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1975: O PRIMEIRO ANO DO RESTO DE NOSSAS VIDAS

Reportagem


Há 40 anos A Revista do Homem chegava às bancas para revolucionar o mercado editorial masculino. A história de sua sobrevivência naquele ano é também uma história de resistência.


POR JEFERSON DE SOUSA

DIREÇÃO DE ARTE MAÍRA MIRANDA

FOTOS NANI RODRIGUES E MARCOS LÔNDERO


Definitivamente não um ano como ou­tro qualquer. Mil no­vecentos e setenta e cinco começou com Drew Barrymore nas­cendo (em 22 de fevereiro) e Hannah Arendt morrendo (4 de dezembro). E no meio disso teve a Guana­bara se fundindo com o Rio de Janeiro, Bill Gates e Paul Allen inventando a Microsoft, os Estados Unidos batendo em retirada do Vietnã e o AC/DC lançando seu primeiro disco. Mas o mais importante: 1975 foi a ano de criação de A Revista do Homem, que três anos depois se tonaria a PLAYBOY como a conhecemos.


A bem da verdade, A Revista do Homem estava planejada para se chamar PLAYBOY desde o início. A publicação era um sonho de Roberto Civita desde 1958, quando, aos 22 anos, retornou Brasil após uma temporada nos Estados Unidos. "Disse ao meu pai que eu queria fazer três revistas. Uma semanal de informação, como Time; uma de negócios, como Fortune; e PLAYBOY", contou Roberto Civita. O que impediu que PLAYBOY assumisse o nome foi o famigerado Decreto-Lei número 1.077, de 1970, que instituiu a censura a revistas e livros considerados imorais. "A lista proibia 54 revistas, entre quadrinhos, fotonovelas e revistas eróticas estrangeiras; entre elas, a PLAYBOY americana, que, segundo o distribuidor da época, vendia 60 mil exemplares no Brasil, explica o escritor e jornalista Gonçalo Junior, autor do livro Maria Erótica e o Clamor do Sexo — Imprensa, Pornografia, Comunismo e Censura na Ditadora Militar 1964/1985. Sim, porque, caso você não lembre, houve uma pesada ditadur­a no Brasil entre 1964 e 1985.


Em 1975, quando Homem chegou às bancas, não vivíamos "os anos de chumbo", marcados pelos governos dos generais Costa e Silva e Emílio Garras­tazu Médici, entre 1968 e 1973. Desde 1974, o país era presidido pelo general Ernesto Geisel, que sinalizava como uma distensão política "lenta e gra­dual". Apesar da sinalização, a censura era pesada. Principalmente no que dizia respeito a sexo.

Um acordo preliminar para utiliza­ção do material de PLAYBOY havia sido firmado entre o proprietário da mar­ca, Hugh Hefner, e Roberto Cívica em 1973. Na época, Roberto Civita foi con­versar com seu pai, Victor, para saber o que ele achava de lançar a revista no Brasil. Vitor Civita foi ao ponto: "Acho você tem que ir a Brasília falar com o ministro da Justiça (Alfredo Buzaid)".


Foi assim que Roberto Civita desembarcou na capital federal, municia­do por um caprichadíssimo boneco da revista (recheado com cartuns, contos, entrevistas, drinques e automóveis) e acompanhado por Edgard Faria, diretor da Editora Abril. RC revelou, em depoimento a Gonçalves Junior, o teor da conversa com o ministro. "Ele me per­guntou se existiam outras edições no mundo, fora dos Estados Unidos, e eu respondi que sim, a francesa, a italiana e a alemã, que tinha acabado de sair".


Roberto Civita enviou duas edições da PLAYBOY alemã, além do boneco da versão brasileira. Três dias depois, Bu­zaid avisou que não havia jeito: o nome PLAYBOY estava vetado no Brasil. Foi assim que se adotou o nome A Revista d o Homem. Tudo estaria bem não fosse por um detalhe: em 1974, Buzaid deixou o Ministério da Justiça e quem as­sumiu foi o irascível Armando Falcão, o que fez com que toda a negociação qua­se fosse por água abaixo.


Um dos responsáveis pela concep­ção editorial de A Revista do Homem foi Mauro Ivan Pereira de Mello. Na época, Mauro Ivan era o diretor do Grupo Quatro Rodas, ao qual a revista mascu­lina viria a pertencer. "O Roberto fe­chou o acordo com PLAYBOY e eu tive que ir lá para os Estados Unidos discu­tir a revista. Aí levei esse boneco para os caras verem o número 1. Um bone­co que a gente usou para mostrar para a censura", relembra Mauro Ivan.

NESTA BANCA TEM HOMEM

E eis que depois de driblar a censura e negociar com os americanos, A Revista do Homem finalmente é lançada, em agosto de 1975. Nos pontos de venda de todo o pais, lia-se o cartaz: "Nesta ban­ca tem Homem". O aviso, pelo visto, agradou aos leitores: em poucos dias a revista vendeu 135 mil exemplares.


Com 140 páginas e ostentando um casal na capa (nove das 12 capas estam­param um casal no primeiro ano da re­vista), Homem estava recheada de ma­terial de primeiríssima qualidade. No time gringo vinha o reforço dos con­tos de Vladimir Nabokov e Arthur Clarke, artigos de Jean Paul Getty, John Kenneth Galbraith, Francis Ford Coppola e Benjamin Bradlee. No elenco nacional, Jorge Amado, Roberto Drummond, Paulinho da Viola e Pe­lé. Só para citar alguns. E não esqueça­mos as mulheres uma estreia para lá de digna. A musa internacional foi Va­lerie Perrine, ganhadora naquele ano do prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes pelo filme Lenny. As cores nacionais foram defendidas por Livia Mund, nosso primeiro póster.


A estrela do primeiro pôster era Livia Mund.

E aqui é o momento de desfazer­mos definitivamente um equívoco: a moça que aparece na capa da primeira revista Homem, não é Livia Mund. "Eu até cheguei a fazer a foto para a capa, mas acontece que tinha acabado de sair na capa da NOVA. O (editor) Fernan­do de Barros me ligou e disse: 'Olha, a sua capa não pode sair porque vo­cê está na capa da NOVA; você tem al­guém para indicar, para fazer hoje? Porque a revista está rodando'. Eu estava num estúdio na Rua Frei Caneca e perguntei na hora no camarim: `Gente, alguém pode fazer hoje uma foto no meu lugar? A minha não vai poder sair. É a capa da Ho­mem'. E a Rosicleide foi." Pois então, agora você já sabe, Livia é o primei­ro ensaio brasileiro, não a primeira capa. Sobre Rosicleide, infelizmente não conseguimos apurar seu paradeiro.


Mas não era apenas pelos textos e mulheres que Homem chamava a aten­ção. A revista também se destacava pelo apuro estético. Segundo o vice-presi­dente do Conselho Editorial da Editora Abril, Thomaz Souto Corrêa, um dos grandes responsáveis por isso foi Mau­ro Ivan. "Ele era um dos poucos jorna­listas que eu conheço que tinha a sensibilidade de layout, de tipografia."


O truque das facas nas primeiras edições.

Mauro inseriu algumas "bossas" vi­suais da revista, como o uso da faca (a ilustração recortada para dar efeito vi­sual), e trouxe um grande time de co­laboradores. As passagens por grandes veículos da imprensa carioca, como Jornal do Brasil e Correio da Manhã (do qual foi diretor), lhe forneceram uma invejável agenda de escritores e artistas. "O Paulinho da Viola, por exemplo, eu conheci quando estava no Jornal do Brasil. Ele trabalhava em um banco perto da Avenida Rio Branco, onde era a sede do JB. Ele saia do banco e ia para o jornal bater papo."

Foi assim, à base do conhecimento, que o diretor do Grupo Quatro Rodas conseguiu convencer Jorge Amado a ceder um advanced de seu livro seguinte, A Guerra dos Santos, para a primeira edição. "O Jorge não queria conversa. Ai eu descobri que o Fernan­do de Barros tinha assinado um conto em parceria com ele. Os dois juntos tinham escrito um conto. Eu disse: 'Avisa ao Jorge que, se ele não der um original dele para a gente colocar no número 1, a gente publica o conto!' Ele mandou o original na hora. Não que o conto com o Fernando fosse ruim, mas o Jorge não ia querer publicar uma par­ceria." Anunciado na revista como o próximo livro de Amado, A Guerra dos Sonhos só sairia 13 anos depois com o tintura de O Sumiço da Santa.


Um detalhe que chama a atenção no primeira número de Homem é o fa­to de não haver nenhuma menção a PLAYBOY — a edição de estreia sequer trazia a clássica Entrevista. De fato, a revista brasileira iria se afinar de for­ma gradual à criação de Hugh Hefner nos meses seguintes. O segundo número já trouxe alguns elementos da revista mãe, como a apresentação dos colabo­radores e a primeira Entrevista — com o ex-agente da CIA, Philip Agee (a primeira Entrevista nacional só seria pu­blicada em I976, com o ex-jogador Di­di). Ele também marca a estreia de um jovem (31 anos à época) e talentoso co­laborador — porém, já experiente repórter: Aguinaldo Silva.


E por pouco a Homem número 2 não foi às bancas. A razão, como não poderia deixar de ser, a ditadura. Regis­trada na Censura, como era praxe entre todas as revistas, inicialmente havia a informação de que a publicação não sofreria censura prévia. Acontece, porém, que o ministro da Justiça fez um pedido informal para que ela fosse enviada previamente para análise antes de chegar às bancas. O problema é que a revis­ta já estava na gráfica. Coube ao chefe da sucursal da Abril em Brasília, Pom­peu de Sousa, contornar a situação jun­to aos censores. Nesse caso, prevaleceu o bom senso, algo muito raro na época.


Houve uma outra razão, um tanto prosaica, para que a revista quase não fosse lançada: descobriu-se que o título Homem já tinha um dono. No caso, não qualquer dono, mas Domingos Alzugaray, proprietário da Editora Três, fundador da concorrente Status, ex-funcionário e desafeto do Grupo Abril. E Alzugaray não perdeu tempo. "A Três lançou uma Revista do Homem no mes­mo momento, que era justamente pa­ra atrapalhar a nossa chegada", lembra Thomaz Souto Corrêa. A briga se ar­rastou na justiça, até que, em I978, A Revista do Homem pôde finalmente as­sumir o nome PLAYBOY.


O truque da camiseta molhada.

Contornadas as dificuldades do segundo número, a Homem número 3 chegou às bancas apresentando o mes­mo nível em seu time de colaboradores — Érico Veríssimo, Ernest Hemingawy, Tennessee Williams e João Ubaldo Ri­beiro, para citar alguns — e trazendo entre seus ensaios sensuais ninguém menos que Maria Della Costa. Em uma das fotos, a atriz joga água sobre o ves­tido, inaugurando um recurso que seria muito usado ao longo dos anos para dri­blar a Censura. "Nós nos especializa­mos, durante dois anos ou três, em tirar fotos de meninas bonitas de camiseta molhada", contou Roberto Civita em depoimento de 2007.


Isso porque, segundo a Censura, havia regras (muito draconianas) para a liberação dos ensaios eróticos. Repro­duzimos a seguir o trecho do manual da Censura que estabelece os limites:


1 — Seios: A exposição deve abranger UM SEIO APENAS, estando o outro não visível, mediante qualquer recurso técnico (tecido, espuma de sabão, flanco, corte, escurecimento etc.) A exposição de AMBOSOS SEIOS (como aparece em Homem núme­ro 1 está totalmente PROIBIDA pelo Ministério da Justiça, que a forneceu instru­ções ao Diretor Geral do DPF/Brasília;


2 — Partes Genitais: É totalmente proi­bida qualquer forma de exposição, mesmo em sombra;


3 — Nádegas: A exposição deve ser diluí­da através dos recursos técnicos supracitados ou outros equivalentes.

Aparentemente os censores ti­nham dificuldade de determinar o que era permitido aparecer sob a roupa mo­lhada. Isso fez com que o recurso pas­sasse a ser usado prodigamente ao lon­go dos anos. Ele apareceria de forma mais evidente em um dos ensaios de no­vembro (o outro é com a fabulosa Char­lotte Rampling). Ali, a modelo Neide referenda definitivamente a expressão "garota da camiseta molhada".

Ideias como essa tiveram como mentor dois importantes personagens da história de Homem/PLAYBOY: Ma­rio de Andrade e Fernando de Barros.

A VANGUARDA DO JORNALISMO

O carioca Mario Escobar de Andra­de trabalhou no Jornal do Brasil e, em 1967, aos 23 anos, mudou-se para São Paulo para trabalhar na QUATRO RODAS, a convite de Mauro Ivan. Reza a lenda que foi para a capital paulista com a clara e única intenção de juntar dinheiro para comprar um jipe e voltar ao seu amado Rio de Janeiro. Mas os planos mudaram no meio do caminho: Mario se apaixo­nou por Homem/PLAYBOY e nunca mais voltou ao Rio.

"O Mario mergulhou de cabeça na revista, a ponto de se confundir com ela. Ele era um sujeito perfeccionista tanto quanto o Mauro", diz Thomaz Souto Corrêa. Mario de Andrade tra­balhou durante 16 anos em PLAYBOY, até morrer de infarto, em 1991.


O primeiro editorial de moda da revista.

Fernando de Barros, por sua vez, foi quem definiu o conceito de homem elegante­ no Brasil e ditou os conceitos de moda e estilo masculinos. Ele também foi, por muitos anos, o responsável pelos ensaios das mulheres na revista. "O Fernando era tranquilo, organizado. Ele era animado, não tinha lado ruim. Às vexes pegava a equipe toda e levava para almoçar na casa dele antes de uma produção", recorda Livia Mund.


Mauro Ivan também se lembra com carinho do editor. "O Fernando era um cara do caralho. Um ótimo papo, ele­gante. Quanto mais velho ele ficava, mais novas ficavam as mulheres dele. Era o 'Roger Vadim brasileiro'. Porque o diretor casou com todas as grandes estrelas do cinema francês. E o Fernan­do casou com todas as grandes estrelas do cinema brasileiro. Todas!"


A chegada da Homem ao mercado naquele 1975 consolidou o novo seg­mento do mercado editorial, o das re­vistas masculinas de estilo. "Teve um momento em que você tinha Homem, Status, Fairplay, Ele Ela... Tinha uma im­prensa interessante masculina no Bra­sil. Nada era debochado, nada era cafa­jeste, nada era abertamente pornográfi­co", diz Thomax Souto Corrêa.

"As revistas masculinas se tornam a vanguarda do jornalismo brasileiro no sentido de resistência à ditadura. Ali estavam as grandes reportagens, os furos. Mas a ditadura se preocupava mais com questões morais do que intelectuais. Na condição de ser uma revista de 'mulher pelada', preocupavam-se mais em cen­surar as fotos do que em censurar matérias e entrevista", avalia Gonçalo Júnior.


O fato é que, enquanto os jornais diários deixavam de sofrer censura prévia, as revistas masculinas viam recrudescer a vigilância. No caso de Homem, isso ficou claro na edição de dezembro — o momento em que a re­vista passou a ser submetida nova­mente à censura prévia. A edição traz como destaque uma entrevista com Muhammad Ali. Ironicamente, um dos temas abordados é a opressão. De acordo com um relatório da Editora Abril produzido em 1976, entre outu­bro de 1975 e novembro de 1976 — ou seja, em 13 edições de Homem—, foram 606 linhas de texto vetadas, 30 fotos mutiladas, 35 fotos vetadas integralmente, 59 fotos retocadas, nove cartuns vetados e três cartuns retocados.


Apesar de todas as pressões sofridas, Homem conseguiu terminar incó­lume o ano de 1975. Desde então, quem diria, passaram-se 40 anos. Mauro Ivan tem uma convincente explicação para a longa sobrevivência: "A revista continuou viva pela qualidade do seu conteúdo. Hoje a gente discute muito pla­taforma. Mas o problema não é a plata­forma, o problema é o conteúdo. Não importa se é tablet, papel ou celular. Porque toda revista que você compra e lê precisa te deixar um resíduo, e você precisa sentir que ela te acrescentou alguma coisa. Se ficar com essa sensação, você volta a comprar,"



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