehrenburg, de quem fui grande amigo, me dizia sempre: "Nós somos escritores que não podemos escrever livros de memórias". Mas ele dizia isso devido à nossa vivência no período stalinista. Porém, mal começou o degelo na União Soviética, ele danou-se a escrever livros de memórias (nada menos que seis, um deles com um capítulo sobre mim). Mas isso não me tenta, não. Enquanto eu puder tirar prazer de escrever romances, acho mais engraçado contar histórias do que falar de mim.


PLAYBOY Você já se definiu como "romancista de vagabundos e prostitutas". Continua achando isso?


JORGE Sim. O que é básico nos meus livros e que dá unidade à minha obra é uma fidelidade aos interesses do povo, do primeiro ao último livro publicado. Eles variam, mas há uma série de coisas permanentes. Não posso dizer, por exemplo, que eu tenha sido um romancista do proletariado, da classe operária. Em Cacau, pergunto: será esse romance proletário? A pergunta é de um menino de vinte anos, pensando que sabia das coisas e não sabia nada. A classe proletária nem existia no Brasil como tal. Existiam trabalhadores. Mas ela existe agora e agora podem surgir os grandes romancistas de São Paulo, que ainda não teve tão grandes quanto deveria.


PLAYBOY Você liga para o que a crítica diz dos seus livros?


JORGE Há crítica e crítica. Sou um homem elogiado e terrivelmente atacado. Fui muito atacado quando jovem porque meus livros eram considerados políticos. Hoje me atacam muito porque acham que não estou escrevendo livros políticos. O que reflete uma idiotice geral o tempo todo. Eu leio pouco a crítica. Em geral, porque sei o que vai ser dito. Em princípio, não me preocupo muito com a crítica porque acho que no Brasil ela se desenvolveu dentro de uma situação política que levou muito mais ao debate que à convivência, mais ao ranger de dentes que à cordialidade.


PLAYBOY A crítica diz, por exemplo, que seus livros têm cada vez menor elaboração artística.


JORGE Não sei. Não sou crítico literário e nem sequer meu leitor. Faço o que posso, dentro de minhas possibilidades. Creio que conheço meu ofício; faz cinqüenta anos que o exerço. Minha experiência de vida é grande e tenho experiência literária. Nunca tive preocupação de qualidade artística, de linguagem. Eu não sou Guimarães Rosa. Não sou nenhum artista. Deus me livre de querer botar plumas que não me cabem!


"Não sou Guimarães Rosa. Não sou nenhum artista. Deus me livre de querer botar plumas que não me cabem..."

PLAYBOY Outra acusação que se faz é a de que você não passa de um escritor comercial.


JORGE Eu sou um escritor profissional. E, exatamente por isso, sou um escritor anticomercial. Se eu fosse um escritor comercial, com a facilidade que tenho de fabulação, eu faria um livro de seis em seis meses. Os leitores vivem reclamando livros meus... Um exemplo: quando escrevi Farda Fardão, Camisola de Dormir, antes de partir para a Europa, lutei com meu editor pra ele diminuir ao máximo a tiragem, porque achei que esse livro não iria vender. E vendeu — está vendendo — em proporção brutal. Se eu fosse um escritor comercial não viveria perdendo as solicitações que tenho para escrever. Só escrevo quando tenho alguma coisa para dizer.


PLAYBOY — Você acha que as pessoas compram seus livros apenas para se divertirem?


JORGE — Tenho uma imensa correspondência de leitores que dizem que lêem meus livros por causa dos problemas de que trato neles. Estes dão os problemas e prazer de leitura também. Mesmo algumas pessoas que me atacam não negam certo prazer de leitura. E eu acho que nos meus livros sempre tem uma coisa que é a realidade brasileira vista como ela é.


PLAYBOY — Isso seria uma das razões do seu sucesso?


JORGE — Eu tenho sido muito criticado porque nos meus livros o povo ri, dança, faz festa, se diverte, os homens e as mulheres gostam de ir para a cama, mas é assim que é no Brasil, não de outra maneira. Outro motivo por que meus livros são lidos é que eles não levam ao desânimo, não conduzem ao pessimismo. Nos meus livros, o povo sempre ganha.


"Meus livros são lidos porque neles não há desânimo. O povo sempre ganha"

PLAYBOY — Sua literatura tem defeitos?


JORGE — Muitos. Eu escrevo uma língua que é quase falada pelo povo, não aquela língua literária; não sou um burilador da língua. Outro defeito: os meus livros inflam, crescem, eu tenho uma tendência ao romanesco. Apenas começo uma história, vem um personagem, outro, as coisas começam a se enrolar, e eu gosto disso...


PLAYBOY — É isso, então, e não a vontade de ganhar mais, que torna grandes os seus livros?


JORGE — Às vezes, dizem que escrevo livros grandes porque são mais caros. Mas não é verdade: é que eu não me contenho, vou embora, sou um escritor gordo, como se dizia. Graciliano, meu, prezado e fraterno amigo, era um escritor magro. Sou um escritor gordo, da mesma maneira que José de Alencar (não que eu queira me comparar a ele, Deus me livre!) era gordo, e Machado de Assis um escritor magro...


PLAYBOY — Você é vaidoso do seu sucesso?


JORGE — Ninguém pense que me considero realizado ou vaidoso dos meus livros. Tenho muitos defeitos, mas a vaidade não é um deles. Não dou nenhuma importância à importância. Isso até me chateia e perturba; às vezes é um peso o fato de ser conhecido, popular. Posso dizer que sou estimado, se ando na rua e todo mundo vem falar comigo e me quer bem. Certa vez, eu disse que tenho mesa posta em todo lugar a que chego no Brasil. Tenho satisfação em saber que isso é verdade. Nunca tive isso de achar que sou um escritor formidável.


PLAYBOY — Você acha difícil escrever?


JORGE — Eu pensava, quando era jovem, que era melhor escritor. Hoje, acho que faço o meu esforço. E escrever tornou-se extremamente mais difícil, me custa muito mais trabalho.


PLAYBOY — Você já se sentiu bloqueado para escrever?


JORGE — Toda vez que eu vou escrever um livro. Levo anos para amadurecer um romance. Amadureço o que quero dizer, vejo as figuras, os ambientes, alguns relacionamentos. Mas não sei nada da história, do enredo, como se dizia antigamente. Todo começo de livro para mim é uma tragédia. Não sei como começar e, até que me chegue, gasto um bocado de papel, começo a fazer um tipo, não dá, um esboço... até pegar a coisa. Sempre há um momento em que eu digo: eu não sei mais fazer isso.


PLAYBOY — Que livro seu você prefere?


JORGE Mar Morto me toca muito porque está ligado à minha adolescência na Bahia; vivi muito com o pessoal de saveiro. Isso está em três livros: Mar Morto, Jubiabá e Capitães da Areia. No fundo, Mar Morto e Capitães da Areia saem de Jubiabá; são capítulos que viraram romances. Depois, tenho certa estima por Terras do Sem Fim e pelas duas histórias de vagabundos — Os Velhos Marinheiros e Quincas.


PLAYBOY — E personagens?


JORGE — Talvez seja Pedro Archanjo, de Tenda dos Milagres. Por quê? É esse problema de raça, de preconceito racial. Tenda é um livro que tem para mim uma importância muito grande, pois nele eu disse muita coisa que queria; pude jogar ali o problema da "estátua", da imagem fabricada pela sociedade de consumo; nele pude mostrar um homem que foi fiel ao povo. até o fim, que não foi um herói — é uma coisa que me amedronta; hoje tenho horror a herói. E há gente que gostaria que eu continuasse a fabricar heróis. Archanjo é o personagem que mais me satisfaz. Gosto também do capitão Vasco Moscoso; me toca porque é a capacidade do homem sonhar e ir além da realidade.


PLAYBOY — O crítico italiano Giorgio Marotti escreveu: "No fundo, a esperança é que é o grande personagem de Jorge Amado, a esperança de um mundo melhor, esperança de que as coisas mudem". Você concorda?


JORGE — Acho que de meus livros resulta essa sensação de esperança. Não sou pessimista em relação nem ao homem, nem à vida. Por mais terrível que o quadro possa parecer nesse momento, estamos andando para a frente.


PLAYBOY — Você cria muitos personagens a partir de pessoas reais. Por quê? É mais fácil?


JORGE — O personagem é sempre uma soma de pessoas da vida real. Acho que nenhum personagem é totalmente imaginado. Mas também não há nenhum de que se possa dizer: fulano de tal é inteiramente esse personagem. Em Dona Flor, por exemplo, pus muitos amigos meus daqui da Bahia, mas, mesmo quando se faz isso, o sujeito entra no romance e passa a participar daquela outra realidade, deixa de ser a figura da vida real. Acho que sou incapaz de imaginar um personagem.


PLAYBOY — Você nunca deixou que seu primeiro romance, O País do Carnaval, fosse traduzido. Por quê?


JORGE — É um livro que escrevi aos 18 anos, demasiado frágil na estrutura. Já me propuseram traduções, mas não aceitei. Meus três primeiros livros, O País do Carnaval, Cacau e Suor, são anotações de um aprendiz de romancista.


PLAYBOY — E por que O Mundo da Paz não integra suas obras completas?


JORGE O Mundo da Paz é um pretenso livro de viagens pela União Soviética e pelas democracias populares. Escrito em 1949, publicado em 1950, marcado pelo stalinismo e pela guerra fria. É um livro muito pouco objetivo na visão do mundo socialista, que deixa de lado tudo que pudesse dar lugar à menor crítica que fosse. Fui processado quando o livro saiu, até que um juiz arquivou o processo com uma sentença perfeita: "Esse livro não é subversivo; é sectário". O livro circulou, teve cinco edições e, em 1953, não permiti mais reedições. Os países estavam em mutação e ele não apresentava um quadro real. Não me pareceu correto manter o livro em circulação, aquela coisa apologética.


PLAYBOY — Mas você mantém seu romance mais apologético, Os Subterrâneos da Liberdade.


JORGE — Mantenho sim. É um livro com influência muito grande dessas circunstâncias, stalinismo e guerra fria. Eu o mantenho porque, apesar de tudo que possa ter de defeitos, no sentido de influência, é um livro muito sadio no sentido de luta contra a opressão, pela liberdade. Naquele momento, todos os escritores com minha posição tiveram de sofrer essa influência. Os heróis do livro talvez estejam distantes de uma realidade, são demasiado heróis, corretos demais, e os homens do outro lado são inteiramente maus. E ninguém é inteiramente mau nem bom.


PLAYBOY — Por que você deixou o Partido Comunista, depois de três anos de militância?


JORGE — Eu não rompi com o Partido Comunista; apenas deixei de militar, no momento em que vi que tinha de decidir entre escrever e militar. Eu era deputado, era um funcionário do Partido (a única diferença que eu tinha com os outros funcionários era que eu não recebia dinheiro), tinha deixado de escrever. Passei dez anos praticamente sem escrever. Nesse momento, senti que ou me dispunha a não ser mais escritor, a fazer uma vida política pela qual não sentia nenhuma atração maior, ou escreveria. Logo depois, em fevereiro de 1956, houve o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, que rompe com o PC. Como a coisa foi relativamente próxima, todo mundo pensou que eu saíra naquele estouro, mas não: aquilo não tinha nenhuma novidade para mim, eu estava muito por dentro.


PLAYBOY — E como os intelectuais do PC reagiram?


JORGE — Uma parte do PC tomou uma posição violenta contra mim, outra não. Disseram coisas terríveis, que o Partido tinha me feito como escritor e que agora eu ia acabar. Mas não foi o que aconteceu. Não há partido, não há editor, não há imprensa, não há crítica que faça um escritor.


PLAYBOY — Houve reação oficial do PC contra você?


JORGE — Nem podia haver, ainda mais com a situação após o XX Congresso. Mas houve muita gente, dentro do PC, que me atacou, inclusive amigos meus.


PLAYBOY — E o Prestes, o que disse?


JORGE — O que ele disse, não sei, mas nunca soube da menor coisa dele contra mim. Eu sou amigo de Prestes, admirador, e escrevi um livro sobre ele, O Cavaleiro da Esperança. É uma apologia de Prestes, um livro que escrevi na luta pela anistia, na luta contra o Estado Novo; voltou a circular agora, também em plena luta pela anistia.


PLAYBOY — Esse livro foi iniciativa sua ou foi encomendado pelo PC?


JORGE — Foi de minha iniciativa. Achei que era a melhor maneira para eu poder colaborar com a anistia. Ademais eu tinha por Prestes uma admiração imensa. Continuo a ser um grande admirador dele. Acho que é uma grande figura histórica do Brasil que entrou para a

história com a Coluna e ficou para sempre. Pode-se discordar do Prestes, mas não se pode negar a importância desse homem. Agora, também sou muito amigo do Giocondo Dias, uma figura formidável. No momento, dentro da briga, da divisão do PC, acontece que sou muito amigo dos dois. Aliás, sempre digo que dentro do PC conheci algumas das melhores pessoas que encontrei na vida. E algumas das piores, também. E aprendi muito no PC; foi uma experiência importante em minha vida, sobretudo durante os anos que passei na Europa.


PLAYBOY — O PC, com o chamado "realismo socialista", prejudicou sua obra?


JORGE — Meu livro de realismo socialista é Os Subterrâneos da Liberdade. Tem defeitos de branco e preto, disso e daquilo. Escrevi Os Subterrâneos assim porque eu achava que Stalin era o maior homem do mundo, o pai de todos nós; o que ele fazia era para o bem da humanidade. Mas, depois, deixei de achar. Por falar nisso, o realismo socialista tinha umas bobagens, como por exemplo aquele puritanismo que sempre existiu dentro da literatura soviética: tinha-se a impressão de que homem e mulher não dormiam juntos. Aliás, em 1954, no Congresso dos Escritores, eu disse que as futuras gerações soviéticas iriam pensar que os filhos vinham no bico da cegonha. Agora, sou totalmente contra a influência oficial, de qualquer tipo. Do Estado, que é a pior de todas, de partidos, de grupos...


PLAYBOY — E a censura?


JORGE — Sempre lutei contra ela, da forma mais completa, durante o Estado Novo. Nessa época, fui o escritor mais vítima da censura. Por oito anos, meus livros não apareceram nas livrarias brasileiras. Capitães da Areia foi queimado, meus livros foram todos proibidos. Só no fim da guerra, às vésperas da vitória é que meus livros voltaram a circular. Contra a censura recente, lutei, lutamos; eu e Érico Veríssimo fizemos aquela declaração que impediu a censura prévia de livros. Eu sou sobretudo contra a Censura aqui, porque é o país em que escrevo. Mas sou contra a censura em qualquer parte do mundo. Porque há muito sujeito que é contra a censura porque está sendo atingido. Mas se ele estiver no poder, ele vai censurar os outros. Acho que só o povo tem o direito de censurar, no sentido de não ler, não comprar, não ir ao teatro, não ir ao cinema. Fora disso, é uma violência, venha de onde vier. Não há ideologia, não há o que dê direito de usar essa violência.


PLAYBOY — Você já foi deputado federal por São Paulo. Acha que o escritor deve intervir na política?


JORGE — É uma coisa inteiramente individual. Há escritores que têm grande vocação política e gostam da política, outros não. Eu fiz vida política, partidária, mas tinha horror àquilo, tenho uma espécie de alergia ao poder. Acho que é coisa de cada um. E como ser engajado ou não. Tomar uma posição de luta contra a opressão, contra as mazelas que decorrem da sociedade capitalista, só engrandece o escritor. Mas não é uma coisa obrigatória. Balzac nunca tomou essa posição e nem por isso sua obra deixa de ser revolucionária.


PLAYBOY — Com você aconteceu uma das piores coisas que podem ocorrer com um escritor: a queima dos seus livros. Como foi?


JORGE — Eu estava preso em Manaus (passei um mês preso em 1937, antes do golpe). Às vésperas de ser preso, soube da apreensão de Capitães da Areia. E das fogueiras em São Paulo. O livro foi queimado em vários lugares, junto com outros que só foram queimados por terem a palavra "socialismo" no título. Uma coisa de um obscurantismo...


PLAYBOY — Você acha que os anos de censura e opressão influíram muito na cultura brasileira?


JORGE — Não concordo com quem apresenta esses anos de ditadura como negativos para a nossa cultura, porque a ditadura tinha posição anticultura. Veja como certos setores tomaram o desafio e levaram a coisa adiante. No teatro aconteceu muita coisa tola: a contestação é sempre perigosa, pois leva a alguns exageros ridículos. Mas houve algumas informações sérias, autores como Vianinha, Guarnieri e Plínio Marcos, uma quantidade enorme de jovens autores. Na música popular, tivemos a prova de que a censura não pode liquidar um criador. E o caso de Chico Buarque, talvez o sujeito mais violentado pela censura nesses anos todos. Mas realizou uma obra enorme apesar disso. Na música popular, a contestação teve uma fisionomia muito clara. Aí você tem Chico, Caetano, Gil e uma série de outros. Na literatura, houve uma certa tendência elitista, mas ao mesmo tempo surgiram muitos autores mais jovens, contrários a essa tendência, no sentido de buscarem uma realidade e de terem um grande espírito profissional, consciência profissional do seu ofício.


PLAYBOY — Que autores e que livros você destacaria?


JORGE — Tem muita gente... Há alguns escritores jovens muito importantes, surgidos nesse período. O João Ubaldo Ribeiro, o Moacyr Scliar — que trouxe um elemento novo à literatura brasileira, o humor Judeu —, o Márcio Souza... James Amado, meu irmão, que está mais a par do que eu, disse-me que em São Paulo tem um rapaz, o Raduan Nassar, que ainda não li, mas de quem ele é fã. Gosto também de Antônio Torres.


PLAYBOY — Você é sempre apontado como candidato ao Nobel. O que acha?


JORGE — O Nobel é uma chatice. Não vai nenhum pernosticismo nisso. Se me dessem o Nobel, eu receberia com o maior prazer. O que me chateia é que às vezes quase me acusam de não ganhá-lo. Não sou eu quem dá o Nobel! E não vejo nenhuma razão para a Academia Sueca me dar o Prêmio Nobel. Olho e vejo por aí cinqüenta, cem escritores vivos com relação aos quais é absurdo que eu tenha o Nobel e eles não. Mas uma coisa eu acho. A literatura brasileira merece um Nobel. No dia em que o derem a Carlos Drummond de Andrade, nós todos estaremos muito bem premiados. Meu candidato é Carlos Drummond de Andrade. Sei que ele se chateia muito com isso, porque também cobram dele. Cobram! Por que diabo é que cobram isso da gente?


"No dia em que derem o Nobel a Drummond, nós todos estaremos muito bem premiados..."

PLAYBOY — Você ganha bastante dinheiro como escritor?


JORGE — Os escritores ganham pouco. Num país como o Brasil, menos ainda, porque em geral a coisa não é profissional. São raros os que vivem de seu trabalho literário; eu sou um deles — ganho para viver com minha família, modesta e dignamente. As coisas que custam muito dinheiro não me atraem. Inclusive não faço vida social. Porém, sempre que posso, viajo. Geralmente, emprego nisso direitos estrangeiros. Não me queixo e desejo que muitos escritores ganhem dinheiro, pois, no dia em que a literatura for profissional, acaba essa coisa suburbana de competição.


PLAYBOY — Na Editora Record, você ganha mais que os outros autores.


JORGE — A mesma porcentagem que ganhava na Martins: 15% do preço de capa [N. da R.: os outros ganham 10%].


PLAYBOY — Você já levou algum calote de editor?


JORGE — O que eu tenho é muita edição pirata por esse mundo afora. Dos meus oito livros publicados na Grécia, só recebi direitos de Os Subterrâneos. E bem pequenos. Em turco, eu soube por acaso que tinha sete livros. Eu dizia que a única grande língua em que eu não fora publicado era o japonês. Oswaldo Peralva foi como correspondente da Folha de S. Paulo para o Japão e mandou-me quatro dos meus livros em japonês, sendo que Seara Vermelha já tinha três edições. Em Portugal saiu uma edição pirata da vida de Prestes logo depois da revolução de abril, etc.


"Eu tenho muita edição pirata por esse mundo afora. Em turco, eu soube por acaso que tinha sete livros"

PLAYBOY — Suas histórias têm muitas adaptações no cinema e na televisão. O que acha delas?


JORGE — Vi todos os filmes, menos um, o de Terras do Sem Fim, feito em 1948, quando eu estava na Europa. Os outros, vi uma vez. Televisão, vi muito pouco. Em todas as adaptações, há alguma coisa que eu quis dizer e em todas elas há coisas que não são minhas. O que é natural: adaptação, a meu ver, deve ser recriação, não pastiche. Por isso, nunca me envolvo. Nas vezes em que me envolvi — o menos possível, aliás — me dei mal. Por exemplo, na filmagem de Seara Vermelha, quando o diretor Alberto d'Aversa me mostrou o script, pedindo minha opinião, eu disse que tinha restrições de fundo, bem como sobre certos detalhes; ele buliu em alguns detalhes, não buliu em nada de fundo e botou meu nome, como se o roteiro fosse dele e meu! Dei palpites no Tenda dos Milagres, feito pelo Nélson Pereira dos Santos; ele veio aqui, discutiu muito comigo e não deu a menor importância ao que eu dizia. Fez o que queria fazer, no que fez muito bem.


PLAYBOY — Você acha que nos filmes e novelas, algum personagem saiu idêntico ao que você criou?


JORGE — Eu acho, por exemplo, que a Sônia Braga fez uma Dona Flor com muita qualidade, uma figura excelente de pequeno-burguesa. Gostei muito de Mauro Mendonça no papel de Teodoro. No Tenda, algumas figuras da vida popular baiana, que nunca foram artistas, se saíram de modo excelente. Os vagabundos de Os Pastores da Noite, também.


PLAYBOY — O cinema estrangeiro comprou vários livros seus. Algum já está sendo filmado?


JORGE — Cinema é um negócio atrapalhadíssimo, e cineasta é o homem mais enrolado do mundo. Os americanos compram, pagam e acabou. Veja Capitães da Areia: fizeram onze anos depois de comprado. Gabriela, já faz vinte anos que compraram. O Capitão de Longo Curso — é da Warner —, mesma coisa. Gabriela já anunciaram várias vezes, inclusive com campanha de propaganda aqui e fora, script (Dalton Trumbo fez um, certa vez), Sophia Loren, numa coprodução com Carlo Ponti (depois ela ficou grávida e não fez)... Vários produtores se interessaram, mas a Metro nunca quis vender os direitos. Vi uma entrevista com Anthony Quinn dizendo que ia fazer o Vasco Moscoso; depois disse que ia fazer o Quincas (este sei que não, pois os direitos são meus). O Ponti tem os direitos de Mar Morto há muitos anos, comprados a pedido de Sophia Loren. Há ainda o Tereza Batista, com o Franco Cristaldi e o Alfredo Bini.


PLAYBOY — Você acha que o Glauber Rocha seria o diretor ideal para um filme baseado num livro seu?


JORGE — Tenho grande admiração pelo Glauber. É uma figura quase sagrada, como se fosse um filho. Conheci-o menino e desde o primeiro documentário que fez eu o acompanho. Ele é uma figura muito séria, que nem sempre é levada a sério como deveria. Se você se der o trabalho de acompanhar as coisas que ele disse, algumas das quais fizeram bastante escândalo, verá que o escândalo vem de ele dizer a coisa antes dos outros. Ele tem uma enorme capacidade de ver as coisas antes dos outros. Glauber tem a mesma coisa barroca, baiana que eu tenho. Até os filmes mais bem trabalhados sobre meus livros, mesmo quando feitos por homens de talento, como o Nélson, se ressentiram do fato de eles não serem baianos. Eles têm uma visão de fora, apesar de tudo. O Glauber certamente veria isso de dentro.


PLAYBOY — Você escreveria novela de televisão?


JORGE — Não, não creio. Não tenho nenhum preconceito contra novela, mas acho impossível alguém ter uma preocupação real com qualidade na novela feita no dia-a-dia, sendo duplamente censurado — na própria televisão e pela censura governamental. Se eu pudesse escrever do princípio ao fim, e o que eu bem quisesse e me interessasse...


PLAYBOY — E você vê televisão?


JORGE — Além de noticiários, vejo às vezes alguns filmes, apesar da dublagem, e programas de humor. O Chico Anísio e o Jô Soares são homens de muito talento, mas nem sempre o texto corresponde a isso. E vejo futebol, com enorme prazer.


PLAYBOY — Você torce para quem?


JORGE — Eu torço pelo Ipiranga, que é meu time de juventude aqui na Bahia. E que hoje é um sofrimento total porque só faz perder. Mas não sou muito de torcer para time. O que gosto é de acompanhar jogadores. Por exemplo, quando Ademir da Guia jogava, eu acompanhava o Palmeiras. O mesmo com Zizinho e o Bangu. Eu ia muito a futebol quando estava no Rio; hoje vejo na televisão.


PLAYBOY — Há algum jogador que você gosta de ver hoje?


JORGE — O Sócrates, que é um jogador de muito talento, o Reinaldo, de Minas. Zico é um jogador muito bom, também. O Luís Pereira, que é baiano. No momento, a safra de bons jogadores no Brasil é pequena, se bem que, para explicar o estado do nosso futebol, acho que houve uma exploração, uma tentativa da ditadura de utilizar o futebol como meio de conseguir apoio popular. Em vez disso, ela só conseguiu prejudicar o nosso futebol, atrapalhar sua espontaneidade e beleza. Hoje, o futebol brasileiro é quase incapaz de ter bons resultados, graças a essa interferência.


"Houve uma tentativa da ditadura de utilizar o futebol. E só o prejudicou"

PLAYBOY — Você já pensou em escrever sobre futebol?


JORGE — Não, porque, apesar de gostar muito de futebol, meu conhecimento é só do espetáculo. Eu gostaria de conhecer o assunto a ponto de poder escrever. Dentro do futebol há grandes romances: homens que vêm de muito baixo, praticamente analfabetos, que fazem carreira com o único talento que possuem, mas terminam na miséria. É o caso do Garrincha, tão exemplar. Garrincha é um personagem de romance absolutamente excepcional. É pena que homens como João Saldanha não sejam ficcionistas, pois poderiam fazer coisas excepcionais. Mas acho que o futebol ainda vai dar um grande romance, pois há quinhentos romances dentro do futebol.


PLAYBOY — Você foi e é muito amigo de escritores latino-americanos, como Neruda, não?


JORGE — Pablo Neruda foi um irmão meu, tivemos um relacionamento muito íntimo e fraterno desde a década de 40 até a morte dele. Vivemos muita coisa juntos, viajamos uma parte do mundo juntos, todo o Oriente, a Europa... A morte dele foi uma coisa tremenda para mim. Garcia Márquez, eu conheço bem. Vargas Llosa, Cortázar, Miguel Angel Asturias... Eu chamava Asturias de compadre, ele me chamava de compadrito. Mas conheço também uma geração anterior, mais próxima de mim pela idade. O Nicolás Guillén é meu compadre e amigo, padrinho de minha filha, poeta extraordinário e pessoa formidável.


PLAYBOY — Aqui, você foi muito amigo de Érico Veríssimo, não?


JORGE — Sim, desde os anos 30. Creio que fui um dos primeiros a escrever sobre o Erico, sobre Clarissa. Em 1935, ele foi ao Rio receber o Prêmio Graça Aranha por Caminhos Cruzados e ficou em minha casa. Ficamos muito amigos e, mais recentemente, quase toda semana ele me telefonava ou eu telefonava a ele.


PLAYBOY — E Graciliano Ramos?


JORGE — Em 1933, fui a Alagoas conhecer Graciliano, que ainda, não tinha publicado nada. Mas eu tinha lido os originais de Caetés e fiquei de tal maneira entusiasmado que fui a Alagoas conhecê-lo. Naquele tempo, a gente conhecia todo mundo — a vida literária no Brasil era muito pequena... De Graciliano fui amigo até sua morte. Hoje sou mesmo parente dele: meu irmão é casado com a filha dele. Foi uma figura extraordinária, um homem de muita ternura. Nunca deixou de ter um lado pessimista, mas acreditou muito também; basta pensar nas posições que assumiu.


PLAYBOY — E Dorival Caymmi?


JORGE — É como irmão meu. Aliás, nos confundem. Outro dia eu estava no candomblé de Menininha, com uma equipe francesa de documentários. Vi umas turistas me olhando, me olhando, até que uma não resistiu e perguntou: "O senhor é Dorival Caymmi, não é?" Res-pondi: "Não sou, mas sou irmão dele". Ela se voltou para as outras e falou: "Eu não disse? Não é ele, mas é o irmão dele". E também perguntam ao Caymmi se ele é Jorge Amado...


"Sempre me confundem com Dorival Caymmi. E eu sempre respondo que não sou ele, que sou o irmão dele..."

PLAYBOY — O que você acha de outro amigo seu, o Eduardo Portella, como ministro da Educação e Cultura?


JORGE — Não sou especialista em educação, mas na parte de cultura, que acompanho, acho que ele tem trabalhado bem. Acho que se deve dizer algo sobre ele: que eu me lembre, é o primeiro ministro da Educação que não é um político, não coloca a política antes de tudo. Numa declaração que me agradou muito ele disse que não é ministro, está ministro, pois é, escritor. Torço para que ele tenha o maior sucesso como ministro. Naturalmente, como todo ministro, ele é limitado pelas condições da vida política e pelo fato de seu ministério ser paupérrimo. No Brasil, os ministérios ricos não são o da Educação e o da Saúde, mas os ministérios militares...


PLAYBOY — Você tem muitos amigos. E inimizades?


JORGE — Tem muita gente que não gosta de mim, mas não tenho nenhum inimigo, no sentido de eu ter feito. Só se foi sem saber. Fiz muitos desafetos por causa de minhas posições políticas. Mas nunca coloquei a política nem a literatura como coisas capazes de fazer inimigos. Alguns dos meus amigos mais queridos não têm nada a ver com minhas posições políticas. Por exemplo, o Adonias Filho, meu amigo desde os tempos de colégio — no entanto, ninguém pode estar mais longe de mim como pensamento político do que Adonias.


PLAYBOY — A vida já lhe deu tudo ou você tem algum sonho irrealizado?


JORGE — Nunca ambicionei dinheiro, fama. Nunca me considerei grande escritor. Eu olhava para meus colegas de geração, Zé Lins, Graciliano... Nunca me considerei da mesma importância que eles. O que sempre quis mesmo foi viajar. E as circunstâncias permitiram que eu viajasse quase o mundo inteiro. As coisas correram bem para mim, tenho uma mulher admirável, urna companheira que me deu tudo que eu poderia querer. Tenho filhos que só me deram prazer, amigos fabulosos, tenho da vida mais do que mereci. E, corno escritor, tenho a coisa mais importante, que é um público que tem estima por mim e que diz que representei algo na vida dele.


PLAYBOY — Numa de suas últimas viagens houve um incidente com você no La Tour d'Argent, em Paris...


JORGE — Fui convidado para jantar no La Tour d'Argent, restaurante que eu conhecia de fama. Eu já sabia dos tais patos numerados que há lá — e que aliás me decepcionaram —, aquela viadagem. Acontece que eu estava honradamente bem vestido, com uma camisa esporte e com paletó, mas sem gravata. Cheguei lá, não quiseram me deixar entrar; diziam que tinham uma coleção de gravatas para esses casos, mas eu resisti um pouco, pelo prazer de discutir. Depois, aceitei uma gravata, pois não podia ser indelicado com as pessoas que me haviam convidado. Creio que sou o antielegante, não tenho idéia nenhuma de como me vestir. Cada vez me visto com menos solenidade. Ando de sandália o tempo todo, por exemplo. Decididamente, não sou um elegante.


PLAYBOY Gilberto Freyre disse, na entrevista que deu a PLAYBOY, que a grande desvantagem do sucesso é que a pessoa fica muito exposta aos chatos. Acontece com você?


JORGE — Quem é que escapa do chato? Mas o que o sucesso traz é o fato de você ter sua intimidade muito violentada e o seu tempo ter muita limitação. É ótimo ver amigos, adoro um bate-papo, mas há pessoas com quem não se tem nada; elas vêm ver uma estátua, um animal raro, um burro falante, e aí eu perco o assunto. Me dá um imbecilismo completo, não tenho o que conversar.


PLAYBOY — Você alguma vez já se sentiu essa estátua, um medalhão?


JORGE — Há sempre a tentativa de fazerem você de medalhão. Quando chega um ônibus de turismo à minha casa, o que acontece diariamente, o sujeito da agência de turismo tenta fazer de mim essa estátua. As pessoas vêm me ver como um animal estranho e eu não apareço. Mas devo dizer que meus empregados só concluíram que eu era mesmo importante no dia em que o comediante Zé Trindade veio à minha casa.


PLAYBOY — Seus livros falam muito sobre sexo. É uma coisa natural ou um recurso para vender mais?


JORGE — O sexo faz parte da vida do ser humano. Como se pode falar da vida sem falar de sexo? Mas creio que sempre tratei o sexo nos meus livros com bastante... qual é a palavra?... dignidade. O sexo para mim sempre foi urna coisa muito alegre, uma festa. Não acho que o sexo degrade, nem desmoralize, nem deva ser uma coisa de que não se deva falar, uma coisa suja. É limpo, digno, decente, alegre. E acho que esse é o caráter que ele tem nos meus livros. Em Tereza Batista, por exemplo, tem o capitão Justo que é um sádico. Mas na vida há gente assim. Acho que o sexo está nos meus livros, corno está na vida. Por isso mesmo, acho absurda a posição moralista diante de livros. Notei, nas recentes campanhas contra a censura, que se protestava muito contra a apreensão de livros por razões soi-disant políticas, mas não se protestava contra a apreensão de livros que sofriam a acusação de imorais, o que me parecia absurdo. Eram tão criminosas estas apreensões quanto as outras.


"Protestava-se contra a apreensão de livros políticos, não contra os imorais. E ambas as apreensões são criminosas"

PLAYBOY — Todo baiano, especialmente a mulher baiana, é mesmo sensual?


JORGE — Acho que os brasileiros são sensuais. Nós somos mestiços, resultado de uma mistura de povos com grande vigor de ordem sexual. E somos muito sensuais na dança, na culinária, etc.


PLAYBOY — Você é um mestre na arte de descrever o ato sexual. Seria reflexo de uma vida sexual intensa?


JORGE — Eu não sei se sou um mestre, conto as coisas como elas são. Mas lembro que toda obra de criação é resultado da experiência de seu autor...


PLAYBOY — As prostitutas sempre tiveram destaque nos seus livros. Por quê?


JORGE — Eu tive uma infância, uma adolescência de muito contato com prostitutas e casas de prostitutas. Sou nascido numa região onde a casa de prostitutas tinha uma importância enorme. Sempre tive muito carinho por essas mulheres que são vítimas e as mais perseguidas de todas as camadas sociais. Esquerda, direita, todo mundo é contra elas. Isso faz com que eu tenha feito delas figuras importantes e com a dignidade que têm, enquanto mulheres. A condição delas degrada, mas elas mantêm sua dignidade.


PLAYBOY — As grandes mulheres da sua obra são sempre mulatas?


JORGE — Elas são mestiças. No Brasil todo somos mestiços. E aqui na Bahia as mulheres são em geral mulatas. Mulheres que têm qualidades de beleza muito evidentes — o que se chama de dengo, de chamego, essas coisas tão típicas. da Bahia. E nem se precisa dizer que as mulheres são mulatas; o leitor se dá conta, pelas próprias características delas.


PLAYBOY — Tradicionalmente, a Bahia é terra de machistas. Você é um deles?


JORGE — Machista? Não sou. Não quero dizer que não tenha sido. Não sou hoje, não tenho o preconceito que tinha na juventude. Acho que a mulher é igual ao homem e deve ter os mesmos direitos. Mas o feminismo, no sentido da feminista que luta, etc., é uma outra face do machismo, é o outro preconceito. Outro dia, uma mulher lésbica dizia que eu era machista porque as minhas mulheres iam para a cama com os homens. Se a mulher não gosta de ir para a cama com o homem, não está correto, porque devia gostar. Não que eu seja contra mulher ir para a cama com mulher, não tenho esse preconceito. Mas acho absurdo que a mulher não faça amor.


"O feminismo, no sentido da feminista que luta, etc., é a outra face do machismo, é um outro preconceito"

PLAYBOY — E o homossexualismo, qual a sua opinião a respeito?


JORGE — Não tenho nenhum preconceito. Não sou homossexual, mas aqueles que são têm todo o direito de ser. Noto que há muito preconceito contra a literatura que aborda esse tema; acho que toda literatura que aborda tema sexual de forma pornográfica é ruim, mas aquela que o faz de forma digna, não faz mal nenhum.


PLAYBOY — Você acha que seus livros continuam chocando a moral da classe média como há alguns anos?


JORGE — Eu sou quase um escritor para colégio de freiras, diante das coisas que há por aí. Há muitos anos eu era considerado um escritor terrível, mas hoje...


PLAYBOY — Um baluarte do elitismo e da burguesia é a Academia Brasileira de Letras. Como você concilia sua entrada lá com sua posição de escritor que defende causas populares?


JORGE — A Academia é um clube. Você entra nela como num clube. Erraram no meu caso, pois sou o pior acadêmico do mundo. Vou muito pouco lá e sou muito pouco acadêmico. Só vou quando estou no Rio. Mas a Academia me deu ótimos amigos e não tem nenhuma importância eu ser da Academia. A sessão é coisa curta: antes, tem o chá, com café, chá mesmo, bolinhos, essas coisas de que velho gosta. Depois, a sessão, que é tão curta que nem dá pra chatear. Além disso, se fazem injustiças contra a Academia, que, depois de 64, elegeu Antônio Houaiss, posto para fora do Itamaraty e cassado, Hermes Lima, perseguido e afastado do Supremo Tribunal, etc.


PLAYBOY — O que achou de dar entrevista para PLAYBOY?


JORGE — Dou a entrevista com muito prazer, sem preconceitos tolos. A revista é bem feita, da maior qualidade. Como toda revista do gênero, de bom nível, é feita de boas fotografias de mulheres bonitas e de bons textos.


POR GERALDO GALVÃO FERRAZ

FOTOS LUCIANO ANDRADE



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