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PELÉ | AGOSTO, 1993

Playboy Entrevista


Uma conversa franca com o "Atleta do Século" sobre corrupção no futebol, política, Deus, Xuxa, fama, dinheiro e, é claro, sexo.


O Rei está vestido. Dos pés à cabeça. Botas pretas, jeans de sua grife, lançada na Espanha por ocasião das Olimpíadas de Barcelona, camisa preta de seda pura que ganhou em Los Angeles, gravata vermelha italiana e casaco de couro, também preto, de produção limitada. Aos 52 anos e dez meses, os cabelos querem começar a branquear, ameaça que é pacientemente combatida com uma pinça aplicada nas costeletas e acima das orelhas. A decisão de pintar ou não os cabelos que fizeram de seu topete marca registrada fica para mais tarde , é coisa para se pensar.


O Rei vai ficar nu. Exatamente como queria PLAYBOY ao quebrar uma tradição de dezoito anos. Pela primeira vez, alguém volta a ser entrevistado pela revista. Durante todo esse tempo, 216 personalidades foram ouvidas neste que é considerado um dos espaços de maior prestígio da imprensa brasileira. Com a nova entrevista do mesmo Pelé, o número, é óbvio, não se altera [Não faça as contas, pensando que achou um erro. Tudo bem que se PLAYBOY faz doze entrevistas por ano e completa agora 18 anos, esta é que deveria ser a de número 216. Acontece que, em dezembro de 1980 a revista publicou, além da entrevista normal, uma outra, encartada, a última do Beatle John Lennon]. Pelé fora entrevistado em agosto de 1980, precisamente há treze anos, e, então, apesar de ser inquirido por unta dupla de repórteres, driblou como nunca, a ponto de deixar de responder quem tinha sido a pri­meira mulher de sua vida. Agora, não. Mais maduro ainda, com a guarda menos fechada e disposto a falar sobre temas em que jamais tocou, o Rei se revelou por intei­ro. E quem melhor que ele para derrubar mais um tabu? Quem melhor que o brasileiro mais notável da nossa História, o nome mais conhecido do Universo, mais até que a Coca-Cola?


Achar um tempo na agenda real, porém, foi tão difícil agora como há treze anos, quando ficou registrado na abertura da entrevista: "Num momento ele estava em Nova York, noutro em Tóquio; depois voava para África, de lá para Europa, dava uma rápida passagem pelo Brasil..." A diferença, desta vez, foi que não houve a passadinha pelo Brasil, e o diretor de PLAY­BOY, Juca Kfouri, teve de ir ouvi-lo em Cuenca, no meio do mundo, mais exata­mente no Equador, 2.550 metros acima do nível do mar. O Rei estava lá para acom­panhar, como comentarista da Rede Globo, a participação da. Seleção Brasileira na Copa América.


Valeu a pena. Foram duas tardes de conversa franca, em que não faltou nem mesmo um momento de choro convulsivo do Rei, o suficiente para desarmá-lo defini­tivamente. Chorou ao contar que havia acabado de brigar com o irmão Zoca, e se falou até de desentendimentos familiares foi porque estava mesmo disposto a falar de tudo e de todos. Em sua suíte no hotel Oro Verde, permanentemente guardada por dois seguranças, Pelé riu, chorou, denunciou, revelou, se indignou, cobrou, ameaçou. "Eu não posso voltar a ser entre­vistado por PLAYBOY e não falar a verda­de", anunciou antes de começar .


A verdade do Rei é às vezes surpreen­dente, outras vezes parece ingênua e é quase sempre escancarada. Como quando diz que se não fosse ele gostaria de ser a sua mãe, dona Celeste. Ou quando se rebe­la diante da notícia de que o IPMF (o imposto sobre cheques) havia sido aprova­do pelo Congresso Nacional. "Vou consul­tar meu advogado para saber se a Cons­tituição permite tamanho absurdo. Isso é só para financiar a próxima campanha elei­toral. Conforme for, vou impugnar na Justiça", imaginou. Ou, ainda, quando elogiou e criticou Xuxa, "minha única re­lação realmente séria depois do fira de meu casamento".


Desconcertante como no tempo em que fazia tabelas fantásticas nas pernas de seus adversários, é capaz de dar nota zero para Paulo César Farias e 5 para o ex-presidente Fernando Collor. Ou de dar 10 para o ex-presidente soviético Mikhail Gorbachev e 6 para o ditador iraquiano Saciam Hussein. Suficientemente coerente, no entanto, para, no mundo do futebol, distinguir com um 7 o secretário de Esportes do governo federal, Márcio Braga, e castigar o presidente da CBF, Ricardo Teixeira, com um reprovante 4. Já o anedótico presidente da Federação Carioca, Eduardo Viana (o "Caixa d'Água") fica só com 3, e o da Federação Paulista, Eduardo Farah (o "Caixa Dais"?), leva 5, "porque pelo menos o campeonato de São Paulo tem alguma graça", concede Pelé.


A popularidade é a mesma da época em que foi aclamado como "Atleta do Século" e em que marcou exatos 1.279 gols. A tal ponto que acontecem coisas com ele que nem mesmo Freud explicaria. Por exemplo: o domingo, dia 20 de junho, foi dedicado ao Dia dos Pais no Equador, e Pelé acabou comparecendo a uma festa da família Barsala, dona de empresas em Cuenca. Eram cerca de vinte pessoas, de avós a bisnetos. Os mais velhos, é claro, honradíssimos com presença tão ilustre e inesquecível. Não sabiam como agradar o visitante, tarefa delicada mesmo, pois Pelé continua determinado a não beber nem antes nem durante e nem depois das refeições — um licor de uísque, após o jantar, é o máximo que se permite. E Pelé ainda não tinha jantado. Eis que surge no colo do pai um garotinho com cara de quem tinha acabado de acordar. O mais jovem dos Barsala, Gian Carlo, o "Gigi", olha para a única presença negra na sala dos avós, arregala os olhos, vira-se para o pai e pergunta: "Y la pelota, la pelota?" Os brasileiros que acompanhavam Pelé, e ele próprio, ficaram perplexos com a cena. "Mas quantos anos tem o garoto?", era a pergunta inevitável. "Dois anos, o Gigi tem 2 anos", foi a resposta. Um menino de 2 anos, em Cuenca, no meio do mundo, como se associasse o Criador à criatura, liga imediatamente Pelé à bola! E ele parou de jogar há dezesseis anos!


A partir daí, nada mais surpreende. Pelé não pôde andar em Cuenca, como não pode andar em Nova York ou em Santos, ao contrário do que se supõe por ser a cidade em que vive. Aonde ele vai, um batalhão de adoradores o segue, quer tocá-lo, quer o autógrafo, um beijo, uma palavra. Com um patrimônio avaliado por PLAYBOY — e que nem o seu anjo da guarda, Hélio Viana, vice-presidente da Pelé Sports & Marketing confirma — em cerca de 20 milhões de dólares (muito menos do que se imagina, portanto), o Rei poderia parar de reinar. Mas ele acha que tem ainda alguma coisa de muito importante para fazer, embora não saiba bem o quê. Seja o que for, Pelé diz que vai fazer, acrescentando que não quer mais pensar nas conseqüências, como se avisasse que já não está tão preocupado em ferir suscetibilidades. E, como se sabe, palavra de rei não volta atrás. Por isso, siga em frente nesta verdadeira audiência com Sua Majestade.


PLAYBOY: Alguma vez você quis ser branco?


PELÉ: Nem remotamente. Nunca fui ou deixei de ser aceito pelo fato de ser negro, branco ou amarelo. Em Bauru [interior de São Paulo], na minha infância, eu era o garoto mais querido ou mais detestado da minha rua por jogar bola. De um lado, eu era requisitadíssimo até pelos mais velhos para disputar todos os jogos. Do outro, mesmo quando eu às vezes nem estava jogando, havia os que viviam reclamando com meu pai por causa das vidraças quebradas pela bola. E não se esqueça de que minha primeira namoradinha era japonesa, a Neusinha. Estou dizendo isso para mostrar que nunca tive problemas com o fato de ser negro. O que não significa que o racismo fosse algo que eu ignorasse. Um irmão da minha mãe, por exemplo, meu tio Jorge, jamais conseguia passar de um certo ponto nos empregos dele exatamente por ser negro, coisa que, no entanto, eu só vim a saber depois de já ter sido campeão mundial na Suécia, em 1958. Agora, também não me preocupo mais com um tipo de crítica que sempre sofri no Brasil, me acusando de não defender minha raça. Depois de o [arcebispo sul-africano] Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz, ter dito que não ia mais lavar as mãos depois de ter cumprimentado o Pelé, depois de ele ter dito que o povo africano deve muito a mim, não vou dar importância mais às bobagens de quem não sabe sobre o que está falando.


PLAYBOY: O que mudou em sua vida nos treze anos que separam esta da primeira entrevista que você nos deu?


PELÉ: Mudança física, nenhuma. Até estranho, porque já era para ter acontecido alguma coisa. Mas estou praticamente com o mesmo peso do tempo em que jogava. Pesava, então, 77, 78 quilos. Hoje estou pesando 80. Agora, a cabeça mudou. Penso em coisas que não me preocupavam antes. Principalmente em relação ao futuro dos meus filhos, no que deixar para eles, e em relação ao ser humano mesmo. Gozado, de vez em quando estou deitado, rezando o terço de contas que minha avó (que está para fazer 100 anos) me deu, um terço que foi da mãe dela, me pego pensando no que eu posso fazer para melhorar o mundo. Sinto que estou num momento de definição da minha vida e que alguma coisa importante ainda está reservada para eu fazer.


PLAYBOY: Você se acha mais perto de Deus que os mortais comuns?


PELÉ: É difícil explicar o que sinto espiritualmente. Por isso que sempre distingo o Pelé do Édson [ah, sim, se é que alguém não sabe, o nome de Pelé é Edson, Edson Arantes do Nascimento]. Eu sei exatamente quem é o Pelé e vai ser bom falar aqui de umas coisas sobre as quais jamais falei. Nunca quis falar sobre o que acontece nesta parte espiritual, porque acho que as pessoas podem não entender, podem explorar de um jeito sensacionalista. Sempre há mal-entendidos quando o Pelé tenta passar alguma mensagem. Mas, vamos lá...


PLAYBOY: Vamos mesmo...


PELÉ: Pois é. Tem uma parte dos seguidores do Pelé que não sabe bem quem foi ele. São jovens que sabem só que o Pelé foi um grande jogador de futebol, que não sabem do Edson, que é a base do Pelé. Mas o que já aconteceu na vida do Pelé, coisas que eu não podia nem falar!


PLAYBOY: Por exemplo?


PELÉ: Casos de pais que pedem para o Pelé ir visitar seus filhos em hospitais, crianças que estão em cadeiras de roda... Eu ir visitar e ... e as crianças andarem, pô! [emocionado]. Criança que está na cama, não quer comer, que não fala com o pai nem com a mãe há dez, quinze dias e que quando me vê muda tudo. Pais que telefonam e dizem que o filho está desenganado, com câncer, não sei também até que ponto dramatizam ou não, mas, enfim, que dizem que o menino tem só um mês de vida e que quer me ver enquanto ainda tem consciência, eu vou, a criança não morre naquele mês e até se recupera... São essas coisas que nunca falei, com medo de ser mal interpretado, mas que já aconteceram várias vezes no Brasil e no exterior e que, eu tenho certeza, fazem parte de uma ligação mais próxima de Pelé com Deus. Agora, não posso afirmar que outras pessoas não tenham esse mesmo relacionamento, entende? Isso eu não sei, pode ser que tenham.


PLAYBOY: Como é a figura de Deus para você?


PELÉ: É a imagem de Cristo. É, o que temos, uma imagem psicológica. Mas nunca fiquei satisfeito com aquela imagem muito séria e acabei conseguindo uma pintura de um Cristo sorrindo. Nunca aceitei a imagem do Cristo crucificado, triste. Se ele foi uma pessoa saudável, lutadora, por que a imagem triste?


PLAYBOY: Tem alguma coisa que você gostaria de ter e que Deus não lhe deu?


PELÉ: Eu acho que Deus me deu tudo. Eu só não estou de acordo com o fato de Ele ter me dado tudo e eu não ter forças para alcançar certas coisas que busco, que, é claro, não dependem só de mim. O problema Brasil é um desses-casos. Mas, para mim, Ele deu tudo, sou uma pessoa inteiramente realizada, totalmente realizada.


PLAYBOY: Bem, mas ao que parece nem mesmo Deus consegue dar jeito em tudo, não?


PELÉ: Cristo pelo menos não conseguiu. Minha mãe costuma me dizer isso. "Você quer arrumar o mundo e nem Cristo conseguiu. Ele veio e deixou uma mensagem, mas não conseguiu arrumar o mundo. Você é muito perfeccionista", ela diz.


PLAYBOY: Por falar nisso, das coisas que você fez pela vida afora, o que não faria se começasse tudo outra vez?


PELÉ: Eu faria tudo de novo. Não me arrependo de nada do que fiz.


PLAYBOY: Teria se casado com a Rose, de quem, afinal, você se separou?


PELÉ: Sem dúvida nenhuma. Tudo igual, tudo igual.


PLAYBOY: Hoje vocês se dão bem, ao que parece. Mas a separação foi dura, não?


PELÉ: Exatamente. Graças a Deus, depois de mais de dez anos, nós conseguimos equilibrar as coisas.


PLAYBOY: Ela nunca mais se casou?


PELÉ: Nunca.


PLAYBOY: Será porque o Pelé é insubstituível?


PELÉ: É meio complicado, porque, na realidade, não deu para entender a cabeça da Rose na época da nossa separação. Eu não queria me separar, para mim estava tudo muito bem. Ela sempre foi muito ciumenta, mas eu sempre entendi. Aí, depois de oito anos de casados, quando chegamos a Nova York, em 1974, ela botou na cabeça que eu tinha de mudar de vida. Não sei se porque ela tinha deixado a família no Brasil, éramos só nós e as crianças, a Kelly e o Edinho, em Nova York. Ou então porque ela começou a receber informações de uma de suas irmãs, que mandava recortes de jornais cheios de fofocas, e começou a ficar desesperada. Daí, ameaçou com a separação, sem acreditar muito que pudesse acontecer. Quando acabei topando e nós fomos para o tribunal, onde brigamos um ano e meio, ela quis recuar. Acho que está arrependida até hoje e por isso não se casou de novo, porque o arrependimento deve machucá-la até agora. No ano passado, aliás, ela tentou voltar a morar no Brasil, ficou um ano em Santos com a Jennifer, nossa caçula, talvez apostando que, como nosso relacionamento tinha melhorado, quem sabe... Mas eu, que não sou de briga, de guardar rancor, que não queria saber nem de confusão nem de advogado (gastamos uma fortuna que devia ser dos nossos filhos), tinha tomado uma decisão que era definitiva.


PLAYBOY: Verdade que o pai dela chegou a tentar esfaqueá-lo?


PELÉ: Não tem nada a ver com a separação. Isso aconteceu num Natal ou numa passagem de ano, na casa da família da Rose. Estávamos todos lá, com as crianças, e o pai dela, seu Guilherme, que se descontrolava quando bebia, arrumou a maior briga e eu me meti para serenar os ânimos. Aí ele disse para eu não me meter em briga de família e investiu com uma faca contra mim. Eu o desarmei e, fora o constrangimento geral, não passou disso. Por sinal, a única pessoa com quem ele se dava bem era comigo. Éramos amigos, caçávamos juntos. Quando eu e a Rose nos separamos, em 1978, e essa é que é a grande história, ele tentou o suicídio, pondo fogo na casa dele no meu sítio em Juquiá [interior de São Paulo], assim que viu minha entrevista no Jornal Nacional, na Globo. Quem o salvou foi o motorista do meu pai, o Joãozinho, que é quem, depois que o seu Guilherme morreu, toma conta do sítio. Eu gostava muito dele.


PLAYBOY: Há quanto tempo você não chora?


PELÉ: Há três dias.


PLAYBOY: É mesmo? Por quê?


PELÉ: Porque eu tive a primeira briga, dessas de ficar sem falar, com o Zoca, meu irmão. Ele começou a construir a casa dos sonhos dele, em Ilhabela [litoral norte paulista], e deixou de ir a Nova York cuidar dos nossos negócios no escritório. Nós discutimos e eu viajei para Dallas, nos Estados Unidos. De lá eu liguei para falar com a minha mãe e ela me contou que o Zoca estava há dias sem dormir, chateado com a nossa briga. Ela me disse que eu não devia ter brigado e fiquei pensando que, de fato, eu, que perdoava tanta gente com quem nem tenho intimidade, tinha brigado exatamente com um cara de quem gosto tanto. E me comovi a ponto de não conseguir acabar de falar direito com a minha mãe, não pude terminar a ligação [emocionado], já estou ficando...


PLAYBOY: Tudo bem, tudo bem...


PELÉ: [Chorando.] Deixa sair...


PLAYBOY: Mas é claro, faz bem, evita enfarte, dizem...


PELÉ: Ah, cacete! [Chora por quase dois minutos.] Aí, falei para mim mesmo: "Pô, eu é que não estou muito legal, se nem consegui me dominar. Não é justo com o Zoca, mesmo que eu tenha razão. Não sou Deus nem Jesus Cristo para julgar os outros." Então desliguei o telefone para não preocupar minha mãe. Depois que chorei e tudo, liguei de novo. Ela disse: "Percebi que você começou a chorar." "Não, mãe, a ligação caiu." E ela: "Não adianta que eu te conheço." [Risos.] "Você começou a chorar mesmo." Bem, foi essa a última vez em que chorei. Só que agora não foi mais, foi hoje.


PLAYBOY: Como você segura a sua cabeça? Sozinho?


PELÉ: Sempre. E, às vezes, com a ajuda de alguns amigos, pessoas com as quais converso, troco ideias e me abro mais. São pessoas maravilhosas, como o dr. Nilson Santos, um médico brasileiro que trabalha em Los Angeles. Tem também o Samir Abdull Hak, com quem cresci em Santos, meu grande amigo, meu advogado, meio irmão. Tem também a minha mãe e a Lúcia, minha irmã, que é o esteio da família, a mais moça e, curiosamente, a base da família. Todos pensam que sou eu, mas é ela. A família discute, discute, e acaba fazendo o que a Lúcia determina. Mas já andei pensando em fazer terapia, principalmente por causa da insistência do Zoca — com quem, a propósito, evidentemente já fiz as pazes. Só que até hoje resolvi meus problemas por minha conta mesmo, talvez porque olhe muito para dentro de mim mesmo, converso muito comigo.


PLAYBOY: Você tem muitos momentos de solidão?


PELÉ: Não, porque, além de estar sempre acompanhado por cinco, seis pessoas, eu estou sempre com Deus.


PLAYBOY: E pensa em se casar novamente?


PELÉ: Com certeza. Eu vou casar de novo.


PLAYBOY: E como deve ser a rainha?


PELÉ: Não tenho um modelo. Mas duas coisas são primordiais: tem de ser espiritualmente coerente, o que não significa que deva ser católica. Precisa ter respeito pelo ser humano, saber que todos somos iguais, que todos vamos morrer. E tem de se dar bem com a minha família.


PLAYBOY: Quer dizer, não se casa só com o Pelé, se casa com a família do Pelé?


PELÉ: Exato, não concebo viver com alguém que não se dê com a minha família. E também não quero mais viver sozinho. Moro numa casa enorme, sem ninguém, bem eu que sou de família mesmo. Chega.


PLAYBOY: E teremos novos herdeiros?


PELÉ: Tenho pensado muito sobre isso e acho, na minha idade, meio complicado ter mais filhos.


PLAYBOY: E parece que existe uma candidata a rainha?


PELÉ: É, digamos que sim. Uma psicóloga e teóloga brasileira, nascida em Recife, que eu conheci quando estava começando a sair com a Xuxa, no começo dos anos 80. Nos reencontramos agora, nos Estados Unidos, onde ela está fazendo um curso. Está se divorciando, tem uma filha de pouco menos de 2 anos e estamos nos dando muito bem. Ela é também tradutora de francês, inglês, espanhol e português. Mora há quinze anos nos EUA, há dez em Los Angeles, e tem 32 anos.


PLAYBOY: Só falta o nome.


PELÉ: Mas aí eu vou ter de casar.


PLAYBOY: E que mal há nisso?


PELÉ: O nome dela é Assíria Seixas Lemos.


PLAYBOY: Felicidade eterna ao casal real. E voltemos, então, à vida plebéia, se é que a relação entre o rei do futebol e a rainha dos baixinhos pode ser assim tratada. A Xuxa é uma boa lembrança?


PELÉ: Ótima. Foi a única relação realmente séria que tive depois da minha separação. Aliás, quero contar uma história para deixar bem claro que quando eu digo que nunca transei nem com mulher casada nem com mulher virgem estou falando a pura verdade.


PLAYBOY: Você não foi o primeiro homem nem da Rose?


PELÉ: Dela, acho que fui [risos]. Pelo menos ela disse que fui.


PLAYBOY: Voltemos à Xuxa.


PELÉ: Pois é. Quando eu a conheci, ela tinha 16, 17 anos. Era virgem e tinha um namoradinho, com quem estava brigada. No mesmo dia conheci, também, a Luiza Brunet, na casa do [empresário] Alfredo Saad, em Copacabana, onde moro de graça quando estou no Rio, há mais de vinte anos. O casal Alfredo e Margarida, ao qual sou muito grato, me adotou como filho. Muito bem. Fiquei louco pela Luiza Brunet, uma graça de garota, e a convidei para ir a um show da Gal Costa. Mas ela disse que não podia, porque o marido viria buscá-la em seguida. Nem acreditei, porque achei que ela era muito menina para ser casada. Mas era verdade. Então, a Xuxa se convidou. Pensei que não era legal, que ela era muito menina. Bati um papo com ela e ficou ainda pior, porque me contou que era virgem. Acabei resolvendo falar com o pai dela e ele autorizou que ela fosse conosco. Na base da brincadeira eu dizia que ela devia tratar de resolver o problema da virgindade com o namorado e que, aí sim, quem sabe, poderíamos transar. Acabamos ficando amigos, saíamos com frequência e a coisa acabou ficando séria.


PLAYBOY: Mas, afinal, você também foi o primeiro na vida dela?


PELÉ: Não, fui o segundo [risos.] Ela primeiro teve o tal namoradinho.


PLAYBOY: Você a ajudou muito no começo da carreira, não?


PELÉ: Pois é. Nunca contei o que vou contar agora. Sei que fui importante na vida dela. Fui eu quem, por exemplo, recolheu todas as fotos que ela tinha feito nua. Todas. Falei com os Civita, da Editora Abril, com os Bloch, da Manchete, com o fotógrafo Luís Tripoli, que fazia as fotos dela — tinha foto dela até em cima de táxi, em Nova York, de bunda de fora —, e todos foram muito legais, compreenderam o meu esforço. Afinal, ela era uma menina sem maldade, muito natural, que encarava a nudez com a maior tranquilidade, tomava banho de sol nua para não ficar com as marcas de biquíni. A minha família não toleraria. O Roberto Civita me deu uma mala de fotos e de negativos. O Adolpho Bloch também e o Tripoli do mesmo jeito. Entreguei tudo para ela e disse: "Pronto, está tudo aqui. Ninguém vai usar mais. Quem trabalha com crianças precisa se cuidar."


PLAYBOY: E vocês chegaram a pensar em casar?


PELÉ: Ela um dia quis que eu fosse morar num apartamento que ela comprou na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio. Foi na época em que estava começando na Globo. Mas eu não estava seguro ainda. Além do mais, ela queria ter filhos, eu já tinha três, estava acabando de me separar. Depois da minha recusa nosso relacionamento foi esfriando, esfriando, e viramos bons amigos. A família dela até hoje me adora, pode perguntar. Lamento, apenas, que a Marlene [Mattos, empresária e faz tudo de Xuxa] tenha afastado a Xuxa de tudo e de todos, até da família. A Marlene a dominou, não a deixa falar com a mãe, fazer uma compra. Tenho pena mesmo da Xuxa, hoje em dia. Porque é tão bonita, trabalha como ninguém, ganha muito dinheiro, mas fico triste porque não pode aproveitar. Não é mais dona dela mesma, perdeu totalmente sua identidade, não tem querer. É uma pena!


PLAYBOY: E qual é o seu problema com mulheres casadas?


PELÉ: Eu não quero confusão para o meu lado. Pode ser a Brooke Shields. Se souber que é casada, me mando. Se for virgem, me mando. Agora, sei lá, se eu apaixonar por uma mulher, mesmo que seja de meu melhor amigo, vou ir para ganhar. Enquanto isso não acontecer, eu continuo com a minha maneira de pensar.


PLAYBOY: Falando em Brooke Shields, quando vocês se conheceram ela não era casada nem virgem, o que rolou?


PELÉ: Nada, só uma viagem para o Japão.


PLAYBOY: E com a Gal Costa?


PELÉ: Saímos uma época, sim.


PLAYBOY: Você sempre negou.


PELÉ: É verdade, sempre neguei. Quer dizer, acontece que ela e eu combinamos que era uma coisa muito íntima, só nossa. Não precisava ficar público. E nunca foi uma coisa muito séria. Foi isso.


PLAYBOY: Qual é a primeira coisa que você olha em uma mulher?


PELÉ: É a bunda.


PLAYBOY: Sempre?


PELÉ: Bem, nem sempre, porque às vezes conheço alguém que está sentado, né?, e não dá para olhar a bunda [risos].


PLAYBOY: É claro, é claro, desculpe a nossa falha...


PELÉ: Gosto dos seios, também. Tamanho médio, nem o exagero das americanas nem o tipo tábua, como as francesas.


PLAYBOY: E entre quatro paredes vale tudo?


PELÉ: Tudo, desde que os dois estejam de acordo.


PLAYBOY: Alguma fantasia especial?


PELÉ: Não, nesse campo sou meio conservador. Não gosto de suruba, por exemplo. Já participei e não gosto. Gosto de minhas coisas bem privadas.


PLAYBOY: E só com duas mulheres e você?


PELÉ: Também já vivi essa experiência, por curiosidade, e não gostei. Sou discreto e ponto.


PLAYBOY: Uma noite inesquecível é feita de quantas transadas?


PELÉ: Uma bem dada está ótimo. No máximo, duas. Quem diz que dá mais, mente. Tenho um amigo que procurou um médico, invejoso dessas histórias que todo o mundo conta que deu cinco, seis. Aí o médico disse para ele que em vez de se preocupar com o assunto ele devia mentir também [risos].


PLAYBOY: Quantos pênaltis você perdeu em sua carreira?


PELÉ: Acho que só três, contra o Nacional, de São Paulo, contra o Guarani, de Campinas, e contra o Corinthians. Será que perdi mais?


PLAYBOY: E na cama, você perdeu quantos?


PELÉ: Na cama, pênalti? Na cama você está dentro da área.


PLAYBOY: Falhou alguma vez?


PELÉ: Não, não.


PLAYBOY: Não existe isso...


PELÉ: É, pra você ver. Eu não me lembro. E tem outra coisa, sobre a qual eu também nunca falei. Todos os jogadores sempre se queixam de que depois de um jogo é difícil transar, que acabam bebendo ou dormindo. Não sei por que, mas o fato é que depois de jogar eu ficava com mais tesão ainda, mesmo depois de casado. Às vezes a Rose me dizia para descansar, "você jogou hoje", e era ela que estava cansada [risos]. Agora, tem uma coisa também: eu já deixei de transar com muita garota estando no quarto com ela, por ver na mulher qualquer coisa de que eu não gostasse. Isso já cansei de fazer.


PLAYBOY: Com que frequência você dorme sozinho?


PELÉ: Com enorme frequência. Chego a ficar um mês sem transar. Quando estou com um relacionamento mais íntimo, transo duas, três vezes por semana. Mas sou muito seletivo. Gosto de sair, jantar, ir a shows, mas não como nem um quinto das mulheres que as pessoas imaginam. Por exemplo, por mais que nem ela acredite, nos primeiros oito, nove anos do meu casamento com a Rose, não a traí nenhuma vez. Porque eu me dava bem com ela em todos os sentidos. Só depois de dez anos, quando começaram as brigas, é que passei a transar com outras.


PLAYBOY: Você usa camisinha?


PELÉ: Eu transo de camisinha.


PLAYBOY: Sempre?


PELÉ: Não, sempre não. Foi difícil eu entender isso, porque a minha geração é uma geração que não se adapta. Ainda acho incômodo, mas me esforço, e faz tempo que não abro mão de usar. Ainda mais eu que participo de campanhas contra a Aids.


PLAYBOY: Além do risco de ser pai sem querer...


PELÉ: Por isso, não. [Pelé se inclina e desliga o gravador.]


PLAYBOY: Mas é melhor você contar. Dá muito mais força para a campanha contra a Aids...


PELÉ: OK. Há cerca de oito anos eu fiz vasectomia, coisa que ninguém jamais soube, nem minhas parceiras. Fiz nos Estados Unidos, em Los Angeles, de cabeça feitíssima, sem nenhum temor e, se quiser, dá para reverter.


PLAYBOY: E como foi a primeira vez depois da operação?


PELÉ: Excelente, como sempre.


PLAYBOY: Que tal aproveitar a ocasião e contar como foi a sua primeira vez, com uma mulher, coisa que você habilmente se furtou de fazer na entrevista de treze anos atrás? Você contou que sua primeira experiência sexual foi com uma bicha que o time do BAC [Bauru Atlético Clube] inteiro comia. Mas de mulher você não falou. Essa tradição você não vai quebrar, não, Pelé.


PELÉ: Não foi bem assim.


PLAYBOY: Pois façamos a releitura. Abre aspas. "Minha primeira expe­riência sexual foi com uma bicha que nosso time inteiro comeu lá em Bauru, mas depois não tive mais esse tipo de transa." Aí, PLAYBOY pergunta: "E sua primeira experiência com mulher?" Você responde: "Foi um fracasso. Lá em Bauru, que é um movimentado entroncamento ferroviário, tinha muitos hotéis de pernoite e muitas prostitutas. Aí, numa noite, minha turma resolveu ir a um lugar daqueles. Fomos, mas quando vimos as mulheres, corremos de medo [risos]." Enfim, você acabou não contan­do como foi.


PELÉ: Essa coisa de sair correndo da zona acontecia quase toda noite. E a minha primeira vez, com uma mulher chamada Edith ou Judith, foi com a calça na mão, com medo de que chegas­se alguém, polícia, sei lá, e desse rolo. Por isso é que disse que a primeira foi ruim. Para falar a verdade, nem me lem­bro da sensação. Sei que a primeira tranquila foi só na Suécia, na Copa do Mundo de 1958, eu já com 17 anos. As lourinhas eram fissuradas num crioulo e, numa tarde de folga, dei uma bela transada, sem pressa, enfim.


PLAYBOY: Tarde de folga, é? Como é mesmo aquela história de fugir da con­centração na camionete de roupa suja e voltar no fim do dia na de roupa limpa?


PELÉ: Isso foi nas eliminatórias para a Copa de 1970, em 1969. A gente usava mesmo esse expediente, mas era para fugir da imprensa, que ficava na espera da nossa saída. Então, nos dias de folga, eu entrava por baixo da roupa suja e vol­tara por baixo da roupa limpa, sem ser percebido.


PLAYBOY: Até hoje você costuma usar estratagemas para não ser reconhecido?


PELÉ: É, de vez em quando.


PLAYBOY: Como você se disfarça?


PELÉ: Ah, se eu contar eu me entrego.


PLAYBOY: Entrega pelo menos um ...


PELÉ: Eu, geralmente, ponho um bigode...


PLAYBOY: Chapéu, óculos escuros...


PELÉ: Não, o negócio é o topete. Mudou o cabelo, pronto. Porque o que me entrega é o meu topete, é o que me arrebenta. Por isso é que todo o mundo fala que eu não mudei nada. Mas é só o topete. Então, eu boto uma peruca, ócu­los escuros, dependuro uma máquina fotográfica e vou à luta.


PLAYBOY: Você se lembra da última vez em que fez isso?


PELÉ: Lembro. Foi em Paris, quando fui posar para a estátua que virá para o Museu Pelé, que está sendo construído no Rio. Eu queria andar sossegado por Paris, ir ao teatro, jantar, e consegui, disfarçado de turista, sem topete.


PLAYBOY: Topete lembra o presidente Itamar Franco, mineiro como você [sim, o Édson Arantes do Nascimento nasceu em Três Corações, Minas Gerais, lembra-se?]. Que nota você dá para ele?


PELÉ: Pelo tempo que ele tem de política, convivendo com tudo isso que está aí, nota 3, com respeito para não dar menos. Como presidente, com esperança de poder melhorar, nota 5, ansioso por dar 10.


PLAYBOY: E para o ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso?


PELÉ: Este merece 8.


PLAYBOY: E a Xuxa?


PELÉ: Dez, é claro.


PLAYBOY: Fidel Castro?


PELÉ: Oito.


PLAYBOY: João Havelange?


PELÉ: Dez.


PLAYBOY: Roberto Marinho?


PELÉ: Dez.


PLAYBOY: Jô Soares?


PELÉ: Dez, é claro.


PLAYBOY: Ah, virou confete...


PELÉ: Então aproveita e dá 10 também para o trio dos Chicos.


PLAYBOY: O que é isso?


PELÉ: Chico Anysio, Chico Buarque e Chico Xavier.


PLAYBOY: Chega, vamos falar mal de alguém. Do Ricardo Teixeira, por exemplo, presidente da CBF que você ajudou a eleger. Antes disso, por sinal, você alguma vez revelou em quem votou para presidente da República?


PELÉ: Não, nunca abri. Votei no Collor.


PLAYBOY: E apoiou o Ricardo Teixeira. Que fase, hein?


PELÉ: Pois é. O Ricardo Teixeira me decepcionou. Eu o apoiei porque ele me pediu, disse que precisava da minha ajuda, disse que faria na CBF alguma coisa parecida com a que o João Havelange fez na FIFA. E eu acreditei. Eu me empenhei e, outra vez, me frustrei. Seis meses depois de eleito ele estava fazendo acordos com os presidentes das Federações e até hoje não foi capaz de apresentar um calendário para o futebol brasileiro. Uma lástima.


PLAYBOY: Sua recente atividade como dono da Pelé Sports & Marketing mostra o quê?


PELÉ: Mostra que existe muita corrupção, infelizmente. Já aconteceu de a CBF não aceitar uma proposta nossa melhor do que a que acabou aceitando, por causa de conchavos com outros grupos. Propostas menores acabam sendo aceitas, só para não tirar os outros grupos, entende?


PLAYBOY: Digamos que não. Dá para explicar melhor?


PELÉ: Olha, eu tive conhecimento, porque não tratei diretamente, mas temos até documentos no nosso escritório, pelos quais podemos provar que fizemos à CBF uma proposta melhor que a aceita para o Campeonato Brasileiro do ano passado. Era melhor para a CBF, para os clubes, para a televisão, para todos — e, por interesses particulares, não se fechou com a nossa proposta. Estão aí nossos diretores, o Roberto Seabra, o Hélio Viana, que podem provar, se precisar, com documentos...


PLAYBOY: Como é que anda a disposição do Pelé em lutar pelo futebol brasileiro?


PELÉ: Não é só em relação ao futebol, mas em relação a tudo. Preciso resolver onde vou poder fazer mais coisas, ser mais eficaz. Na Presidência da República, que, juro, nunca passou pela minha cabeça? Claro que lá é muito difícil atuar a curto prazo. Na presidência da FIFA? Também é uma máquina gigantesca. Então, qual é o ponto mais próximo? É ser presidente da CBF? O mais próximo seria isso, num negócio que eu vivo que é o nosso futebol. Então, eu já tenho que começar a pensar, e dizer, porque esta é uma entrevista importante, vai ter repercussão, que vou começar agora a lutar, a arrumar parceiros, para lutar contra a corrupção que existe dentro do futebol. Não é justo você se calar diante da miséria da maioria dos nossos clubes e jogadores enquanto tem dirigentes de confederação ricos, milionários.


PLAYBOY: Você seria capaz de comprar o voto de um presidente da federação estadual para se eleger presidente da CBF?


PELÉ: De maneira nenhuma. E precisamos mudar isso, porque os clubes é que deveriam eleger o presidente da CBF.


PLAYBOY: Você nunca põe seus negócios na frente de suas opiniões?


PELÉ: Não, porque não sou covarde e não estaria sendo honesto comigo mesmo. Não é porque sou funcionário da Globo que não vou achar que seria melhor ter três emissoras do mesmo nível da. Globo. Eu estou falando a verdade: Nós viemos aqui foi para falar a verdade.


PLAYBOY: Mas não é bem a imagem que sua atuação tem passado, sempre bem político, pacificador. Por exemplo: o Márcio Braga briga com o Ricardo Teixeira e você vai lá e tenta fazer as pazes entre os dois. O Telê Santana briga com o presidente da Federação Paulista, Eduardo Farah, e você busca a conciliação. Você não acha que acaba promovendo a paz dos cemitérios, que não leva a nada, só encobre?


PELÉ: Bom, eu não pensei nisso, realmente. Na época, eu pensava em amenizar aquilo tudo. O que iria acontecer com a briga entre o Flamengo e a CBF, envolvendo a FIFA? O Brasil poderia ficar de fora da Copa do Mundo. A briga do Telê e do Farah poderia prejudicar o único campeonato estadual, o paulista, que ainda não estava falido. Foi nisso que pensei. Mas, na realidade, se pensar direito, na situação em que estamos, o melhor seria deixar arrebentar mesmo, para ver se arruma de vez. Eu estava pensando só no bem estar imediato.


PLAYBOY: Você fez referência há pouco ao Hélio Viana, seu vice na Pelé Sports & Marketing. Qual é a Importância dele para você, que nunca se deu muito bem na vida empresarial?


PELÉ: E, todos sabem como perdi dinheiro em outras épocas, com o Pepe Gordo [seu primeiro sócio, já falecido], por exemplo. Pois o Hélio Viana tem um papel importantíssimo. Ele me ensinou a trabalhar como empresário, a não trabalhar com o coração.


PLAYBOY: Hoje você está muito bem, não? Quanto você tem?


PELÉ: Meu pai costuma dizer que enquanto você está juntando não deve parar para contar [risos]. Mas não tenho nem 25% do que as pessoas imaginam. Se bem que poderia parar agora e cuidar da minha família, dar tranquilidade para os meus filhos. De bens palpáveis, tenho uma belíssima casa no Guarujá, que é a casa dos meus sonhos; dois apartamentos bons em Nova York; uma cobertura em São Paulo, outra em Santos; terrenos, vários apartamentos que alugo, duas Mercedes Benz que ganhei de presente — uma da FIFA, modelo 1991, outra, 1975, que ganhei de um empresário alemão meu amigo, o Roland Ender; o sítio em Juquiá, a Pelé, Sports & Marketing, a Valor, a Pelé, Administração, Comércio e Propaganda de Santos, os patrimônios da Rádio Clube de Santos. Isso para não falar do valor potencial da marca Pelé. Por exemplo, se eu quiser, com dois telefonemas para uma fábrica de cigarros e para uma de bebidas, faço, imediatamente, 10 milhões de dólares. Só que eles vão ficar esperando essas ligações a vida inteira [risos]. E tenho um contrato de quatro anos com a Mastercard, o cartão de crédito, um contrato com a FIFA, outro com a Umbro, de material esportivo, outro com uma fábrica de roupas em Nova York. Enfim, não tenho maiores preocupações em dizer o que tenho ou ganho, por dois motivos: em primeiro lugar, porque não me preocupo em ganhar muito dinheiro, porque sei que vou ganhá-lo. Vou trabalhar e vou ganhar. Depois, porque todo o mundo sabe de onde veio o meu dinheiro, onde eu ganhei. É tudo claro, tudo aberto. Não tenho medo de falar. Só que, realmente, não sei exatamente quanto é.


PLAYBOY: Deus te abençoe. A velhice está garantida. Envelhecer é uma preocupação?


PELÉ: Meu amigo Júlio Mazzei [ex-preparador físico do Santos e ex-manager do Cosmos de Nova York] costuma dizer que essa história de velhice, de cabelos brancos, só deve preocupar a partir do momento em que começar a branquear para baixo da linha do umbigo [risos]. E eu sempre brinco com a minha família dizendo que meus amigos têm de começar a se preparar porque eu vou completar 100 anos e dar o ponta pé inicial num jogo no Maracanã. Aos 100 anos tenho certeza de que chegarei, até porque temos antecedentes em casa.


PLAYBOY: Seja como for, você acha que a vida é curta?


PELÉ: Não acho, porque acredito que há outra vida. Acho que isso aqui é um estágio, e neste estágio, que eu conheço, acho que muitas vezes não dá para fazer tudo o que a gente pensa.


PLAYBOY: E ainda que mal lhe pergunte, Majestade, o próximo estágio é no céu ou pode ser na Terra mesmo?


PELÉ: Não sei. O outro estágio a que me refiro é algo evidentemente superior. Porque a

gente sempre melhora. Mas não sei o que é o céu.


PLAYBOY: Pelé, como é que você pode melhorar [risos]? O que é que pode vir depois do Pelé?


PELÉ: Não sei, de novo. Pode até ser que este seja o meu último estágio. Não sei, embora eu não seja tão pretensioso a ponto de dizer isso, que tenha atingido a perfeição, longe disso. Tenho tanto para aprender, para me aperfeiçoar.


PLAYBOY: Você não acha que corre o risco de ser a prova provada daquela piada que correu os Estados Unidos, dando conta de que Deus é negro?


PELÉ: Lembra que eu disse que não aceitava o Cristo triste? Como não há urna definição de Deus, se é masculino ou feminino, preto ou branco... Essa força que não se sabe bem o que é... Pode ser.


PLAYBOY: E você acha que tem ainda alguma coisa importante a fazer?


PELÉ: Não sei bem o que, mas acho que sim. Alguma coisa para a qual eu tenha a mesma determinação que me fazia pensar em morrer em campo pela vitória, para ganhar uma Copa, por exemplo. Eu estou buscando uma causa pela qual eu queira morrer. A educação do povo, as crianças, alguma coisa.


PLAYBOY: E parece que você tem um grande aliado na luta pela vida eterna, que é o seu amigo geriatra Eduardo Gomes, não?


PELÉ: Ele é, de fato, meu amigo de muitos anos, até moramos juntos. Mas jamais foi meu médico, nunca tomei nada que ele tenha indicado e já estou cheio de vê-lo usando meu nome para se promover. Já o adverti diversas vezes e ele não aprende. Pombas, eu me cuido desde os 15 anos, não bebo, não fumo, procuro me alimentar bem, ter uma alimentação balanceada, venho de uma família forte, com avós beirando os 100 anos, e alguém se arvora em responsável por isso. Então, vou começar a receitar, o médico sou eu.


PLAYBOY: Sempre tem alguém querendo usar a imagem real, não? Conta como foi o caso da pressão do governo do general Ernesto Geisel, que queria você defendendo o Brasil na Copa do Mundo de 1974, na Alemanha.


PELÉ: De fato, fui chamado pela filha do Geisel, a Amália Lucy, e pelo ministro [da Educação] Jarbas Passarinho. Fui pressionado, me pediram, apelaram. Só que aí eu começava a ter consciência das barbaridades da ditadura, da tortura, dos desaparecidos. Descobri que enquanto a gente ganhava campeonatos acontecia urna série de injustiças, e fiquei firme, não cedi. Achei que era o meu jeito de protestar. Primeiramente porque eu já tinha me despedido mesmo da Seleção Brasileira. E depois porque comecei a ser procurado por parentes de desaparecidos e comecei a ficar amargurado com aquilo. Então, veladamente me disseram para tomar cuidado com o imposto de renda, essas coisas. Não liguei.


PLAYBOY: Mas você ignorava mesmo que se torturava no Brasil?


PELÉ: Não, eu ouvia dizer. Nas viagens do Santos, da Seleção, a gente tinha algum contato, às vezes, com exilados. Até o prefeito do Rio, César Maia, outro dia me agradeceu porque eu o recebi uma vez, no Chile. Mas não tinha muita clareza, mesmo, eu não falava em política. Por isso fiz uma música agradecendo a luta do Chico Buarque de Hollanda, do Gilberto Gil, do Caetano Veloso, do Geraldo Vandré, os que perceberam antes aquilo que eu não percebia, porque estava jogando bola pelo Brasil, pelo meu povo. Eu estava em outra, essa é que é a verdade. Quis homenagear aqueles que buscavam orientar a gente e também eram perseguidos.


PLAYBOY: E verdade que você é a favor da pena de morte para os políticos corruptos?


PELÉ: Sem dúvida. Com toda a minha educação religiosa, acho que quem desvia até merenda escolar merece a pena de morte. Não é possível. Querem pena de morte para um desequilibrado que comete um crime hediondo, para um maluco que estupra alguém, para quem mata por ciúme doentio, ou mata para roubar, e não acontece nada para quem prejudica o povo inteiro? Tem gente sequestrando empresários, esquecida de que eles dão emprego, são agentes do progresso. O industrial sequestrado fica amargurado, quer ir embora do Brasil, não quer investir mais.


PLAYBOY: Você não está propondo que comecem a sequestrar os políticos?


PELÉ: Não estou propondo nada. Só estou dizendo que se o cara está atrás de dinheiro roubado, tem de roubar de quem rouba. Ladrão que rouba ladrão tem 100 anos de perdão, não é? Fiquei maravilhado com os caras-pintadas que foram às ruas exigir o impeachment do Collor. Mas eles não podem parar. É preciso fazer mais campanhas, exigir, por exemplo, que o político tenha curso universitário, faça pelo menos um ano de administração pública. Poxa, nunca vi um político abrir mão de nada, só vejo pedir que o povo abra, que o povo se sacrifique. É revoltante. Precisamos de um pacto moral no Brasil.


PLAYBOY: Existe algum político brasileiro que mereça a sua admiração?


PELÉ: O Juscelino Kubitschek, por exemplo, era grande, uma bandeira. Hoje tem o Tasso Gereissati, ex-governador do Ceará. O atual também, o Ciro Gomes. Mesmo com poucos recursos, num Estado tão pobre. O Leonel Brizola é outro político que admiro. Porque tudo que ele faz, com demagogia ou não, é voltado para a educação, que é uma coisa que defendo há muitos anos.


PLAYBOY: Há uma declaração sua no sentido de que Paulo Maluf foi injustiçado quando concorreu à Presidência contra o ex-presidente Tancredo Neves. É isso mesmo que você acha?


PELÉ: É. Porque ele foi vítima de uma campanha sem precedentes, violentíssima, fizeram o diabo com ele. Talvez porque a Globo não o apoiasse. Acho que se ele tivesse sido o presidente o Brasil estaria melhor hoje em dia. Porque ele é um dos melhores administradores que temos, sem dúvida.


PLAYBOY: Tivemos vinte anos de ditadura, com os políticos afastados, e nem por isso a situação do país melhorou. Será que o problema não está no egoísmo da elite brasileira?


PELÉ: Não, porque na época em que o Exército estava tomando conta a coisa não estava tão ruim assim. Não era o que a gente queria, houve muita barbaridade, mas tivemos grandes avanços, como nas comunicações, por exemplo. A educação não estava tão mal, a inflação não era tão grande. Quando o Exército pegou, estava tudo ruim. Quando saiu e o governo voltou para as mãos dos civis, aí piorou.


PLAYBOY: Quer dizer que você acha que sem uma boa dose de autoritarismo não serão resolvidos os problemas brasileiros?


PELÉ: Eu acho que não.


PLAYBOY: Ah, é???


PELÉ: O político tem de dar espaço para o empresário. Político cuida de educação, comida, moradia, da base. O resto deve ficar por conta do empresariado.


PLAYBOY: Você falou na Globo. Como encara as críticas que alguns jornalistas lhe fazem por estar ocupando o lugar de um comentarista profissional?


PELÉ: Nem ligo. Sou formado em Educação Física, estou falando de um assunto que é a minha vida, é assim no mundo inteiro. Não dou a mínima.


PLAYBOY: Como você encara a Globo?


PELÉ: Ela está no mesmo nível das melhores TVs do mundo. Mas tem poder demais. Sou contra qualquer tipo de monopólio. Sou a favor da competição. Claro que a Globo foi a mais competente, preparou melhor seus profissionais, tudo isso. Mas foi também quem teve mais auxílio do governo. Sou contra os monopólios, repito. Como o da Votorantim, da Varig, da Maizena, de quem quer que seja.


PLAYBOY: E o monopólio do futebol, que o seu Santos exerceu por tanto tempo, do meio dos anos 50 até o meio dos anos 70?


PELÉ: Ah, também não era assim. De vez em quando a gente perdia. E era um tempo em que o time não tinha dono. Alguns companheiros, como o [volante] Zito e o [armador] Jair da Rosa Pinto, viviam me esculhambando. Eles olhavam sempre para o lado contrário ao que passavam a bola e, no começo, eu tinha dificuldade com aquilo. Então, um deles sempre gritava para mim: "Ô crioulo burro! O olho prum lado, a bola pro outro."


PLAYBOY: Alguma vez, em campo, você fez uma coisa que surpreendeu a você mesmo, daquelas coisas de se perguntar como é que eu fiz isso?


PELÉ: Diversas vezes. Com frequência eu só ia entender mesmo vendo na televisão. E dizia para mim mesmo: "Pô, mas eu fiz aquilo!" Porque há certas coisas que você faz por instinto, que você nem vê, porque tem de se preocupar com o pé do adversário, com a bola, com o seu movimento, com a colocação do seu time, do goleiro inimigo. Houve uma jogada, acho que contra o Palmeiras, que num movimento só eu dei dois toques na bola, sem deixar que ela caísse no chão. Daí, joguei o corpo para o lado direito e chutei de esquerda para fazer o gol. Não sei se foi mesmo contra o Palmeiras, mas é uma jogada que sempre me aparece.


PLAYBOY: Deve ter sido contra o Corinthians...


PELÉ: Não [risos]. Contra o Corinthians foi outra. Quando percebi tinha dado um chapéu em dois jogadores ao mesmo tempo. No Ditão e no...


PLAYBOY: ...Luís Carlos.


PELÉ: É, no Luís Carlos. Só no videoteipe é que percebi. Porque quando peguei a bola era só o Ditão que estava. Na televisão é que vi que eram dois...


PLAYBOY: Se você não fosse você, você queria ser quem?


PELÉ: Se eu não fosse eu, eu queria ser a minha mãe.


PLAYBOY: É mesmo? A dona Celeste?


PELÉ: Eu gostaria de ser a dona Celeste, se não fosse o Pelé, se não fosse o Édson. Isso vai ser uma surpresa para muita gente, porque isso nunca foi dito.


PLAYBOY: Fale dela...


PELÉ: Ela é o espírito que ficou vivo da minha avó Ambrosina. Minha mãe é pequena, eu a chamo de Celestinha e provoco: "Mas como é que pode, eu alto e bonito ter saído dessa barriguinha?" Desde Bauru eu vejo a luta dela. Meu pai, o velho e bom Dondinho, grande craque de pouca sorte, se machucou, acabou para o futebol e ela não desistiu, não deixou de lutar, de incentivar. E minha avó Ambrosina, mãe de meu pai, veja bem, passou para a Celestinha aquele espírito de filha de índia, analfabeta mesmo, mas que criou a gente quando minha mãe tinha de sair para trabalhar. Minha mãe é sinônimo de força. Tem calo nos joelhos de tanto rezar, era lavadeira, e sempre acha que está tudo bem.


PLAYBOY: E os herdeiros?


PELÉ: Estão grandes. A Kelly Cristina tem 24 anos, o Edinho 21 e a Jennifer 15. Nos damos muito bem, nos vemos menos do que gostaríamos, mas sempre com muita intensidade, e falamos sobre tudo, sem tabus ou preconceitos. Converso com as meninas sobre sexo, Aids, drogas, o que for, do mesmo jeito que faço com o Edinho. E aproveito cada momento com eles. Verdade que a relação com a Jennifer foi mais regada que a com os dois mais velhos, porque quando ela nasceu eu já tinha parado de jogar futebol. Mas é ela também que, exatamente por isso, sente mais falta, reclama mais de saudade. Ela mora com a Rose em Nova York. O Edinho, goleiro da Portuguesa Santista, e a Kelly, que é formada em Comunicações, são muito apegados a mim, mas se acostumaram com a minha vida cigana.


PLAYBOY: Você já se pôs no lugar deles, tem uma ideia do que seja ser filho do Pelé?


PELÉ: Sei que não deve ser fácil, como não foi fácil para o meu pai e para a minha mãe eu ser filho deles. Quando eu era criança, meu pai famoso por jogar no Bauru Atlético Clube, eu era o filho do Dondinho. Depois, virou. Ele era o pai do Pelé e, muitas vezes, tanto ele como minha mãe tinham que providenciar uma roupa adequada para alguma homenagem, fazer uma viagem inesperada para me representar. Enfim, eu mudei a vida pacata deles. Agora acontece parecido com os meus filhos. Que, aliás, às vezes são prejudicados por isso. Outro dia mesmo, em Santos, um rapaz atropelou uma pessoa, o Edinho vinha com o carro dele logo atrás e inventaram que estava disputando um racha com o carro que causou o atropelamento. Mas, enfim, acho que eles não têm maiores queixas, não.


PLAYBOY: Por que têm lá suas compensações, certo?


PELÉ: É até gozado. Uma vez levei a Kelly, que é maluca pelo William Hurt, para ver a estréia de O Beijo da Mulher Aranha, estrelado por ele e pela nossa Sonia Braga. Quando nos apresentaram, o William Hurt virou-se e, sem mais, ajoelhou-se e beijou meus pés, dizendo "eu te adoro, eu te adoro". Pô, eu fiquei com uma vergonha... A Kelly, que nunca tinha visto nada parecido, ficou perplexa. O ídolo dela, o Hurt, é claro, porque o pai nunca é ídolo, beija os pés do pai dela!


PLAYBOY: Diga, sem modéstia, se você já esteve com alguém que chamasse mais a atenção do que você.


PELÉ: De verdade, que eu me lembre. não.


PLAYBOY: Quem se orgulha mais, você de ser amigo do Robert Redford ou ele por ser seu amigo?


PELÉ: Nunca pensei nisso. Tenho tantos amigos famosos... Sou amigo do Harry Belafonte, cuja filha é amiga da minha, e, para ser bem sincero, não chego a ser amigo do Robert Redford. Tivemos escritório no mesmo prédio e saímos juntos algumas vezes, como já saí com o Charles Aznavour, com o grande diretor de cinema John Huston. Com a família Kennedy, em geral, eu me dou, de fato, muito bem. Assim como com o príncipe Rainier, de Mônaco.


PLAYBOY: Você já jogou tênis com o Bjorn Borg [ex-campeão sueco, por vários anos o melhor do mundo] ?


PELÉ: Já, quer dizer, eu rebati bolas para o Borg [risos]. Ele me ensinou algumas dicas, lá na Alemanha.


PLAYBOY: Você é bom no tênis?


PELÉ: Não, bom é o Rivelino. Eu não tenho regularidade. Gosto tanto que até construí uma quadra na casa do Guarujá, mas, na verdade, acabei usando a quadra só duas vezes nos últimos anos.


PLAYBOY: O Paulo Amaral [preparada fisico da Seleção Brasileira bicampeã mundial nas Copas do Mundo de 1958 e 1962] diz que você se daria bem em qualquer esporte a que se dedicasse. Você concorda?


PELÉ: Acho que sim. Joguei basquete razoavelmente, era ótimo levantador no vôlei, salto bem, acho que se me dedicasse ao atletismo seria realmente bom Neste campo tenho só uma frustração todo o mundo tem, né?, e vou falar dela pela primeira vez: minha única frustração é a natação. Até sei nadar, é uma vergonha. Se tiver que nadar uns 400, 500 metros, morro afogado.


PLAYBOY: Que espanto!!!


PELÉ: Verdade. Se o navio afundar a 500 metros da costa eu não chego vivo. No mar, então, nem consigo boiar! Não consigo. Acho que tenho a bunda muito pesada, a perna afunda, sei lá. Para me formar em Educação Física tive que ficar um mês treinando para fazer só 100 metros... Uma vergonha! [Risos.]


PLAYBOY: Ainda bem que você viaja mais de avião, não? Por falar nisso, você tem ideia de quantos passaportes já tirou?


PELÉ: Infelizmente, não. Lamento, porque é uma coisa que a gente queria pôr no Museu Pelé. Tenho comigo ainda uns vinte, mas joguei fora muitos mais, perdi alguns, até os passaportes diplomáticos que usava no governo José Sarney. Eu lamento porque acho que seria mais um recorde mundial.


PLAYBOY: Mas, cá entre nós, você precisa de passaporte para entrar em algum lugar?


PELÉ: No Brasil, sim. É, onde mais me param, verificam, abrem malas.


PLAYBOY: É porque querem ficar mais tempo ao seu lado, perto de você. E nos Estados Unidos ninguém entra sem passaporte.


PELÉ: Pois eu já entrei. Alguém para quem dei um autógrafo ficou com o meu passaporte, que às vezes uso como apoio para assinar no avião ou na fila de desembarque. Aí devo ter deixado o passaporte junto com o autógrafo e o fato é que quando me vi diante do policial estava sem ele, no aeroporto de Nova York. Expliquei o que tinha acontecido, o fiscal me perguntou se eu tinha alguma foto minha para autografar para ele, eu tinha, o cara deixou que eu passasse e ainda disse que tinha um filho que me adorava, que esteve na clínica de futebol que a gente montou na Pelé Soccer Camping. Até o papa eu vi sem documento algum, e a fiscalização para entrar no Vaticano é uma operação de guerra. Uma a uma as portas com células eletrônicas, vigiadas também por pastores alemães e polícia pra chuchu, foram sendo abertas, em troca de fotos autografadas. São tantos casos pelo mundo afora que nem dá para contar.


PLAYBOY: Quantos papas você conheceu?


PELÉ: O Pio XII, o João XXIII, o Paulo VI e o João Paulo II. O Pio XII foi o mais amigável, já chegou me abraçando, me chamando de Pelé. O João Paulo II é mais seco, mais formal.


PLAYBOY: E o que um rei fala com um papa?


PELÉ: impressionante, porque todos galaram a mesma coisa, sobre esta proximidade minha com Deus, sobre a minha responsabilidade. E eu sempre pedi a eles que levassem alegria ao povo, que abençoassem o povo brasileiro. Para quem é católico como eu, estar perto de em papa é o máximo.


PLAYBOY: Não lhe ocorre que para eles estar perto do Pelé também é o máximo?


PELÉ: Aí não sei. Sei que para o João o II eu perguntei se ele não se sentia mal em meio a toda a riqueza do Vaticano. E ele me respondeu que não se sentia bem, não, mas que era uma estrutura toda que já estava lá, que ele tinha de administrar da melhor maneira. "Eu não posso pôr uma bomba aqui", ele disse. E falou também que muitas vezes a gente quer arrumar o mundo de uma hora para outra e que não é assim, que é preciso tempo, que nem Jesus terminou a missão dele, enfim, aquilo que a minha mãe sempre diz.


PLAYBOY: Mudando de assunto, Coca ou Pepsi?


PELÉ: Não sou lá de tomar refrigerantes. Mas gosto mais da Pepsi.


PLAYBOY: Esquerda ou direita?


PELÉ: Centro.


PLAYBOY: Filho ou filhas?


PELÉ: Confesso que fiquei meio frustrado quando a Kelly nasceu. Aquela história toda de herdeiro mexeu comigo e eu queria homem. Mas depois que o Edinho nasceu empatou tudo e hoje para mim é igual.


PLAYBOY: Uma cidade para viver?


PELÉ: Para mim é Santos.


PLAYBOY: E para namorar.


PELÉ: Para namorar, Nova York.


PLAYBOY: E só para passear?


PELÉ: O Rio de Janeiro.


PLAYBOY: O restaurante predileto?


PELÉ: O Les Pyrénées [251 W 51st St. (Broadway-8th Av., tel. 246 0044)], um francês ótimo em Nova York. [Nesta dica o Rei tem o apoio entusiástico do ex-ministro Delfim Netto e do colunista maior Ibrahim Sued.]


PLAYBOY: Se você não tivesse sido jogador de futebol, o que gostaria de ser profissionalmente?


PELÉ: Quando era garoto, e mesmo já jogando no Santos, eu sonhava em ser aviador. Queria fazer curso de piloto. talvez influenciado por um campo de planadores que tinha perto do BAC, em Bauru. Agora, depois de ter viajado tanto, mudei de idéia [risos].


PLAYBOY: E tem algum lugar do mundo que você ainda queira conhecer?


PELÉ: Tem, e não é nem a Lua nem Marte, como muita gente supõe. Eu ainda vou achar tempo, vou me disfarçar e vou conhecer, imagine. Ouro Preto, nas minhas Minas Gerais, e Porto Seguro, na Bahia. Parece mentira, né?, mas não conheço. Nunca tinha falado isso. Morro de vontade de conhecer.


PLAYBOY: Você já pediu autógrafos para alguém?


PELÉ: Já, poucas, mas já. Pedi para o Chico Anysio, que é um dos caras mais inteligentes que temos no país. Pedi para ele uma mensagem sobre uma foto nossa. Outro para quem pedi a mesma coisa foi para o Roberto Carlos. E pedi para o papa Pio XII e para o John Huston. Tenho tudo guardado.


PLAYBOY: Com que jogadores atuais você gostaria de jogar?


PELÉ: Dos brasileiros, com dois da Seleção o Careca e com o Palhinha, que me lembra muito o Pagão, um ex-companheiro brilhante, que fazia coisas surpreendentes em nossos bons tempos de Santos. O Palhinha me lembra ele, é um jogador muito inteligente, desconcertante. Entre os estrangeiros, eu gostaria de jogar com o holandês do Milan, o Rijkaard, e com o Baggio, atacante da Juventus de Turim.


PLAYBOY: O que você lê?


PELÉ: Não tenho o hábito.


PLAYBOY: E o que ouve?


PELÉ: Todo o tipo de música. Gosto mais da popular que da clássica. Gosto de música caipira, do Roberto Carlos eu gosto pra caramba, da Maria Bethânia também. Adorava a Clara Nunes, gosto da Beth Carvalho, do Gilberto Gil, do Milton Nascimento. Gosto de reggae, de música afro, me ligo pouco em rock, sempre que posso vou ouvir jazz em Nova York e em Nova Orleans.


PLAYBOY: E o que pega você na televisão?


PELÉ: Sou um tremendo noveleiro, de pedir para gravar quando estou viajando. Desde sempre, aliás. Quando jogava futebol os outros jogadores me chamavam de mulherzinha, tanto que eu fazia questão de ver as novelas. Hoje todo o mundo gosta. E quando a minha irmã não consegue gravar, o Boni [José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, vice-presidente de operações da Rede Globo] manda para mim.


PLAYBOY: Línguas, quantas você fala?


PELÉ: Eu me comunico em francês, espanhol, italiano e inglês. Já me virei em alemão, mas acabei esquecendo. E agora estou disposto a investir no japonês. Um dia, por sinal, quando eu estudava inglês na Berlitz School, em Nova York, me encontrei com o John Lennon, que estava estudando japonês, e ele me disse que era a língua que ia tomar conta do mundo, que eu precisava estudá-la.


PLAYBOY: O John Lennon... E você conheceu algum outro Beatle?


PELÉ: Só rapidamente, numa festa ou noutra.


PLAYBOY: É, verdade que você anda meio chegado a um fogão?


PELÉ: Eu sempre fui bom cozinheiro.


PLAYBOY: Modéstia à parte...


PELÉ: É, modéstia à parte. Minha especialidade são frutos do mar, mas faço arroz, feijão, e não considero como cozinheiro quem sabe fazer apenas churrasco.


PLAYBOY: Um teste para o empresário esportivo: se você tivesse que adotar um clube, qual adotaria entre o Santos e o Flamengo?


PELÉ: Ah, o Santos.


PLAYBOY: Cadê o empresário que não age mais com o coração? O Flamengo é o clube mais popular do Brasil...


PELÉ: A pergunta foi no sentido de adotar. A gente só adota aquilo de que a gente gosta. Para negócio, é claro que eu optaria pelo Flamengo, pelo Corinthians...


PLAYBOY: Agora você está querendo fazer um agrado...


PELÉ: Nada disso. O Corinthians pode ser um fenômeno de marketing. Basta saber trabalhar, com profissionais do ramo. O Corinthians é fabuloso, o clube mais popular do Estado mais rico do país.


PLAYBOY: Você se arrependeu de ter feito propaganda para a Vasp?


PELÉ: Não, porque, como já disse, achei que era uma boa concorrência para a Varig. Fiquei chateado, sim, por ter acreditado na família Canhedo, que me enganou, não fez nada do que prometeu. Deixei de receber muito dinheiro, não desconfiava da corrupção que existia. Mas, no fim, dou sorte. Porque saí sem me envolver. Aliás, tem alguma coisa que me protege. Imagine que o Leopoldo Collor andou me procurando, em troca de apoio ao irmão dele, para financiar a construção do Museu Pele. Não aceitei, o projeto demorou mais para nascer, só vai ficar pronto agora mas, pelo menos, não me envolvi com eles. Já imaginou?


PLAYBOY: Com toda a sua preocupação em não ser envolvido com a Corrupção, você é íntimo de uma figura, no mínimo, polêmica como o Alfredo Saad...


PELÉ: As pessoas não o conhecem bem. Eu aprendi a conhecê-lo. E sei, aliás, que se eu for fazer um negócio com ele e não ficar muito atento, ele podendo levar vantagem vai levar mesmo. Ele é negociante de verdade, não põe o coração. Por isso, sempre que temos algum negócio juntos eu fico atento, sem acordo de deixá-lo cuidar sozinho. Essa é a minha proteção. Porque até a mãe dele, se ele for fazer negócio, precisa se cuidar. Ele é um avião. Agora, as coisas particulares dele são problema dele e eu sei de uma série de coisas com as quais ele foi envolvido sem ter nada a ver. Ele não rouba ninguém, não conheço nenhuma desonestidade dele.


PLAYBOY: Um pouco de fofoca, agora. Como andam suas relações com seus ex-companheiros de Santos e de Seleção. Lima, Coutinho e Carlos Alberto Torres?


PELÉ: Vamos por partes. O Lima eu perdoei, mas não nos vemos mais. Na verdade o grande problema foi com a mulher dele, que é irmã da Rose, e que fez todas as fofocas que acabaram com o meu casamento. Já falamos disso. E o Lima, que era como um irmão meu, foi desleal comigo, tomou partido, essas coisas. Deixa ele com a vidinha dele de um lado e eu com a minha do outro. Já com o Coutinho foi diferente. Ele deu uma entrevista à revista PLACAR e falou um monte de coisas que. não devia. Eu até respeito, entendo, ele devia estar magoado com alguma coisa. Não tenho nada contra ele e se o encontrar o abraço e tudo o mais. Ele teve muitos problemas perdeu um filho, ao que parece com Aids, mas o fato é que gosto dele. E o Carlos Alberto ficou chateado porque não pude jogar na partida de despedida que fez no Cosmos. Fiquei à disposição para promover o jogo, apenas avisei que não jogaria porque estava inteiramente fora de forma. Ele não gostou, a Terezinha Sodré, mulher dele, deu entrevistas contra mim, dizendo que eu não era amigo, não sei o que mais. E ele entrou nessa, também. Depois, se desculpou e continuamos amigos.


PLAYBOY: O problema não foi de ciúme porque você namorou a Terezinha, antes de eles se casarem?


PELÉ: Acho que não. Eu saí com ela antes de eles se conhecerem, até fui eu quem os apresentou. Não namoramos, éramos apenas amigos e saíamos juntos.


PLAYBOY: Entre as inúmeras críticas que você recebe, além das já clássicas como o apelo pelas criancinhas do Brasil por ocasião do seu milésimo gol e a declaração sobre os brasileiros que não sabem votar, há também as pancadas devido às suas incursões no terreno da música e do cinema. Ainda magoam, ou já dá para tirá-las de letra?


PELÉ: Repito que se tivessem cuidado das crianças quando eu fiz o apelo, em 1969, o Brasil não teria tantos meninos de rua. E repito que não disse que o povo não sabia votar, apenas pedi que votassem com seriedade. Quanto ao resto, deixa falar. Faço música porque gosto, e se fosse tão mal ator assim meus filmes não fariam sucesso. Apenas não tenho tempo para me dedicar tanto quanto gostaria. Por sinal, vou dar à PLAYBOY uma letra até hoje inédita, que ainda não me decidi se vou deixar alguém gravar, que eu considero a mais bonita que já fiz. É uma coisa tão íntima que concordo em mostrá-la como mensagem, embora ainda tenha dúvidas se quero vê-la musicada [veja no quadro].


PLAYBOY: Você se sente injustiçado?


PELÉ: Não é isso, apenas acho que as pessoas são muitas vezes impiedosas. Quer ver outra coisa, sobre a qual jamais falei e que agora vou revelar? Nunca ninguém soube que eu e minha família mantemos dois orfanatos, um perto de São Vicente e outro no Guarujá. O primeiro, chamado México 70, para 250 crianças. O outro, para oitenta. Nós nunca saímos falando disso, como outras pessoas, até amigas, fazem, como a Xuxa, por exemplo, que não tinha nada que gravar programas mostrando as crianças mantidas por ela. Achei que chegou a hora de falar sobre isso, apenas para mostrar que quem diz que eu só falo e não faço nada não sabe da missa a metade.


PLAYBOY: E o caso da Sandra Regina, como está? Já está definido se você é mesmo o pai dela? Ela tem nome de rainha, hein?


PELÉ: Já disse várias vezes que se ela for mesmo minha filha eu assumo e pronto. Sem problema algum. Lamento, apenas, o estardalhaço que o advogado dela fez. Só que, com trinta anos, a menina não pode esperar de mim a mesma amizade, o mesmo carinho que eu tenho com os meus filhos, que foram criados por mim, que eu conheço. Ela eu não sei quem é, não conheço. Até a maneira como tudo foi tornado público atrapalha a possibilidade de termos um relacionamento mais íntimo. Enfim, quando a gente é criança faz cada besteira... [risos].


PLAYBOY: Mudando de assunto, você não teme que a próxima Copa, ano que vem, nos Estados Unidos, seja a mais fria da História?


PELÉ: Por causa da torcida? Que nada! Vai ser o maior carnaval, como nos tempos em que eu jogava no Cosmos. Só tenho medo que a Copa não seja boa dentro de campo, que frustre a expectativa dos estádios, que certamente estarão lotados.


PLAYBOY: E, então, você vai voltar a viver aquela situação já vivida em outras Copas, cercado por grandes ídolos do futebol, todos pedindo autógrafos ao rei do futebol?


PELÉ: É gozado, né? Mas não é só nos estádios, não. Até em Cannes foi assim, quando fomos lançar o filme Vitória, que fiz com o Michael Caine e com o Silvester Stallone. Gente que não é do meu campo, digamos assim, artistas famosos, a fina flor do cinema passava e as pessoas aplaudiam. Quando o Pelé passava precisava a polícia vir, era um delírio. Nisso não tenho modéstia, mesmo, falo com muito orgulho porque acontece em todos os setores. No Japão, por exemplo, fomos visitar o primeiro-ministro. Mikhail Gorbachev, Brooke Shields e eu. Aonde eu ia, todos seguiam atrás. A ponto de os organizadores me pedirem: "Pelé, fica perto da Brooke Shields e do Gorbachev, porque senão ninguém fica lá com eles." Claro que às vezes eu fico sem jeito. Agora mesmo, este ano, na festa da FIFA de entrega de prêmios aos melhores da Europa. Chega o Van Basten [outro holandês do Milan], o melhor jogador da Europa, e fica me pegando, me abraçando. O Jorginho [o brasileiro que joga no futebol alemão], considerado o craque mais disciplinado da Europa, chega e se desfaz: "Puxa, como eu queria conhecer você pessoalmente." Fico feliz, é claro, mas meio sem jeito, sou um pouco tímido. E vai por aí afora. Em 1982, se não me engano, sabe quem beijou os meus pés na frente de todo o mundo, igualzinho ao que o William Hurt fez? Ninguém menos do que aquele que eu considero o melhor goleiro de todos os tempos, o Aranha Negra, o russo Iashin, já falecido. Pode?


PLAYBOY: Pode, Majestade. E PLAYBOY se associa e beija seus pés.


POR JUCA KFOURI

FOTOS SÉRGIO MORAES


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