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EMERSON FITTIPALDI | AGOSTO, 1995

Playboy Entrevista


Uma conversa franca com o piloto brasileiro que virou mito nos Estados

Unidos sobre glória, fracasso, tesão, cristais voadores e outras vidas.


Por várias boas razões, Emerson Fittipaldi foi o segundo escolhido para quebrar a regra de PLAYBOY não repetir seus entrevistados — nos vinte anos da história da revista no Brasil, apenas Pelé havia aberto esse precedente, na edição de nosso 18º aniversário. Em 1979, quando esteve no centro da entrevista de PLAYBOY pela primeira vez, Emerson já tinha conduzido a sua carreira na Fórmula 1 a um ponto que raros pilotos conseguiram atingir, na história do automobilismo mundial. Aos 33 anos de idade, era bicampeão do mundo, com catorze vitórias em grandes prêmios, e além de todo o prestígio acumulava uma bela fortuna pessoal. Hoje, ao voltar a estas páginas, Emerson Fittipaldi pode dizer que viveu daquele tempo para cá uma segunda vida profissional tão rica quanto a primeira. Na Fórmula Indy, a categoria que divide com a Fórmula 1 a elite do automobilismo moderno, o piloto brasileiro também alcançou o topo, depois de um título e 22 vitória, duas delas nas mitológicas 500 Milhas de Indianápolisi, a mais célebre prova automobilística do mundo.


Este brasileiro chega aos 48 anos de idade como um dos vinte esportistas mais bem pagos do planeta, levando o seu patrimônio material a um desses níveis difíceis de calcular em primeiro lugar porque ele não fala muito sobre isso, e também porque as premiações divulgadas nos jornais não costumam ir integralmente para os pilotos (pela primeira de suas duas vitórias nas 500 Milhas, por exemplo, ficou com 38 % do prêmio de 1 milhão de dólares). Mas dá para ter uma idéia: Emerson é dono de duas fazendas de laranja no interior de São Paulo, que somam 2.039 hectares de terras numa área extremamente valorizada e podem ser avaliadas em, no mínimo, 10 milhões de dólares. Ele detém os direitos de exploração no Brasil da grife masculina Hugo Boss, que vende por ano mais de 25 milhões de dólares em roupas e acessórios. Além do que ganha dos cigarros Marlboro e da equipe Penske para correr — jornalistas especializados em automobilismo calculam algo em torno de 7 milhões de dólares anuais —, recebe também pelos direitos de transmissão das corridas de Indy para o Brasil e, ainda, de exploração do seu nome em artigos como rodas esportivas e óculos escuros. Tem uma coleção de Cadillacs antigos e duas Mercedes-Benz novas. Anda para cima e para baixo com um jato HS-800 e está acabando de construir, no Ceará, um iate que a colunista social Danuza Leão, do Jornal do Brasil, avaliou em 1,6 milhão de dólares. Enfim, ninguém precisa se preocupar com o seu futuro.


O piloto chegou a um ponto de prestígio tão incomum que, no meio desta temporada, ao ficar de fora das 500 Milhas de Indianápolis por uma sucessão de erros estratégicos de Roger Penske, proprietário de sua equipe, experimentou o que se pode chamar de uma derrota consagradora; no dia da prova, quando entrou, meio envergonhado, no grid de largada, para desejar boa sorte aos seus colegas, o piloto brasileiro viu o público se levantar e gritar o seu nome.


Foi a premiação que faltava a este paulistano que, embora tenha nascido em família de classe média alta, se fez rigorosamente sozinho na vida. Em primeiro lugar, ninguém bancou sua carreira. Emerson começou a trabalhar por conta própria na adolescência, na garagem da casa de seus pais na região dos jardins, em São Paulo, e logo se revelou um gênio da mecânica — a ponto de, antes mesmo de completar 20 anos de idade, comandar um pequeno império de acessórios esportivos para carros. Foi com o dinheiro desse negócio que Emerson, chamado de "Rato" desde criança por causa de seus dentes saltados, foi correr na Europa em 1969. No fim de 1972 era o mais jovem campeão do mundo da história do automo­bilismo, com 25 anos de idade.


Ninguém deu um empurrão em Emer­son. Pelo contrário, o que ele recebeu foi um tranco, por uma decisão errada que tomou. Em 1976, já bicapeão do mundo, resolveu taxar a poderosa McLaren pela duvidosa Copersucar, a equipe brasileira de Fórmula I montada no ano anterior por seu irmão, o ex-piloto Wilsinho Fittipaldi, e bancada por usineiros paulistas. Além de prestígio, Emer­son perdeu dinheiro ao fechar as portas, em 1981, a equipe deixou um prejuízo de 7 milhões de dólares, sem contar o que foi in­vestido pela Copersucar e pelo patrocinador na sua penúltima temporada, a fábrica de cervejas Skol. Endividado como pessoa jurídica e desanimado como piloto, Emerson sairia a pé pela vida, mais sozinho do que nunca pouco tempo depois de abandonar as pistas, ele estaria separado de sua primeira mulher, Maria Helena, mãe de três dos seus cinco filhos (Jayson, de 19 anos, que vive em Maryland, Estado vizinho a Washington, onde cursa uma facul­dade de Artes; Juliana, de 16, que mora com o pai em Miami; e Tatiana, de 13, a única que mora com a mãe em São Paulo). Então, casado novamente com a bela Teresa, uma expansiva catarinense de Blu­menau que lhe daria dois outros filhos Joana, hoje com 9 anos, e Luca, de 4 , Emerson iniciou uma segunda carreira de campeão, depois de ter renascido do ponto inicial, como numa segunda infância: vol­tou a correr de kart, em Interlagos, por pura diversão. Em 1983, convidado a participar de uma prova de protótipos, em Miami, venceu e se divertiu tanto que no ano se­guinte aceitou o desafio de pilotar na Fór­mula Indy, colocando-se na última fila com um carro cor-de-rosa, sem patrocínio, no GP de Long Beach, que não conseguiu termi­nar. Onze anos depois, Emerson Fittipaldi está de novo no topo, montado sobre as gló­rias de uma carreira sem precedentes na his­tória do automobilismo o piloto brasileiro está há 25 anos na linha de frente do espor­te. "É o melhor finalizador de provas, o me­lhor acertador de carros e, no conjunto, um dos três melhores pilotos que eu já vi correr", disse dele a PLAYBOY o americano Roger Penske, que diplomaticamente silenciou so­bre os dois outros.


Para entrevistar Emerson Fittipaldi, PLAYBOY mandou aos Estados Unidos o edi­tor-contribuinte Guilherme Cunha Pinto, que recolheu as seguintes impressões:


"Não é fácil entrevistar Emerson Fittipal­di, embora ele seja gentil e atencioso. No pri­meiro dia agendado, uma terça-feira tão quente e úmida que dava a Miami um re­moto clima de tinturaria, várias reuniões se sucederam em uma ampla sala no 2º andar de um predinho moderno e comprido na es­quina da Miami South Avenue com a pró­pria Fittipaldi Way a rua de quatro qua­dras batizada um ano atrás em sua home­nagem. Ali o campeão concentra seus negó­cios, e de repente os negócios aparecem todos de uma vez à sua frente. Nesse momento, ele está tendo de definir o projeto da reforma de um prédio ao lado, onde pretende construir um centro de vendas dos produtos que le­vam o seu nome rodas, óculos esportivos, camisetas, capacetes e brindes variados. Pre­cisa também discutir investimentos e ques­tões das suas fazendas no interior paulista, e para isso conversa horas com seu adminis­trador no Brasil, que desembarcou esta ma­nhã na Flórida.


"Nessa tarde, nós gravaríamos apenas dezoito minutos de entrevista. A ante-sala se encheu e esvaziou várias vezes. Em muitas horas, só o que se tinha para fazer era olhar pela janela o que não foi de todo desinteressante, porque um pequeno iguana muito verde desceu pela parede do lado de fora, rente ao vidro, e se embrenhou na castanhei­ra onde moram dois esquilos, dando um tom Watt Disney à espera. Mas, dentro do escritório, a paisagem era outra. Ali mesmo, na ante-sala, sete rodas especiais para auto­móveis se espalhavam pelo carpete cinza e por cima de algumas mesinhas de canto. Li­vros ilustradas sobre a história da Fórmula Indy, pôsteres, painéis com colagens de fotos de carros na pista, cenas de champanhe no pódio, comemorações, taças, bandeiras qua­driculadas absolutamente tudo nas pare­des e sobre as mesas remete ao automobilis­mo. Para o visitante, é uma sensação um pouco estranha se ver cercado de tantos ins­tantes de velocidade, silenciosos, imobiliza­dos no papel. No meio do corredor, alguém equilibrou em pé um Emerson Fittipaldi de papelão, recortado em tamanho natural. Por traz dele, a um determinado momento o campeão surgiu sorridente, em carne e osso, vestindo uma calça creme, botinhas de ca­murça na mesma cor e uma camisa social azul-clara. Desculpou-se muito pelo horário, mas avisou que naquela tarde conversaría­mos pouco, porque já estava atrasado para a sessão de exercícios físicos que faz religio­samente todos os dias.


"No dia seguinte, em busca de privacida­de, ele mesmo sugeriu retomarmos a entre­vista numa praia perto de sua bela casa em Key Biscaine, uma ilha onde 10.000 famí­lias moram em condomínios de alto padrão. Antes da nova sessão diante do gravador; entramos no mar e a água era também tão surpreendentemente quente e cheia de al­gas que parecia que estávamos mergulhan­do numa sopa de legumes. Finalmente reco­meçamos a entrevista, que prometia se esten­der longamente pela tarde ensolarada, só in­terrompida por algumas frases para saudar os vizinhos americanos que passavam ao la­do do nosso guarda-sol, em direção ao mar. 'Hi!', dizia ele. Uma vez disse: 'Ooi!', e foi preocupante. Um olhar de esguelha na dire­ção do seu cumprimento captou, afundado na areia, um imenso par de sapatos de cou­ro. Aquela pessoa não estava lá para apro­veitar o sol estava lá para falar com Emerson. O corpulento empresário brasileiro Carlo Gancia, de paisagem por Miami, aco­modou seu 1,95 metro de altura num bar­quinho e começou um rosário de quarenta minutas de queixas sobre sua sorte na Fór­mula 1, onde é sócio do italiano Guido Forti na equipe Forti Corse. '...Então o Guido disse que o problema do carro era que nem o meu: precisava perder uns 30 quilos. E eu respondi que não, era que nem a dele: preci­sava ganhar potência.' Depois de contar uma série de histórias engraçadas assim, en­fim Carlo Gancia se despede. Emerson avisa que é uma pena, mas teremos apenas mais alguns minutos para seguir com a entrevis­ta, porque ele precisa preparar a viagem pa­ra o Grande Prêmio de Detroit, que faria em seu avião logo mais à noite. Lá em Detroit, no extremo oposto dos Estados Unidos, en­costado no Canadá, poderíamos completar a entrevista em algumas sessões depois dos treinos, com calma.


"Mas ainda existe calma nesse mundo? No dia seguinte, recém-saído de um avião de carreira que fez uma longa escala em Atlanta, estou metido no meio de uma mul­tidão de fãs de automobilismo que conver­sam aos gritos. Muito bem: estamos na capi­tal do automóvel, e não se ouve quase nada além do ronco dos carros que treinam na pista improvisada nas ruas de Belle Island, ao norte da cidade. Tudo lembra uma quer­messe excessivamente ruidosa, com venda de brindes e sanduíches. animadores que usam alto-falantes para atrair o público às suas barracas. Junto ao caminhão da Marlboro, uma lona branca cobre doze mesinhas e um bufê que oferece a jornalistas e convidados talharim à bolonhesa, saladas, sucos, refri­gerantes, doces e frutas (pela manhã, havia sucrilhos, iogurtes e outras coisas para o breakfast). Numa das mesinhas, Teresa Fittipaldi está indignada por causa do re­corte de uma revista brasileira que alguém lhe mostrou. Nesse recorte, uma joalheria oferece 'Ainda por cima mais baratos!' modelos que copiam os brincos de ouro que ela desenhou na forma de cavalos-mari­nhos, e que vende por 425 dólares o par. Os brincos se popularizaram muito com as transmissões das corridas pela televisão, que invariavelmente focalizam em close o perfil das mulheres das principais pilotos, nos mo­mentos decisivos das corridas. Nessa tarde, por acaso, em outra mesa sob a tenda da Marlboro decidia-se a inclusão de mais uma comida no calendário da Indy no ano que vem. O publicitário Ricardo Scalamandré, ex-diretor comercial da Rede Globo e sócio de Emerson nos direitos de transmissão das provas para o Brasil, usava seu charme pes­soal para ajudar a assinatura do contrato prevendo a realização de um grande prémio no Rio de Janeiro. 'No mundo existem duas categorias de pessoas, explicava ele para um grupo de senhores engravatadas: 'as pes­soas que me adoram e as pessoas que ainda não me conhecem.'


"Nesses dois dias de treinos, além de lu­tar contra os desacertos de seu Penske e ter uma série de reuniões com as mecânicos e chefes de equipe, Emerson Fittipaldi gravou um comercial, distribuiu centenas de autó­grafos, deu entrevistas para jornais e TV, ditou uma coluna para a revista Quatro Rodas e outra para o jornal Folha de S.Paulo. Mas na noite de sexta-feira, na confortável sala de visitas da suíte presiden­cial do hotel que ocupou em Detroit, e na tarde de sábado, dentro da saleta com ar-condicionado do motor home de sua equipe no autódromo, ele esqueceu todos os compro­missos para enfim falar longamente a PLAYBOY. Ao final, foram quase cinco horas somadas de entrevistas, em que Emerson Fittipaldi intercalou várias vezes suas frases com a constatações como: '...ninguém, ou muita pouca gente sabe disso'. Antes de começarmos, sua assessoria recomendou que deixássemos para o fim qualquer pergunta sobre o encerramento da carreira, porque ele poderia ficar irritado."


PLAYBOY Por que você se irrita quan­do perguntam se já tem planos para pa­rar de correr?


EMERSON FITTIPALDI — Pela nossa cultu­ra, o brasileiro, o latino, acho que o euro­peu, em geral, cresce com aquele sonho: quando vou me aposentar? É estranho. O americano não pensa nisso, o americano está enjoying o que está fazendo, não pen­sa em parar. Nunca me esqueci de que quando ganhei o meu primeiro Mundial, com 25 anos de idade, dei uma coletiva na Europa e me perguntaram pela pri­meira vez: "Quando você vai parar?" Mas eu tinha acabado de ganhar o meu pri­meiro Mundial! [Risos.] "Quando você vai abandonar a Fórmula 1?" Em 1972 me perguntaram isso. Naquela idade era irritante ouvir essa pergunta. Hoje não. Com a idade que eu estou, é normal uma pessoa me perguntar isso. Mas eu não te­nho estabelecido nada.

PLAYBOY — Em 1979, quando deu sua primeira entrevista para PLAYBOY, você ti­nha 32 anos. Disse que pretendia correr até os 39 ou 40 anos, achando que até es­sa idade "não há perda de reflexo para um piloto que se cuida", segundo suas próprias palavras. Hoje, com 48 anos, co­locaria um novo limite?


EMERSON — Eu disse isso mesmo? [Pede para ver o recorte com a entrevista e lê sua declaração, balançando a cabeça afirmati­vamente.] É, disse. E veja uma coisa: eu já estava nessa ocasião com a cabeça para parar, porque a entrevista é de 1979 e pa­rei minha carreira na Fórmula 1 em 1980, com 33 anos.


PLAYBOY Na época, parece que os pi­lotos de Fórmula 1 paravam mais ou me­nos nessa faixa. Na Indy é que a carreira se estende mais, não é?


EMERSON Hoje eu acho o seguinte: se o piloto estiver bem fisicamente e motivado para ganhar, ele continua. A cabeça é muito importante, a vontade de vencer pesa muito.


PLAYBOY Mas e os reflexos, conti­nuam iguaizinhos?


EMERSON — Quando eu falo em estar bem fisicamente, estou falando em refle­xos também, isso faz parte do estado ge­ral. O reflexo pode até diminuir até um determinado ponto, mas a experiência compensa. Com a idade de 48 anos, me cuidando do jeito que me cuido, tenho certeza de que meus reflexos vão conti­nuar bons para eu correr durante mais uns anos. Na hora em que não sentir is­so, eu mesmo vou perder o interesse de continuar.


PLAYBOY — Você já se recuperou do ba­que de ter ficado de fora das 500 Milhas de Indianápolis?


EMERSON — O que passei em Indianápo­lis, esse ano, agora posso sentir, posso analisar. O que eu sofri... Você imagina o que é não se classificar? É ficar atrás do último! E justamente na corrida mais im­portante da temporada. Nunca pensei que ia passar por isso. Ficamos, o Roger Penske e eu, como um casal que falha na hora sabe como? "Isso nunca aconte­ceu comigo", me disse o Roger. "Nem co­migo!". respondi [risos].


PLAYBOY — Os dois acostumados a ga­nhar.


EMERSON — Eu estava numa posição as­sim... não desmoralizado, mas frustrado, e só pensava em ficar longe dali. Depois da desclassificação, fui embora para Miami e não queria voltar para Indianápolis. Dois dias depois liguei para o Roger e disse que ia estar lá no dia da corrida, pa­ra não deixar ele sozinho com os patroci­nadores. Quando desci de volta em In­dianápolis, estava ansioso, confuso. Na hora em que cheguei ao autódromo me deu um choque. Aquilo tudo lotado, e pensei: em onze anos, pela primeira vez não vou correr. Entrei na garagem e foi o segundo choque: a garagem da Penske vazia. Parecia um pesadelo.


PLAYBOY — O que você fez em seguida?


EMERSON — Aí fui falar com o Christian [Fittipaldi], acalmar o Chris. Fiquei quase uma hora na garagem falando com ele. Eu vinha conversando com o Chris desde a primeira semana de treinos, aos pou­cos, preocupado em não jogar todas as informações sobre Indianápolis de uma vez. É tanta coisa para falar, específica de Indianápolis — as várias fases de classificação, a corrida, as situações possíveis —, que fui falando por etapas com ele. No dia da corrida achei o Christian muito bem, calmo. Eu até não falaria muito se ele estivesse tenso, porque pode atrapa­lhar. Aí terminei de falar, e me deu um nó na garganta. O Ricardo [Scalaman­dré] estava junto e perguntou: "Você vai entrar no grid?" A Teresa começou a chorar. Fiquei vou-não-vou, depois resolvi: tenho que encarar essa. Então aconte­ceu uma coisa engraçada: quando entrei no grid, acalmei. Pela primeira vez, na­quelas semanas terríveis, me senti em paz. Senti uma coisa assim: não estou mesmo na corrida, os caras estão largan­do e vou desejar boa sorte pra eles. Se não tivesse ido seria pior, ia ficar com aquela coisa por dentro, como se não ti­vesse acontecido de verdade.


PLAYBOY — De alguma maneira, acabou sendo uma vitória, não é?


EMERSON — Quando entrei no grid o pú­blico levantou e começou a gritar "Emmo, Emmo!" Foi emocionante. Para mim, isso foi uma lição inesquecível: você po­de estar na melhor equipe, pode estar entre os melhores pilotos do mundo e de repente, por alguma razão, não se classi­fica para uma corrida. Ou seja, esse é um conselho, uma mensagem que agora pos­so passar para todo mundo: você pode falhar, ninguém é vencedor, nem perdedor, para sempre.


PLAYBOY — Você já não tinha experi­mentado alguma coisa parecida na Fór­mula 1, em 1976, ao sair da McLaren pa­ra a Copersucar?


EMERSON Justamente. Na verdade, ho­je eu posso ver que o nó na garganta não tinha só a ver com aquela hora, aquela corrida frustrada, mas com uma coisa que a vida tem me passado nesses anos todos. Pensando bem, eu só vim parar na Indy porque vivi aquela fase difícil na Co­persucar. Se tivesse continuado na McLa­ren, bicampeão do mundo, talvez até tivesse conquistado mais um título e teria parado em três anos, acomodado, sem outros desafios pela frente. A frustração na Copersucar é que me deu energias para recomeçar tudo onze anos atrás, me deu forças para entrar num carro cor-de-rosa, sem patrocínio, vestindo um maca­cão cor-de-rosa, numa última fila da Indy. Sem passar por isso tudo, provavel­mente eu não teria conseguido enfrentar as 500 Milhas este ano.

PLAYBOY — Você está dizendo que uma carreira só de vitórias seria menos rica, e até mais curta, do que uma carreira com altos e baixos?


EMERSON — Claro. A fase em baixa é aquela em que você mais aprende. Com todo mundo é assim, mesmo as pessoas que sempre pareceram estar por cima. Por exemplo, foi por coincidência, nessa época do início da Copersucar, que eu conheci o Roger Penske, que também es­tava começando uma equipe dele na Fór­mula 1. O Roger tinha sido um superpiloto e resolveu fazer uma equipe de Fór­mula 1 americana, assim como nós estávamos tentando fazer uma brasileira. Muitas vezes ele vinha falar com a gente antes da largada: "Pó, nós temos de me­lhorar." Isso porque o carro dele tam­bém não estava bem. Tinha um piloto, o Mark Donohue, que morreu no Grande Prêmio da Áustria, em 1976.


PLAYBOY — Com o fim da Copersucar, em 1981, você e seu irmão Wilson tive­ram um prejuízo de 7 milhões de dólares que, corrigidos, representam hoje quase o dobro disso. Nem do ponto de vista financeiro você se arrepende de ter entrado nessa?


EMERSON — Perdi dinheiro, mas aprendi muito na vida, também. Então não sei se perdi — foi um dinheiro que...


PLAYBOY — Você chegou a ficar duro?


EMERSON — Não... duro, graças a Deus nunca fiquei. Pus muito dinheiro lá, no fim, quando perdemos os patrocínios, mas tinha fazenda, concessionária, casa, prédio... Cheguei a pegar dinheiro em banco, lógico, mas depois paguei tudo, junto com o Wilson. Tinha patrimônio imobilizado suficiente para me garantir. Entrei nessa porque acreditava no proje­to, e sempre achei importante a gente ir atrás do que acredita. Eu tenho, por si­nal, uma passagem vivida com o [dono de equipe de Fórmula 1] Frank Williams que ilustra bem isso que estou dizendo. Em 1974, apareceu na Fórmula 1 um lorde inglês chamado Alexander Hesketh, que fez um carro, contratou o James Hunt [piloto inglês, campeão da Fórmula 1 em 1976] e queria me contratar também. Eu morava na Suíça, ele me ligou, disse que queria conversar comigo e que ia man­dar um avião para me buscar em Gene­bra. Fui, passei um dia com ele em Lon­dres, recebi a oferta e já estava no aero­porto de Londres, para voltar, quando encontrei o Frank Williams. Nos cumpri­mentamos, ele perguntou o que eu esta­va fazendo lá e contei sobre a proposta do lorde Hesketh. Depois também per­guntei para onde ele estava indo e o Frank disse, com ar muito natural: "Ah, estou indo para Milão, hoje." Eu quis sa­ber em que vôo e ele respondeu: "Não tenho vôo. Ainda não consegui dinheiro pra comprar a passagem. Estou aqui no aeroporto para ver o que eu consigo." Eu falei que o avião do lorde estava me espe­rando e podia dar uma carona até Gene­bra e depois ele poderia pegar um trem até Milão, sairia mais barato. Ele disse: "Tá fechado!" [Risos.] Você imagina uma coisa dessas? O Frank Williams, que logo depois seria o rei da Fórmula 1, sem di­nheiro para comprar uma passagem!


PLAYBOY — Você não chegou a esse ponto.


EMERSON — Não, nem perto disso. Mas você vê o esforço do pessoal que acredita no seu projeto. Se bem que o Frank é um caso especial, ele sempre funcionou com uma autoconfiança assustadora. A primeira vez que ele quis me contratar foi em 1969. Depois, em 1970, insistiu pa­ra que eu fosse com ele à Itália, para ver um carro que estava sendo feito perto de Modena. Nessa época o Frank ainda esta­va com algum dinheiro, porque me le­vou de avião, num vôo de carreira. O pla­no era ir e voltar no mesmo dia. A gente se encon­trou na oficina de­le em Londres e de lá fomos para o aeroporto de Heathrow, o Frank guiando e eu ao la­do dele. Chega­mos diante da por­ta principal do ae­roporto, ele pa­rou, pegou a pasti­nha, abriu a porta e deixou o carro com a chave no contato. Entrou no aeroporto e eu atrás. Fomos até a companhia aérea, ele me deu o bi­lhete, fiz o check-­in e uma hora perguntei para ele: "Frank, e o carro na porta?" Ele dis­se, tranqüilamen­te: "Não se preocupe, o carro já deve estar indo para o lugar mais seguro de Heathrow: o estacionamento da polícia. À noite, a gente pega lá. Não é prático?" [Risos.]


PLAYBOY — Não dá para dizer que ele é o único maluco do automobilismo. Vocês chegam a 400 quilômetros por hora numa pista como a de Indianápolis, e fazem um duelo como na sua primeira vitória nas 500 Milhas, em 1989...


EMERSON — Mas aquela foi a minha vitó­ria mais emocionante da minha carreira!


PLAYBOY — Como foi aquilo, visto de dentro do carro?


EMERSON — Aquela foi incrível. Na segunda parte da corrida eu tinha assumido a liderança e, quando faltavam dezoi­to voltas, fui reabastecer aproveitando uma bandeira amarela. Emocionado com a possibilidade da vitória, que estava próxima, o dono da nossa equipe de en­tão [a equipe Patrick], o "Pat" Patrick, mandou o pessoal encher o meu tanque, em vez de colocar só o suficiente para eu chegar ao final. Aí o carro ficou pesado e, quando a corrida reiniciou com ban­deira verde, vi o Al Unser Jr. se aproxi­mando.


PLAYBOY — Você quase perdeu as 500 Militas por causa de um erro desses?


EMERSON — Em Indianápolis os caras er­ram... fica todo mundo louco naquela pista. Lembro que para mim parecia aquele pesadelo, de repente você está afundando na areia movediça e o cara es­tá te alcançando atrás. Acelerava o carro e o carro não andava na reta, eu olhava no espelho e o Al Unser chegando. [Fe­cha as duas mãos sobre o rosto e a voz sai anasalada] Aí eu falava comigo: "Não vou perder as 500 Milhas de Indianápolis depois de ter liderado tanto tempo, não vou perder, não vou perder." Aí, faltando umas quatro voltas, peguei um tráfego, o pessoal me atrapalhou um pouco e ele me passou. Na volta seguinte foi a vez dele pegar o tráfego na minha frente. Eu vim embalado com meu carro muito pesado, peguei o vácuo dele e saí, mas ele me fechou até a grama. Nós descemos para a terra faltavam três voltas para acabar a corrida —, fomos chegando para a curva 4, eu por baixo e ele por fora. Olhei com o rabo do olho e vi a cabeça dele assim pra frente, e pensei: "Ele não vai tirar o pé e eu não vou tirar o pé." Entramos na curva sem tirar nada do acelerador — nunca fiz isso na minha vida. Tem horas no automobilismo em que a gente se arrisca mesmo. Entramos na curva lado a lado, ai o meu carro saiu de traseira, bateu no dele, ai o dele saiu virando, eu quase virei, controlei, e foi assim que eu ganhei a corrida. Graças a Deus ele não se machucou. Hoje, é o meu compa­nheiro de equipe na Penske.


PLAYBOY foi a maior disputa da sua vida?


EMERSON — Não, a maior foi com o Nigel Mansell, em Cleveland, no pri­meiro ano dele na Indy, em 1993. E não era nem pela liderança, era pe­lo segundo lugar. A gente trocou se­te vezes de posi­ção em duas vol­tas, no meio da corrida. Foi im­pressionante, ele me passava, eu passava... Foi o li­mite, talvez, a que um piloto pode chegar do outro. Ficamos roda com roda, numa distância assim [fecha o polegar e o indicador lado a lado, quase se tocando]. Foi de­mais, principalmente para mim, que acabei che­gando na frente. Acho que nunca mais vou ter isso na minha vida. Nem ele.


PLAYBOY — Pensando em sua vida intei­ra nas pistas, os adversários que teve, quem foi sua maior referência, tipo "eu tenho de ser igual a esse cara"? Todo mundo tem alguém para servir de parâ­metro, em qualquer profissão.


EMERSON Eu fui a um show do Ro­berto Carlos, em Miami, e o Julio Igle­sias estava lá e falou pra mim: "Emer­son, vim ver o show do Roberto Carlos para ver como é que está, porque eu quero aprender".


PLAYBOY — E para você, quem é seu Roberto Carlos?


EMERSON — Eu tive uma carreira tão lon­ga, dentro da Fórmula 1 e da Fórmula Indy, que vários campeões representa­ram esse papel. É um pouco difícil falar, porque o automobilismo parece ser mui­to individual, quando visto de fora, mas tem uma equipe toda por trás — tem o equipamento, o projetista, o engenheiro que desenvolve o carro, o programa de computador... Não é como o tênis, por exemplo, que coloca duas pessoas frente a frente, cada uma com uma raquete que pode ter as cordas mais duras ou mais moles, mas não vai ser muito diferente uma da outra. No automobilismo, o ho­mem não anda se a máquina não anda. E tem outra coisa: a regularidade. Um pilo­to pode ter uma participação muito espe­cial, uma performance extraordinária num determinado grande prêmio, mas acho que a análise tem de ser feita du­rante o ano quem foi o mais constan­te andando bem. Porque isso mostra também como ele acerta o carro para pistas diferentes. Todas os grandes cam­peões contra quem eu competi, todos, ti­nham essa característica de serem cons­tantes durante o campeonato todo. em condições diferentes.


PLAYBOY Você competiu em duas eli­tes do automobilismo, a Fórmula 1 e a Indy. Mas muita gente acredita que a Fórmula 1 é a mais difícil.


EMERSON Por quê?


PLAYBOY — Pela comparação entre dois campeões, que mais ou menos na mesma época trocaram de categorias. O Michael Andretti saiu da Indy e foi humilhado tecnicamente na Fórmula 1, onde dirigiu como um principiante. Já o Nigel Man­sell saiu da Fórmula 1 como campeão, ganhou o campeonato da Indy logo no primeiro ano e, quando tentou voltar pa­ra a Fórmula 1, pareceu que não sabia mais pilotar.

EMERSON — O Nigel veio com tudo para a Indy, no primeiro ano estava muito bem, já no segundo ano quase não fazia teste, não tinha aquele empenho. Quando voltou para a Fórmula 1 estava fora de forma, e aí aconteceu o pior: foi dispensado pelo Frank Williams, numa situação meio humilhante.


PLAYBOY E o fracasso do Michael An­dretti?


EMERSON O Michael foi para a Fórmu­la 1 tendo que enfrentar duas compara­ções difíceis ao mesmo tempo: era filho do Mario Andretti, que tinha sido cam­peão mundial pela Fórmula 1, e compa­nheiro de equipe do Ayrton Senna na McLaren. Para complicar, ele cometeu o erro de não se mudar para a Europa du­rante a temporada. Morava nos Estados Unidos, pegava o Concorde, ia e voltava. O fuso horário aí já mela tudo. Eu per­guntei muito do Michael para o Ayrton, que me disse: "Emerson, ou ele está en­trando muito rápido, ou muito lento. Não pegou ainda o judgement que a gen­te deve ter na Fórmula 1."


PLAYBOY Judgement?


EMERSON — O julgamento, como a gen­te fala. A noção de aproximação de curva.


PLAYBOY — Tem também o problema de que o ambiente da Fórmula 1 seria mais venenoso, digamos assim?


EMERSON O ambiente da Fórmula 1 é terrível. Você perde a motivação na hora.


PLAYBOY O ambiente envenena onde? Entre os pilotos?


EMERSON — É tudo, tudo. Você não vê urna família... Aqui na Indy, quando posso, trago meus filhos. Você vê sempre a molecada em volta, as mulheres, é outro ambiente. Na Indy os jornalistas têm hora certa para falar com o piloto. Na Fórmula 1 fica aquela puta correria, ninguém consegue falar com ninguém. Tem muita fofoca... É um ambiente assim: todo mundo na Fórmula 1 é gênio. Desde pilotos, mecânicostodo mundo se acha o máximo por estar ali. Cria-se um ambiente que não existe, atrapalha. Isso tudo prejudicou o Michael.


PLAYBOY— Você chegou a falar com ele sobre isso?


EMERSON — Muito. A mulher dele, a Sandra, ligava para a Teresa: "Pó, estão me maltratando aqui. Os caras aqui são muito maus" [risos].


PLAYBOY — Mesmo nessa questão de mulheres em torno da pista, parecem ser dois mundos diferentes, na Europa e nos Estados Unidos. Na Indy, todo mundo usa aliança, as esposas têm um lugar de honra à beira da pista. Já a Fórmula 1 tem aquele clima de Salão do Automó­vel, com as garotas de shortinho em volta dos carros.


EMERSON — É que são mentalidades diferentes, mesmo. Para os americano, o automóvel é uma coisa mais comum. Na Europa é que existe todo um clima de glamour em torno da velocidade. Lá, é muito tradicional a mulher gostar de automobilismo. Talvez tenha a ver com a origem do automobilismo na Europa. Quando começaram as corridas, depois da I Guerra Mundial, logicamente o ne­gócio não era profissional e quem podia correr era o pessoal da nobreza, ou das famílias mais ricas. Então ficou uma coisa glamourizada, um clima muito sofisti­cado, nas vésperas das corridas, nos principais hotéis de Monte Carlo ou de Paris, mulheres bonitas, aquela aura de aventura...

PLAYBOY — Quem foi o maior conquistador que você encontrou entre os pilotos?


EMERSON — O mais louco era o [suíço] Clay Regazzoni. Descontrolado.


PLAYBOY — Aparecia muita garota para ele?


EMERSON — [Enfático.] Nossa! As coisas que ele fazia... Uma vez ele chegou para mim, num sábado à tarde, véspera do Grande Prêmio da Alemanha, em Nur­burgring, e disse: "Emerson, quer apos­tar uma coisa comigo? Aposto que vou fazer amor ali no padoque, ainda hoje." E respondi: "Você está louco? Aposto que não vai." E ele insistiu: "Pois eu vou. Entre o caminhão da Ferrari e o da Fires­tone. Na chuva." Estava chovendo, ele pós uma capa grande em volta dele e da menina, se cobriu com o guarda-sol e fez amor ali, e a gente de longe olhando.


PLAYBOY — Com uma menina que ele conheceu na hora?


EMERSON — Uma namorada que ele ti­nha trazido da Suíça. Ele só andava com menina bonita. E ganhou a aposta [risos].


PLAYBOY — Você era tímido com as me­ninas?


EMERSON — [Rindo.] Eu ainda sou.


PLAYBOY — com as meninas?


EMERSON — Em geral. Não gosto muito das situações com muita gente. Uma fes­ta, por exemplo, com todo mundo gru­dado, assim. Além de eu ficar tímido não me sinto bem.


PLAYBOY — E em volta de Interlagos, no seu tempo de solteiro?


EMERSON — Já tinha muitas garotas ali em volta, sempre teve.


PLAYBOY Porque existe essa atração, não é? As garotas e os carros, especial­mente os carros envenenados.


EMERSON — Tem, tem.


PLAYBOY — Você imagina por quê?


EMERSON Bom, o carro é uma coisa emocionante. Você andar rápido é muito emocionante. Nossa... Eu já levei menina no carro que gritava.


PLAYBOY — Sem você tocar nela?


EMERSON [Rindo.] Na pista, de emo­ção. A Teresa mesmo, uma vez eu levei para dar uma volta na pista de Interlagos, ela começou a gritar, mas nunca mais quis voltar. De medo. Mas emocionada. O carro, a velocidade transmitem uma emoção para a pessoa. Existe uma combi­nação entre o homem e a máquina, prin­cipalmente quando se fala em nível de Fórmula, de alta velocidade.


PLAYBOY — O outro lado da aventura, que dá essa emoção, é o risco. Entre os heróis do automobilismo em todos os tempos, existem aqueles que ficaram velhinhos com todos os ossos no lugar, como o argentino Juan Manuel Fangio [campeão mundial cinco vezes na década de 50]; outros morreram tragicamente ce­do, como o Ayrton Senna e o Jochen Rindt [piloto austríaco falecido em aci­dente em 1970, ano em que foi campeão postumamente]; o Niki Lauda sobrevi­veu, mas com o rosto todo desfigurado pelo fogo.


PLAYBOY — Afinal, dá para saber quem são vocês, os pilotos? Que tipo de gente tenta essa profissão?


EMERSON — Em primeiro lugar, é uma pessoa que gosta de aventura, que gosta de arriscar. Todos nós temos limites, co­mo seres humanos, mas os pilotos são aqueles que tentam levar o limite ao ex­tremo. Nas corridas, cada vez mais quere­mos chegar mais rápido na curva, frear mais tarde, passar o outro. Então a ques­tão é sempre em tomo do limite: esta­mos sempre à procura de um limite maior.

PLAYBOY Fora das pistas, vocês man­têm essa característica em tudo o que fa­zem?


EMERSON Acho que sim. Em tudo o que faço eu ponho o limite da eficiência, limite da performance. Além disso, procuro ter a mente sempre ligada no cor­po, eu uso muito isso até a própria in­tuição, que a gente tem de treinar. Isso é muito importante para um piloto: você tem de sentir, perceber coisas antes que elas acontecerão. Eu falava muito com o Ayrton sobre isso. Que um dia bom de corrida, quando você está bem mesmo, é quando está olhando para frente, ga­nhando a corrida e sem olhar para trás ou para o lado você sabe a que distância está o outro, se ele está chegando ou não você está sentindo isso. Eu já tive dias assim, perguntei para o Ayrton e ele me disse que também teve. Conversamos muito sobre isso. Aquele feeling que você tem, sem explicação, e todo um conjun­to de coisas que você faz para estar tudo na pele, juntando a mente, a intuição e o corpo, reflexos, coordenação, trabalhan­do tudo em harmonia. É o dia em que o piloto está em seus 110% de eficiência. Para ganhar um campeonato, o cara tem de estar mais perto quase sempre nesse dia, o que é muito difícil.


PLAYBOY — De todos os campeões que você viu ou de quem ouviu falar, quais os três que você colocaria nesse nível quase sobre-humano? Qual o pódio de todos os tempos?


EMERSON — Difícil dizer.


PLAYBOY — Quais os três que você con­trataria para sua equipe?


EMERSON — Difícil... Eu contrataria o Ayrton, pela técnica, pela habilidade na­tural que ele tinha, apesar de eu nunca ter corrido contra o Ayrton. De qualquer forma, é o nome que me vem de cara — e não só porque sou brasileiro, acho que muita gente pelo mundo afora faria a mesma escolha. Como segundo... eu con­trataria o Fangio, lógico, porque foi o meu ídolo desde que eu era molequi­nho. Lógico que o tempo dele era outro, praticamente tinha-se que correr com o mesmo carro, com as mesmas regula­gens, em todas as corridas da temporada, não havia essa infinidade de recursos que temos hoje. Mas no fundo, em qualquer época, é sempre o fator humano que decide as paradas. Eu vi o Fangio correr uma vez em Interlagos, eu fiquei na curva do S e reparei que a toda volta, a toda curva ele punha a roda no mesmo lugar, impressionante a perfeição do esti­lo dele. Vai ver o Fangio não era muito rápido numa volta, mas ele era constante a corrida toda, o que é muito difícil também. Quem seria o terceiro... o Jackie Stewart, talvez... O Jackie sempre teve uma habilidade natural muito grande e era um ótimo acertador de carro. Nossa, seria uma superequipe!


PLAYBOY Vamos falar um pouco do Senna? No mesmo dia em que você venceu pela primeira vez as 500 Milhas de Indianápolis, em 1989, ele ganhou o Grande Prêmio do México. No dia se­guinte você se encontraram em Miami. O que você lembra desse encontro?


EMERSON — O Ayrton... O [repórter e co­mentarista da Rede Globo] Reginaldo Le­me me contou depois uma coisa que aconteceu no grid desse Grande Prêmio do México. Estava quase na hora da lar­gada quando acabou Indianápolis e o Reginaldo disse para ele que eu tinha vencido, e o Ayrton começou a chorar, dentro do carro. Depois disso a gente se encontrou e... Olha, tenho muita coisa que conversei com o Ayrton, e falamos tantas coisas especiais que eu não vou re­velar publicamente, porque é coisa que a gente conversou de religião, mentaliza­ção, concentração, visualização, coisa que sente no carro — e eu acho que não tenho de falar com ninguém. Eu tinha um carinho muito especial com o Ayr­ton, um respeito e uma puta admiração por ele.


PLAYBOY — Quando o Senna estava em dúvida se ficava na Fórmula 1 ou se ia para a Indy, no fim de 1992, ele veio fa­zer um teste na Penske. Como foi esse teste?


EMERSON — Foi um dia muito especial, também. Aliás, começou numa noite em que a gente jantou no Fasano, em São Paulo. Eu falei: "Ayrton, por que você não vai testar meu carro? Já que você está nessa situação, sem renovar com a McLa­ren e também sem acertar com a Wil­liams, vai sentir a Indy." Contei que esta­va indo para os Estados Unidos perto do Natal, dia 21 de dezembro, para uns tes­tes em Phoenix [no Arizona]. Ele se ani­mou e eu fiquei de consultar o Roger Penske. Depois o Roger autorizou o Ayr­ton a andar num circuitinho misto que tem em Phoenix, mas no oval não, seria muita pressão andar de cara num oval. Aí nós viajamos juntos para Phoenix. Quando foi andar, nas dez ou quinze primeiras voltas ele estava muito nervoso, eu sentia no olhar dele. Então o Ayrton pediu para modificar o banco, que achou muito inclinado, e a gente mu­dou. Aí ele deu mais umas dez voltas, vi­rou rápido pra chuchu e, quando parou, o olho dele brilhava, como um garoto que ganhou o maior presente de Natal. "E muito bom o carro, muito bom", ele dizia. No dia seguinte fui andar no oval e pedi para o Rick Mears levar ele por fora, para ver a saída de curva, por fora do muro. Lembro até hoje a cara do Ayrton quando eu passava a meio metro da cabeça dele com as rodas, a expres­são bem assustada no rosto dele. Foi a primeira vez que o Ayrton viu um oval de perto.


PLAYBOY E depois, o que aconteceu?


EMERSON — Em fevereiro, ainda no im­passe entre a Williams e a McLaren, ele ligou para o Roger Penske e disse: "Se vo­cê quiser colocar um terceiro carro em Indianápolis, eu corro." Seríamos eu, o Paul Tracy e o Ayrton nas 500 Milhas. Achei bárbaro, mas o Roger não quisnão estava preparado, não tinha carro. O Ayrton assinou com a McLaren e continuou na Fórmula 1. Mas ele quase veio para a Indy.


PLAYBOY — Depois que você abriu a estrada da Fórmula 1 para futuros tricam­peões do mundo, o Ayrton Senna e o Nelson Piques, agora o fenômeno se multiplicou na Indy, onde seis pilotos brasileiros seguem sua trilha. Você se sente uma espécie de pai desses pilotos mais novos?


EMERSONEu me sinto, sim. E sinto muito carinho por eles. Lógico que na competição vou querer chegar sempre na frente. Mas quando estou fora eu acompanho a classificação deles e pro­curo conversar, principalmente passar minha experiência na área de seguran­ça em ovais. Eu me sinto... não um pai [rindo], porque aí me sentiria meio ve­lho, mas um tio de todo mundo que veio depois.


PLAYBOY Bom, um deles é seu sobri­nho mesmo.

EMERSON — O Christian sempre teve amor pelo automobilismo, e principal­mente agora na Indy ele está a mil.


PLAYBOY — Você acha que ele tem al­guma coisa do seu estilo de guiar? Aliás, logo depois de chegar em segundo lu­gar em Indianápolis, este ano, o Chris­tian deu uma entrevista para a revista VEJA e disse que a única coisa em co­mum que tinha com você era o fato de ambos serem pilotos. Você leu essa entrevista?

EMERSON — Não li. Cada piloto tem a sua personalidade, seu jeito de encarar a corrida. Mas acho que de uma manei­ra ou de outra ele tem um estilo muito parecido com o meu — o Christian pi­lota muito limpo, rápido, com um estilo bonito.


PLAYBOY — Você queria que o Jayson, seu filho, seguisse sua carreira?


EMERSON — Queria. Quando o Jayson tinha 11 anos, comprei um kart para ele, levei para Interlagos no kartódro­mo, peguei outro kart, guiei na frente dele para mostrar a trajetória. Ele guiou o dia inteiro e no fim do dia andou bem, para quem nunca tinha andando de kart antes. Isso foi numa terça ou quarta, ele disse que tinha adorado e nós combinamos de voltar no fim de se­mana. Passou o fim de semana e ele não pediu para voltar a andar. Passaram-se seis meses e eu vendi o kart.


PLAYBOY — Nunca vocês falaram sobre isso?


EMERSON um pouco antes de ven­der o kart, eu perguntei se ele tinha von­tade de voltar a andar. Ele respondeu que não e aí não falei mais nada. Eu nunca quis forçar, impor nada. Ainda mais em se tratando do automobilismo. A pessoa tem de ter muita vontade e confiança de fazer aquilo. Se já não tem muita vontade, melhor nem fazer.


PLAYBOY — Na entrevista para PLAYBOY em 1979, você revelou a frase que seu pai disse, quando você anunciou que preten­dia ser piloto. Algo assim: "Eu não vou te ajudar em nada, não vou comprar carro, você que se vire. Só aconselho a fazer bem feito o que decidir fazer." E você, como foi sua conversa com seu filho Jay­son, quando ele decidiu não ser piloto, frustrando uma expectativa sua?


EMERSON Apesar de ele ter decidido ser artista, o meu conselho não foi muito diferente: na carreira dele, que ele faça bem feito e se dedique. Vou achar bárba­ro, se ele conseguir fazer o que mais gos­ta na vida é o que eu faço, também.


PLAYBOY A realização material é se­cundária?


EMERSON Eu expliquei bem para ele: "Jayson, depois de formado, no fim do mês você vai ter de pagar suas contas. Se você tiver mulher e filho..." A arte é com­plicada, porque os artistas vivos, com poucas exceções, não ganham muito. Os pintores... depois que morrem é que ga­nham muito [rindo].


PLAYBOY — Como era você, quando criança? Era bom aluno?


EMERSON Sempre passava de ano, mas só prestava atenção na sala de aula. Em casa não estudava — ou melhor, estuda­va outras coisas: primeiro comecei a me­xer com aeromodelismo e a partir daí me envolvi com mecânica. Fui levando a escola até o 22 científico, depois eu já es­tava mergulhado de cabeça nas oficinas e nas pistas.


PLAYBOY Antes de mexer com mecâ­nica, do que você brincava?


EMERSON Era muito de brincar sozi­nho. Ficara desenhando, horas.

PLAYBOY Com que idade você come­çou a trabalhar?


EMERSON — Tinha 15 anos quando ga­nhei meu primeiro dinheiro, fazendo manutenção de karts na garagem de ca­sa. No início eu mexia só no kart do Wil­son, meu irmão mais velho. Como o Wil­son começou a ganhar um monte de corridas, um amigo dele perguntou: "Você cuida do meu?" Eu disse que cuidava, se ele pagasse, e logo eu estava cuidando de cinco karts.


PLAYBOY O que você fez com seu pri­meiro dinheiro?


EMERSON — Comecei a juntar para gas­tar em corrida. Eu tinha uma motocicle­ta e comecei a prepará-la para corrida. Era a motocicleta em que eu ia para a es­cola, e no domingo corria com ela. Nessa época ficava enfiado naquela garagem, não queria saber de mais nada. E logo fui ampliando as atividades, comecei a fa­bricar volantes...


PLAYBOY— Você desenhava os modelos?


EMERSON O Wilson trouxe de Paris um volantinho de Fórmula 1, bem pe­queno. Aí eu falei: "Vou fazer um pra pôr no carro da minha mãe." E fiz. Aí um amigo meu chamado Fofô viu e quis um igual. Disse assim: "Fala quanto você gastou que eu pago o dobro." Nós estáva­mos no Totem, que acho que foi o pri­meiro drive-in do Brasil, ficava lá na Ave­nida Santo Amaro [Zona Sul de São Pau­lo] e juntava toda noite o pessoal que gostava de automobilismo. "Pago o do­bro", disse o Fofô. Eu fiz para ele, mais gente viu o volante e cada noite vinha mais encomenda.


PLAYBOY— Era de madeira, não era?


EMERSON Não. No começo era couro, borracha por dentro e couro por fora. Eu mesmo é que fazia.


PLAYBOY — Você mesmo, com suas mãos?


EMERSON — Sempre tive habilidade ma­nual, meu pai também. Acho que o ne­gócio do Jayson com arte vem daí. Lem­bro que antes de fazer o primeiro volan­te fui até um sapateiro que tinha perto de casa. A gente morava na Avenida Rebouças [na região dos Jardins, em São Paulo], pertinho da Iguatemi, que depois virou Faria Lima. Fui até um sapateiro em Pinheiros [bairro da capital], mostrei o volante francês e um pedaço de couro que eu tinha cortado e perguntei conto é que se costurava aquilo para ficar igual. Ele me ensinou ali na hora e costurei o meu volante com duas agulhas. Na mão. Foi esse volante que eu coloquei no car­ro da minha mãe.


PLAYBOY — O carro era da sua mãe, mas o presente era para você mesmo. não é?


EMERSON — Claro, era para eu tirar ra­cha! [Risos.] Minha mãe ficou apavorada quando viu o tamanho do volante, me deu uma puta bronca. Eu falei: "Ah, mãe, experimenta para dar uma volta..." Ela não conseguia nem pegar no volante, de tão pequeno que era. Mas aí convenci minha mãe e ela deixou o volante no lu­gar. E, gozado: lembro que o sapateiro que me ensinou a costurar foi o primeiro funcionário que tive na vida, porque de­pois de duas semanas as encomendas eram tantas que eu convidei ele para tra­balhar comigo em casa, numa oficinazi­nha que montamos na garagem.


PLAYBOY — Você conseguiu ganhar di­nheiro com isso?


EMERSON — Foi com o dinheiro disso que comprei um Fórmula-Ford, que construí um protótipo Fitti-Porsche, depois fiz uma fábrica de kart. Com o di­nheiro desses empreendimentos é que fui correr na Europa.

PLAYBOY — A fábrica era só sua?


EMERSON — No começo sim, depois convidei meu irmão Wilton para ser só­cio. Fomos para um predinho no Largo do Socorro, em Santo Amaro, ao lado de onde estava a sede da Equipe Willys, per­to também do autódromo de Interlagos. O negócio foi aumentando, aumentan­do, até nós termos uma linha completa de acessórios para carros Volkswagen de corrida. A primeira roda de alumínio e magnésio feita no Brasil foi eu que fiz. Fui no Campo de Marte [pequena aeropor­to na zona norte paulistana], comprei su­cata de magnésio de avião, que levei para uma fundição em Pinheiros de um italia­no, Giuseppe Trincanato, hoje dono da maior fábrica de rodas do Brasil. Ele fez a roda comigo, seguindo um molde de madeira que tinha sido feito pelo irmão do Mário "Napa", meu sócio na fábrica de kart. A fusão deu um trabalho enor­me, porque ninguém estava acostumado com aquele material — magnésio naque­la época só tinha em sucata de avião. Na, primeira vez em que a gente pôs fogo na­quilo começou a subir faísca, porque magnésio é incandescente, foi uma des­graça até a gente acertar a maneira de fundir.


PLAYBOY — O que você está dizendo é que no meio da década de 60, enquanto a indústria brasileira começava a produ­zir aquilo que o futuro ex-presidente Fer­nando Collor chamaria de "carroças", uma geração de moleques chamados "Napa", "Fofô" ou "Rato", como era seu apelido na época...


EMERSON — É, a gente estava criando uma tecnologia esportiva de competição. E muitas coisas passaram para os carros de passeio.


PLAYBOY — Quando você foi competir na Europa, quantas pessoas trabalhavam nesse seu pequeno império de acessórios automobilísticos?


EMERSON Umas quarenta pessoas, ocupando um prédio que eu tinha com­prado no próprio Largo do Socorro. Fa­zíamos volantes, rodas, um câmbio de cinco marchas para Volkswagen, radia­dor... Depois que fui para a Europa o ne­gócio continuou, tocado pelo Wilson e por um tio nosso. Mas depois o Wilson também foi correr na Europa e a gente vendeu tudo. O engraçado é que, muitos anos depois, assim que me mudei para os Estados Unidos para correr na Indy, um americano me propôs lançar uma linha de rodas esportivas com a marca Fittipal­di, voltando à origem de tudo.


PLAYBOY — Você só cede os direitos de exploração do seu nome, ou ainda dese­nha alguma coisa?


EMERSON — Participo da criação. Eu sempre... Olha, tem um negócio que pouca gente sabe: eu mudei o desenho dos volantes de carro no mundo todo.


PLAYBOY — O quê? Como foi isso?


EMERSON — Em 1974, eu desenhei um volante para o meu Fórmula 1 na McLa­ren, com empunhadura. Aí todo mundo copiou. Até hoie tem sabe o que é, com aquelas ranhuras, que você pega co­mo num revólver? Fui até a fábrica Per­sonal na Itália e disse: "Quero fazer uma coisa que até hoje nunca fizeram em vo­lante." Outra coisa: o raio dos volantes era na posição "10 pras 2", tradicional­mente, e eu mandei fazer "9 e 15". Ou seja, antes a posição para se dirigir era mais incômoda, porque os pulsos da gen­te tinham de ficar mais no alto do volan­te, virados para fora. Era difícil comple­tar um círculo inteiro numa tomada só, de uma maneira mais suave. Então eu baixei um pouco a mão e deixei os pul­sos bem no meio do eixo do volante, em posições paralelas. Hoje em dia todos os carros do mundo seguem esse modelo de volante, inclusive os carros de rua, e ninguém sabe que quem fez esse dese­nho fui eu, com a Personal na Itália, 21 anos atrás. Mudou o desenho do volante no mundo. Nós tínhamos a patente mundial dessa inovação, mas basta al­guém alterar um milímetro para cima ou para baixo que pode fabricar também, então isso se espalhou por todo lado.


PLAYBOY — E pensar que poucos anos antes você estava convencendo a sua mãe a trocar o volante dela... Sua mãe sabia que você tirava racha?


EMERSON — No começo, não. Quando eu tinha 15 para 16 anos, pegara o carro dela, roubado.


PLAYBOY — É mesmo? Que carro era?


EMERSON — [Rindo.] Um Renault Dau­phine, cor de alface.


PLAYBOY — Dauphine? Foi um dos pio­res carros do mundo! Você conseguia fa­zer aquilo andar?


EMERSON — [Sem conseguir parar de rir.] Eu tinha um carinho grande por ele, porque foi o primeiro carro em que eu corri...


PLAYBOY— O apelido desse carro no iní­cio dos anos 60 era "Leite Glória": des­mancha sem bater. Como é que se orga­nizavam os rachas?


EMERSON — A gente ficara parado, espe­rando chegar o pessoal. Tinha um postinho no [bairro paulistano do] Pacaembu onde ficava uma turma que gostava de correr. A gente falava: "Vamos tirar um racha?" Os outros diziam "Vamos!" e nós íamos embora, três ou quatro carros, pa­ra correr e voltar. Os rachas eram todos por ali, em torno da Praça Vilaboim ou naquelas ruas cheias de curvas perto do estádio.


PLAYBOY Você chegou a bater alguma vez?


EMERSON — Uma vez, na Vilaboim, esta­va garoando de madrugada, aí eu dei uma volta, duas voltas na praça, saindo bem de lado, porque o piso era de calça­mento. Na terceira volta um caminhão de leite tinha estacionado diante de uma padaria e eu não vi, entrei na traseira dele de lado. Destruí o carro da minha mãe.


PLAYBOY E o seu pai? Ele sempre foi ligado em automobilismo, não foi?


EMERSON — Desde pequeno. Quando cresceu, meu pai quis ser jornalista e co­meçou a trabalhar em rádio. Logo de­pois da Guerra, quando o Chico Landi foi correr na Europa, o meu pai foi o pri­meiro a transmitir uma corrida direto pa­ra o Brasil, pela rádio Panamericana o Grande Prêmio de Bari, na Itália, que o Chico Landi ganhou, por sinal. Mais tar­de, o Getúlio Vargas acabou dando uma Ferrari zero quilômetro para o Chico Landi correr o Campeonato de Fórmula 1 na Europa em 1950, por causa da cam­panha que meu pai começou. Ninguém sabe disso. Pintaram a Ferrari de amare­lo, a cor do Brasil, e o Chico Landi foi correr na Europa.


PLAYBOY — O seu pai também gostava de correr?


EMERSON — Gostava. No início dos anos 50 ele organizou uma prova cha­mada 24 Horas de Motocicleta. Meu pai correu de BMW e fez a transmissão de uma volta montado na motocicleta, contando para os ouvintes da rádio as emoções. Houve um acidente terrível nessa prova: um piloto com outra BMW bateu num português que corria numa moto pequena, meu pai que vinha atrás acabou batendo também, formou-se um rolo com os três — o português morreu, o outro cara teve a perna que­brada e meu pai ficou quase quatro me­ses no hospital, entrou em coma, quase morreu. E um ou dois anos depois meu pai correu as 24 Horas de Interlagos de Mercedes, e minha mãe correu tam­bém, em dupla com outra mulher, cha­mada Dale Ribeiro. Quase ninguém sa­be disso, na história do automobilismo brasileiro.


PLAYBOY Você foi ver essa prova?


EMERSON Claro. Eu já tinha 7 anos.


PLAYBOY — Você frequentava Interlagos desde que idade?


EMERSON — A primeira vez que fui, tinha 5 anos. Lembro muito bem. Meu pai transmitia as corridas de uma torre, per­to da curva do S. Ele ficava lá em cima, numa espécie de plataforma. Minha mãe passou um giz no asfalto ali perto e falou: "Você e seu irmão não podem sair desse giz. Vocês vão assistir a corrida daqui". Eu fiquei lá e adorei, e tive a sensação: é isso que eu quero fazer.


PLAYBOY Sua mãe dirigia bem?


EMERSON — Não. [Rindo.] Ela não vai gostar de ler isso, porque acha que diri­gia o máximo. Mas o estilo dela era gru­dado para frente, sabe aquela aflita no rolante?


PLAYBOY — Mas ia para uma pista de alta velocidade assim?


EMERSON — E anda. rápido! Mas não dirigia bem.


PLAYBOY — Mas então isso é possível, num nível de competição?


EMERSON Bom, ela e meu pai eram pi­lotos amadores. E, de qualquer modo, tem muito piloto que eu conheço, piloto médio e bom mas não muito bom — que sabe andar muito rápido sozinho, mas não tem a mesma performance no meio dos outros.


PLAYBOY — Como foi você, saindo dos rachas para as pistas? Lembra da sua primeira prova, na Ilha do Governador, no Rio?


EMERSON — Eu ia correr a prova de no­vatos com um carro da Willys, mas deu problema e o Hélio Maza, um conhecido meu do Rio, me emprestou o carro para eu correr. Era um Renault 1093, quatro portas. Na terceira ou quarta volta, no fi­nal da reta eu dei uma capotada e virei fora da pista. Por sorte as pessoas corre­ram e não peguei ninguém. Apertei o freio, não tinha nada e tive que virar o volante, para não ir direto no público. Já saí capotando, na entrada da curva, e passei em cima da cerca que separava o alambrado. Me lembro que quando pa­rou de virar eu estava de cócoras entre o banco e o teto todo amassado. Saí sem nenhum machucado, mas o carro estava destruído. E a Willys teve de dar um car­ro zero para o Hélio.

PLAYBOY Você já tinha dado uma por­rada tão forte?


EMERSON — Não... Pô, foi a única capota­da que eu dei na minha vida. [Levanta-se da poltrona onde está sentado e bate trás ve­zes no tampo de madeira de uma mesinha de centro.]


PLAYBOY — Você tem medo de muitas coisas na vida?


EMERSON Muito [rindo]. Eu tenho me­do de um montão de coisas. Tenho me­do de altura. Não posso olhar do alto de um prédio, por exemplo apesar de eu gostar muito de voar. Mas eu subo num prédio e não consigo olhar pra baixo. Elevador de vidro que vai por fora do prédio... não dá para eu andar naquilo. Morro, serra, eu nem olho para baixo. Do que mais eu tenho medo... ah, tuba­rão. Na Austrália eu entrei no mar apavo­rado. E também tenho medo de arma. Nunca tive revólver, não gosto de arma.


PLAYBOY Mas o medo muitas vezes se confunde com atração, não é? Por exemplo, o medo de altura parece muito uma luta contra o impulso de se atirar lá de cima.


EMERSON ...tenho medo de aranha. Quando você falou em atração eu lem­brei: eu tenho atração por aranha. Por exemplo, cobra eu não tenho medo nem tenho atração. Aranha eu gosto de olhar. Se vou num zoológico, vou olhar aquelas caranguejeiras, fico olhando elas se mexerem, mas tenho o maior medo. Cobra, não. Na fazenda em Ara­raquara nós encontramos uma sucuri preta de 400 quilos, era um monstro, es­tava enrolada e parecia uma pilha de pneus. Dava na altura do peito do rapaz da fazenda que se aproximou dela. En­tão foi se desenrolando e entrando na água. Mas eu não tenho medo.


PLAYBOY — Qual a melhor pista em que você dirigiu na sua vida toda?


EMERSON Sem dúvida, a melhor foi Nurburgring, na Alemanha. Tinha uma volta de 23 quilômetros, com 122 curvas diferentes, nas montanhas. Cada volta era uma viagem — eu fiz em 7 minutos e 23 segundos, no último Grande Prê­mio de Fórmula 1 corrido lá. Só que ela ficou completamente obsoleta para o automobilismo moderno, em termos de segurança. Teve um ano em que chovia numa parte dela e do outro estava seco, a gente não sabia que tipo de pneu usar.


PLAYBOY — E a pior pista?


EMERSON Foi o circuito de Ena, per­to de Catania, na Sicília. Era uma corri da organizada pela Máfia. Campeonato Europeu de Fórmula-2. A superfície do asfalto era inacreditável... tinha muito pó de vulcão. A pista era em volta do Lago de Percusa, e corri lá uma vez só, pela equipe brasileira de Fórmula-2 que eu tinha junto com o Wilsuts. Havia umas onze provas na Europa pelo cam­peonato e, quando você ganhava algu­ma coisa, duas semanas depois os orga­nizadores mandavam o cheque com o prêmio em francos suíços. Não era dólar, nem libra na Fórmula 2, a moe­da era o franco suíço, em qualquer país que a gente corresse. Lá em Ena, acaba­da a corrida, convidaram para a come­moração do grande prêmio. Eu fui, porque tinha chegado em terceiro, mas estranhei o ambiente. Era uma mesona grande, o pessoal todo sentado, de ócu­los escuros, terno claro. Chamavam ca­da participante, "Signore tal..." Disseram "Signore Fittipaldi", fui lá na mesa e me deram um envelope. Quando abri o en­velope vi, espantado, que o dinheiro es­tava lá, com um bolo de notas [risos].


PLAYBOY Em 1989, depois da sua pri­meira vitória em Indianápolis, teve uma cena assim: fizeram uma foto com o seu carro cercado de pilhas de dólares. Aqui­lo era dinheiro mesmo, de verdade?


EMERSON — Era. Eu fui o primeiro piloto a passar de 1 milhão de dólares de prêmio. Então quiseram fazer aquela fo­to comemorativa no dia seguinte à pro­va. Foram a um banco de Indianápolis e pediram para levar o dinheiro em no­tas.


PLAYBOY — Os americanos gostam des­sas coisas — quem ganha muito dinhei­ro numa tacada, mesmo num cassino, vai para a primeira página dos jornais.


EMERSON — É, nos Estados Unidos a re­lação com o dinheiro é outra: não tem que esconder.


PLAYBOY No Brasil, talvez haja um sentimento de culpa de ser rico num país pobre. Você mudou sua mentalida­de nesses onze anos nos Estados Uni­dos?


EMERSON — O americano tem um rela­cionamento pessoal, profissional, de vi­da, muito mais aberto que o europeunão é só o brasileiro que esconde o jo­go. O que eu conheço de milionário eu­ropeu que você olha para ele e não dá nada... Anda numa Fiat caindo aos pe­daços... moita, moita. O americano é muito mais aberto, tem um comporta­mento em relação à honestidade muito mais resolvido. Não estou falando só de dinheiro. Você conversa com o Roger Penske, por exemplo, ele olha para vo­cê e vai ter muito medo de mentir, en­tendeu? Essa é a filosofia do Roger con­versar. Não é por isso que não é malan­dro, não, ele sabe ser malandro. Mas vai ser malandro de uma forma diferente, não mentindo para você. Isso eu apren­di muito com o americano. O meu jeito de falar, de dar entrevista, mudou total­mente. O que falo sai tão natural, que não fico medindo o que sinto e o que eu acho que é verdade.

PLAYBOY — Você poderia fazer um cál­culo do patrimônio acumulado desde que entrou na oficina da casa dos seus pais para mexer nos karts, até agora?


EMERSON Eu poderia até fazer, mas, para mim, mais do que o valor monetá­rio, vale toda a experiência de vida e as pessoas que conheci graças ao esporte. Minha vida foi toda voltada ao esporte, por isso sou tão grato ao automobilis­mo. Depois, a Teresa me abriu a cabeça para outras coisas fora do esporte, por­que eu era um brucutu, agora acho que sou um semi-brucutu graças a ela, porque estava isolado, sem conhecer o resto do mundo. Meu grande patrimô­nio é a família que tenho, a minha mu­lher, meus cinco filhos maravilhosos, a parte humana, eu acho.


PLAYBOY — O que as pessoas à sua vol­ta têm de aguentar em você, e você re­conhece que não é fácil?


EMERSON — Eu sou muito detalhista e muito repetitivo. Quero tudo muito certinho. Sou aquele pentelho que che­ga falando cinco vezes a mesma histó­ria, até todo mundo entender. Isso dei­xa muita gente irritada em volta. Acho que tenho uma personalidade muito forte, quando tenho alguma opinião é muito forte. A Teresa diz que às vezes entro em casa como quem entra no box durante uma corrida, e tenho difi­culdade em entender que o funciona­mento é outro não tem um grupo de mecânicos super-rápidos, para apertar parafusos, colocar combustível, arru­mar tudo o que está errado em segun­dos. "Aquele livro está fora de lugar, a televisão... a mesa..." Acho que ela tem razão.


PLAYBOY Você tem um temperamen­to difícil?


EMERSON Super.


PLAYBOY Quando você está muito nervoso, como você extravasa?


EMERSON — [Rindo.] Depende. Às ve­zes uns discos voadores cruzam a sala.


PLAYBOY — Copo? Prato?


EMERSON — [Balança a cabeça para frente, mordendo o lábio inferior.]


PLAYBOY Joga tudo na parede, tipo restaurante grego?


EMERSON — Mais ou menos. Mas é raro acontecer. Só uma vez eu dei um baita prejuito — quebrei uma peça de cristal que a gente comprou na Harrod's, em Londres. Uma peça assinada, caríssima. A gente tinha ficado um tempo deci­dindo se ia comprar ou não. Afinal a Teresa me convencel, dizendo que a peça ia ficar para os nossos filhos... Não tinha asa, mas voou [risos]. Aterrissou mal, e quebrou. Quando acabou a crise por causa do estrago, dias depois, a Te­resa disse que na próxima ia dar umas marteladas num de meus Cadillacs.


PLAYBOY Você é emocional em todas as discussões? Política, por exemplo?


EMERSON — Graças a Deus nunca me meti em política.


PLAYBOY Em 1979, quando desistia primeira entrevista para PLAYBOY, você tinha noção de que estava ocorrendo uma anistia, de que estávamos saindo de uma ditadura?


EMERSON — Eu tinha noção.


PLAYBOY E durante a ditadura, você sabia que tinha gente presa por discor­dar do governo?


EMERSON — Claro. O meu parâmetro era a Europa, onde vivia. Olha... eu não sou político, não sei a solução. Mas gos­taria que essa juventude que está na rua hoje em dia estivesse produzindo daqui a alguns anos. Infelizmente isso não aconteceu desde aquela época, com go­verno novo, com governo velho, com ditadura ou sem ditadura. Se eu anali­sar hoje o Brasil em que cresci, em 1950, e o Brasil atual, chegando no ano 2.000, os problemas de base continuam iguais. Agora temos uma nova esperan­ça, com o Fernando Henrique, pela ex­periência dele, pelo preparo — é uma pessoa que viajou pelo mundo, pode entender as necessidades do povo, o ca­minho que deveria partir da educação, não é?


PLAYBOY — Você sabia que nos confins do Nordeste existem professores que ganham 2 dólares por mês?


EMERSON — Não sabia. [Espantado.] Dois dólares? Isso não existe. É esse Brasil que o governo tem de ajudar, que nós todos temos de ajudar. Porque é uma questão de escolher prioridades. Duas erradas que o Brasil deu, há déca­das, foi ter investido pouco em agricultura, em pesquisas dos alimentos que podemos produzir mais que qualquer outro país do mundo. Os governos es­colheram investir em indústria, em vez de agricultura, e além de tudo de for­ma equivocada — nosso modelo indus­trial não buscava a tecnologia de ponta. Veja o que aconteceu com a indústria automobilística, que aproveitava o lixo do Primeiro Mundo pegavam os moldes que sobravam em Detroit, ou na Europa, e mandavam para o Brasil.


PLAYBOY — Se você tivesse de comprar dois carros brasileiros, um de luxo e um popular, quais você compraria?


EMERSON Compraria o Omega. Eu tenho um Omega em São Paulo, é óti­mo. E o popular... podia ser o Vectra. É um bom carro.


PLAYBOY Mas o Vectra não é popu­lar. O modelo mais barato custa uns 30.000 dólares.


EMERSON — Nossa! Então deixa ver... O Uno é um bom carro.


PLAYBOY No que você gasta o seu di­nheiro?


EMERSON — Gosto muito de coisas do mar. Barco... Aparelhos eletrônicos também, tipo telão, vídeo. Carro...


PLAYBOY — Qual é o lugar mais bonito do mundo que você já conheceu?


EMERSON Eu gosto de ir no inverno para Aspen, no Colorado num dia de sol, a visão daquela neve, daquele vale, é o máximo. Tem um lugar que a gente vai, o Lake Powell, que é lindo, parece que você está em outro planeta — fizeram um lago de 300 e tantos quilômetros no meio do deserto no Arizo­na, represaram o rio Colorado. A gente sai de barco e vê aquelas montanhas do deserto, a água azul turquesa, é chocan­te. No Brasil tem Angra, que eu acho lindo, o mar azul, a serra ao fundo com aquela floresta tropical...


PLAYBOY — Qual o seu projeto de vida para sua velhice?


EMERSON — Quero passar uma parte do ano na fazenda, no interior de São Paulo. Adoro o interior de São Paulo, onde as pessoas em geral vivem muito melhor do que nos grandes centros. Mesmo as pessoas mais humildes vivem melhor, põem uma roupa branquinha no domingo. Quero viver uma parte menor do ano na Flórida e o resto do tempo viajando. Quero conhecer o mundo.


PLAYBOY — Mas você já não conhece? Tantos anos na Europa, nos Estados Unidos, correndo no Japão, na Austrá­lia...


EMERSON — Eu queria conhecer mes­mo, sem estar correndo. Quando você viaja para uma competição está só con­centrado naquilo, corre e volta para seus outros compromissos, treinos, testes. Quando parar de correr, um dia, quero estar nesses lugares com outra cabeça.


PLAYBOY — Você pretende voltar a ter uma equipe quando parar de correr, aproveitando tudo o que aprendeu com a experiência da Copersucar?


EMERSON — [Balançando a cabeça, com o olhar perdido.] Não, não...


PLAYBOY — Nunca mais?


EMERSON Eu aprendi a não falar "nunca mais" para qualquer coisa na vi­da. Mas, hoje, nem penso. Nem cogito.


PLAYBOY — Sinceramente, você acredi­ta que existe vida depois da morte?


EMERSON — Acredito. Alma, espírito, todo mundo tem. Não é só matéria. Eu acredito que existe outra vida.

PLAYBOY Você acha que existem reencarnações?


EMERSON — Acho.


PLAYBOY Você tem alguma pista de quem pode ter sido em outras vidas?


EMERSON — Não gostaria muito de fa­lar... Duas vezes, uma no Brasil e outra na Europa, me disseram que eu teria si­do piloto de caça na Segunda Guerra Mundial [1939-1945]. E eu nasci em 1946, então caí em algum lugar e me bo­taram em seguida em São Paulo [risos].


PLAYBOY Esse caça era inglês?


EMERSON — Como é que você sabe?


PLAYBOY — Palpite.


EMERSON — O gozado é que minha car­reira começou na Inglaterra. O primei­ro chão do mundo que vi fora do Brasil foi o da Inglaterra. O avião estava des­cendo, o céu supernublado, abriu um buraco nas nuvens e eu vi aquela grama bem verde eu estava chegando na Inglaterra. Gozado, isso.


PLAYBOY — Você imagina que essa pos­sa ter sido a última visão do piloto in­glês, sendo abatido?


EMERSON — Pode ter sido. Eu gostaria de fazer aquela técnica de regressão, estou louco para fazer isso, ver as outras vidas... Mas [rindo] pode ter certeza de que eu não vou contar para ninguém.


POR GUILHERME CUNHA PINTO

FOTOS ANGEL MOURA


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