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HISTÓRIA DE PESCADOR

Ficção



Para o rapaz, parecia uma conquista fácil. Mas ele não sabia que amar aquela mulher era fatal


Por GERALDO FERRAZ


Ó pescador da barquinha

olha que vai iludido

essa mulher que aí vai

é casada e tem marido


Os olhos no mar de há pouco ainda: o mar, arestas brancas, marcas n'água de uma brisa, crespas as marcas, levemente picado que fremia nas trepidações alvíssimas, e respirando fundo sentira toda a plena força das verdejantes encostas, ora nuas em pedra lavada pela água no encontro represante, em torno, até longe, mais longe, olhos no mar, onde a risca firme da massa se fazia dum azul nítido, respirara fundo e era bom. Séculos se haviam passado desde a fundação da cidade, pouco tempo transcorrera daquela moeda em que se lia a data de 1532, e antes, outros séculos, como nunca sentira a perpetuidade de tudo, aquela alegria oxigenada da vida, água, verdura e azuis tudo eterno, respirando fundo.


Precisamente agora lhe faltava essa possibilidade de aspirar que nem. Nenhuma dor, só a redução, cada vez mais apressada, redução, redução, redução, apressada em lhe fechar todos os filtros de ar. Via com as retinas envidraçadas a mesma linha azul-azul tão longe, tão picado o mar, irritações frementes encrespando... Entraram então sonoras ondas de sereia de longe pedindo passagem ao carro branco e o silvo veio morrendo, morrendo perto do seu ouvido no chão. As vidradas retinas viram as sombras volutuosamente brancas depois do terremoto no silêncio súbito do povo, tão difícil respirar formulou penosamente, ao tempo em que um frio tomava as extremidades e corria, formigas de gelo embutidas no despojo. Levitado, a ferida queimou outra vez, teve a náusea que segurou com a força dos dentes cerrados até doer, o quanto pôde, rangendo, não conseguia apertar mais. Redução, redução. De novo a sereia, foi relaxando os maxilares, babava, não mais a opressão, o frio, escurecia tão depressa, portas fechavam-se, espaços se despetalando no denso silêncio crepuscular.


O começo foram os olhos verdes líquidos da moça aos quais procurou atrair no veículo sacolejante. Pendurado ao travão não era pescador na barquinha mas o páraquedista da gíria, lançando a isca da gula pros olhos verdes da dona, morena bonita não, mas limpa de saúde e cuidados. Limpa, sim, convenceu-se, passando logo ao travo perverso e daí pegou a pensar mal da moça. Ela ajeitou o cabelo com a mão esquerda decerto para mostrar o anel de casada; brilhou; não de propósito ele pensou, pescador, enquanto o vento insistia em fazê-los voar, ah era o vento da janela que desmanchava o cabelo da moça; não, ele continuava, não é séria nada, é mulher do povo mas faz seus biscates, ora. O pescador da barquinha ia iludido.


— Mário, você já levou namorada em Santo Amaro?


Do pescador o raciocínio prosseguia — a aliança não importa — às vezes só serve para enganar ou contar que são mulheres já, não tenham receio, é pra quem quiser essa mulher que aí vai. Ela retribuiu perversa o desejo mau do pescador e súbito calor aqueceu a parte ruim dele. Nisto, o figurante do lado dela pedia licença pra passar, ela foi pra janela, ele sentou no lugar junto da moça, mediu-lhe bem o busto desenvolto debaixo da tricolina ajustada. Os dedos dos olhos percorreram ariscos os seios dela/ela sentiu e teve um sorriso inquieto apenas franzindo os lábios da máscara, e os olhos verdes respondendo. O ônibus ia cheio, adernado, passava pela Caneleira entre bananais, logo sentiram os viajantes sobre o difuso odor coletivo de brilhantinas, fumos e suores, o cheiro mais forte do Matadouro asqueroso, mosquitos no negro mangue, voando ou parados urubus sobre o espelho escuro, águas pesadas nas margens negras. Ao fundo a serra corria para trás, nos seus perfis de onda azulada na calma das três da tarde.


— Está passeando?


Ela não respondeu logo ao incitamento, esperando talvez, apertou a bolsinha na mão direita automática, depois murmurou que nem alheada:


— Tou passeando.


Palavras fluindo em estremecimento que ele concluiu, ah é tímida. Com tímida, tinha tanta prática lidando todo dia aqui e ali, com tímida, devagar.


— Está bom o dia pra passear.


— Fugi de casa — soltou a voz num repente, certo esperava qualquer palavra para rebentar em confissão. Tremida ainda, mas de ímpeto.


Ele riu breve, quase chocado, vendo que a "tímida" arriscava também.


— Fugir é melhor que passear — insistiu logo o pensamento mau tomando seqüências no alvoroço daqueles calores que subiam desde a parte ruim dele:


— Posso lhe ajudar a fugir?


Era conspiração entre dois ou conversa sem lógica? Vai, não acontece nada, vai, acontece. Os calores percorrendo a parte ruim do moço, soltando de desejos desse bicho corretamente vestido, pasta no colo, e o ônibus parou perto do cemitério, depois continuou ao longo dos morros e tugúrios, os armazéns do cais, um bonde com reboque cheio de gente dependurada.


Isaura lhe disse que tinha onde ir, e sendo pra já...


— Quando eu descer me acompanhe, é perto, vou na frente.


Pronto, era o primeiro raciocínio que valia — mulher do povo que fazia seus biscates. Uma vez também, em Santo Amaro. Não fazia mal, adiaria a volta a São Paulo por mais uma hora ou duas, ainda era cedo.


Andando na rua atrás da moça, aquelas ancas lhe deram uma impressão momentaneamente má, um tanto saltadas as ancas, era assim mesmo ou o corpo sofrera uma quebra pelo meio, ora — como se dizia mesmo? A palavra não vinha, mas precisamente aquele levantar de ancas assim ainda mais lhe acendeu o desejo, sob o vestido tão ajustado dela, pensou mesmo numa posição quase em que ela. Na esquina em que virou a moça, ele ao dobrar quase foi pra cima dela. Do esbarro saíram de mãos dadas, e a mão dela estava fria, rápida largou a mão dele, nervosa — ora. De sopetão a lembrança de Mafalda instalou-se ao lado, entre remorso intenso e desejo revivido, não era a mão de Mafalda, naquela noite noiva toda de branco no minuto intenso diante da cama larga, do desejo dele se segurando em bordas de abismo, mãos frias as dela e a voz sumida:


— Não me maltrate, Mário, tenho medo, não seja violento.


Segurando-se sobre abismos, sorrira em branco, enxugara as primeiras lágrimas do pedido com beijos, buscando forças para ser delicado.


Mãos frias e a voz sumida de Isaura:


— Vamos parar aqui; agora quero que você, precisa saber...


A porta escancarou-se e a faca brilhou diante dos olhos dele, sentiu um soco brutal, perto do pescoço, um palavrão e a faca arrancada, de novo o soco. Rodou no terremoto que sacudiu a rua, debaixo de paredes, portas beirais vindo abaixo, janelas batendo — um grito de gato na confusão "Dudu!" — era voz da moça — e um caminhão freou desviando dela no meio da rua, e Mário está de lado caído, e o chão desce e desce. O vozerio se dissolve em ondas, estalam chicotes, lamentos, auxílios.


Ainda há pouco, há tão pouco, podia recolher todo o ar trazido do alto-mar na brisa crespa, a brisa das distâncias, de longe do mar, ó pescador da barquinha, olha que vais iludido, essa mulher que aí vai.


o o o


Zonza de dor chegou chegara chorando, numa agonia desesperada, exatamente que nem quando aquela vez caída no chão do quintal, os rins em fogo:


— Ah meu pai!


— Dê água a ela. Deixe ela aí — ouviu e bebeu a água derramada na roupa, o copo batendo nos dentes, caindo no chão.


— Acalma, acalma. Tragam mais água.


O mesmo desespero diante do pai. Alcançara-a a pancada bruta da mão de pilão atirada na fúria, quebrara-lhe corpo em dois, ia morrer. E a garganta sempre seca na febre daqueles dias na Santa Casa.


— Ainda perde sangue.


— É duro, uma mocinha sem mãe. O pai quase mata ela.


Os homens haviam rido na bebedeira na cara dele:


— Isaura já anda dando por aí. E você duvida?


Começara com a bofetada na porta. Enfrentou o pai aos gritos, repelindo a infâmia:


— É mentira, meu pai! É mentira! Ouve tua filha, é mentira, pai!


— Acalma, acalma, vai passar tudo.


Delirante, convulsa, sentiu contudo a funda picada no braço, estirada ao acaso no banco duro. Então um calor espalhou seu adormecimento pelo corpo todo, os soluços, a espaços, a aliviavam, dando-lhe paz na tonteira.


— Ah meu pai, meu pai.


Dormiu. Depois recomporia o despertar, não dormira desde quando? Daquela noite o conflito cruel. Ali estava a maldade duplicada de Dudu: Você é à-toa e me enganou. Você vai dizer quem é ele. Hoje me disseram a casa onde você vai — não é verdade? Você não vai lá? Nessa rua? Nesse número? Mas diz quem é ele, cadela. Diz. Por que fica surda. Não é verdade?


Isaura firme a princípio apenas um NÃO surdo, aqui, ali. O homem falava baixo e duro. Sabia, sim, e ela completamente desgovernada. Só se encontrara ali duas vezes com Antoninho e agora quem conseguira saber tudo desse jeito... Dudu com a faca brilhando na mão. Sabia de tudo. Não é verdade, nessa rua, nesse número? NÃO. NÃO. Pensou que não tenho amigos que me contassem essa vergonha? Eu trabalhando, você sujando a nossa vida. E o menino, por que você não pensou nele? Quer desgraçar quem pôs no mundo? Isaura certa que o mundo ia acabar: NÃO. NÃO. Mas aí estava que merecia tanta mortificação, tanta morte. A faca vinha mesmo. No fundo negativo em que se cercava, ela agüentava o assédio, os nomes, ah merecia. Antoninho valia esse martírio — vem a morte nessa faca, vá por ele, seu jeito de carinho, sua espera silenciosa, tão longo tempo, seu respeito... Sim, respeito. Respeito não fora casar-se com Dudu, a bestialidade da noite em que a tomara, com perguntas violentadoras, contato grosseiramente doloroso. Antoninho, morro mas não digo. Volte lá que mato você e ele. Nunca fui lá. É mentira. Dudu a noite toda torturando em nomes, ameaças, tão frágil na camisola de morim, o pescoço nu. "Então mate, carrasco. Mate. Te mentiram, tu acredita, mate. Pensa que minto, mate".


O homem arrasado de ódio e dúvida. Se ela confessasse podia despi-la e humilhá-la, com o desejo que crescia nele, a posse de novo, se ela confessasse podia procurar o outro e matar. Fumava ainda amargo quando a madrugada clareou. Ela dormitava, sem chorar e sem medo.


A porta abre e a faca brilha ante os olhos... Um soco, um xingo, a faca

Na insônia do amanhecer percebeu fadigosamente o marido indo lá fora, mexendo no tanque, lavando a cara, voltando, bebendo café na cozinha, batendo a porta. Depois sonâmbula despertara o menino de sua poltrona-cama da sala, preparara-o para a escola. O dia subia em sol morno, num azul pálido. Mais tarde ficara tudo azul forte quase sem nuvens, batendo a roupa no tanque, estendendo a roupa, consertando, tudo depressa, num desespero, o mundo ia acabar. Isaura tonta, febril, na bacia grande tomando banho, a pedreira apitou as onze horas, não tinha fome, o menino ia voltar, não iria comer?, lidou com as panelas, temperou o feijão cozido de véspera. Aí o menino voltou. Depois de comer:


— Posso brincar na ponte, mãe?


Sentiu-se chocada àquela intenção do menino ("não brinca com Dudu") de quem os olhos esperavam uma resposta.


— Vá brincar, vá.


Tinha de buscar Antoninho no ponto, dizer-lhe que tomasse cuidado, combinar quem sabe. Porque não encontrara antes Antoninho, porque tivera mau destino de lhe dar Dudu em lugar de. E agora o menino entre os três, para quem ia, em que ponte ficar?


o o o


Levantara-se e passara duma sala para outra, havia muita gente, fizeram-na sentar-se. Foi respondendo o nome, casada, brasileira, mãe, pai, 27 anos, morava...


— Não, não sei quem é, nunca tive nada com ele!


— Então, como é que estava andando com ele?


— Ele não estava comigo!


— Escute: você vinha com ele...


Quando chegou na porta o seu marido pegou vocês dois e foi pra cima dele!


Outra vez contra a parede; em torno, olhos, caras, esperando a voz dela contar coisas. Lembrou-se então de tudo nítido, uma parede atrás doutra e doutra, separando-a dos acontecimentos, dias e dias, paredes e paredes e a noite de uma sala da lei, num outro tempo, quando mesmo? Sim, tinha a certeza:


— Não sei quem era. Dudu devia falar qualquer coisa. Perguntar. Eu não sei quem era.


— Mas você estava com ele!


— Estava não. Por que teima? Tou louca, então?


— Você está falando com o delegado de polícia: não negue. Viram você com o moço, de braço dado com ele, iam entrando na casa.


— Mas eu não ia com ele, de braço não, nunca, não ia entrar em casa nenhuma!


— Então seu marido esperava vocês dois lá...


— Eu não sabia da casa, não sabia do Dudu, não conheço ninguém, chega!


— Chega o quê? Comporte-se! Quer dizer que seu marido mentiu que você andava dando confiança pro primeiro que aparecesse?


— Ah meu pai!


Estranguladamente, mais uma vez, as mãos apertando o pescoço para livrar-se daquela obsessão, mas muito claramente, pensando depressa, na defensiva. Julgavam tudo dela na base de Dudu, ignoravam Antoninho. Ele estava fora do baralho. Respirou fundo olhando em volta acuada, não desistiria; estava ali, cansada, encolhida em guarda, defendendo-se magoadamente, mas voltaria, persuasiva, a cabeça fora dos insultos, das chicotadas que vinham dos bigodes negros da cara do delegado, cara-de-pedra-amarela, e ela era mais forte que todos, boa, quase amiga:


— Não, não sabia daquela casa, nunca levei ninguém lá, nunca me levaram lá.


— Afirma então que seu marido inventou tudo isso para matar quem você não conhecia?


— Não sei o que ele fez... Matou? Dudu matou? Não é verdade — pôs na voz tamanho acento de sinceridade — não é verdade. Vi que caiu ferido, mas não morreu, não é?


— Morreu, sim, está morto.


Seca na sua impiedade de vida e de morte:


— Dudu está é doido. Um ciumento... Brigava sempre. Eu estava passando ele saiu de faca na mão gritando. Pensei que ia me matar, vai vira pro moco que passava, que nem uma fúria...


— Seu marido contou que você tinha um amante, que ele prometeu matar vocês dois, que quando saiu de casa disse que você seria morta se a visse com seu amante, e ele esperou vocês dois a tarde inteira, e quando viu vocês ficou atrás da porta para apanhar os dois. Ele só sente não lhe ter matado!


— Eu também!


— Por quê?


— Porque ficava livre dessa sujeira, dessa suspeita, desse ciumento. Ele passou a noite inteira dizendo que ia me matar. Pôs a faca no meu pescoço! Eu disse pra ele me matar. Quem não deve não teme!


O delegado passou o lenço no rosto, suava. Olhos e ouvidos em torno vasculhando o diálogo.


— Vamos ver o que vocês dizem um pro outro: tragam o Dudu.


Isaura aperreada é face que não pisca, a boca apertada fez aparecer um vinco naquele rosto. Tudo lhe parecia cada vez mais claro; era só não ceder, que nem na luta da madrugada. Fizera-lhe bem dormir. Da outra sala vieram as dez badaladas da noite. O delegado afastara-se para falar com o escrivão. Sutil naturalmente ela se levantou e aproximou-se:


— O doutor dá licença?


— Que é?


— Posso saber do meu filho?


— Foi pra casa da tia dele, fique descansada.


Voltou. De costas para a porta, sentiu a presença de Dudu, acompanhado das botinas dos soldados.


— Sente aí.


Dudu tornara-se uma cara desgraçadamente escura, olhos cobertos de sangue, ombros caídos, a boca entreaberta, exausto. Isaura olhou-o de raspão e se sentiu tão distante dele, separada por grades e grades, muitas grades, umas atrás das outras, soldados, muros, grades. Um trapo isso que fora seu marido. Estava ali destrocado diante da lei.


— Sua mulher


— Não sou mulher de assassino, doutor!


— Cale a boca! Só fale quando eu mandar!


Dudu levanta a cabeça para dizer qualquer coisa, ninguém gritaria assim com sua mulher alguma vez na vida, entretanto.


— Sua mulher diz que você matou quem ela não conhece.


— Você disse isso, Isaura? — indaga a voz submissa, desarticulada.


— Eu disse e é verdade.


— Eu disse a você que ia matar vocês dois se voltassem naquela casa.


— Nunca vi aquele moco. Ele ia andando que nem qualquer gente na rua.


— Ela mente, doutor. Ele anda com ela, me contaram. Me deram o nome da rua, o número da casa. Ela ia chegando com ele. Não bastava? Não, é ela que está mentindo, essa falsa.


— Que é que você diz agora, dona Isaura?


Isaura relaxou o rosto diante daquelas caras:


— Ele é ciumento, eu ia passando na rua, ia ao médico. Ele diz que estava numa casa me esperando. Nunca estive nessa casa. Nunca vi o homem que ele matou. Posso jurar sobre a cabeça de meu filho: nunca aquele homem entrou comigo em nenhuma casa, nunca vi ele, não sei o jeito dele, não sei o nome dele. Ele é inocente. A polícia quer mais o quê?


Isaura, de olhar firme no marido: "Nunca vi o homem que ele matou!"

O delegado olha os dois, demoradamente. Dudu está de cabeça caída, Isaura sem arrogância, sem maldade, como que aflita apenas. O raciocínio policial vai à surpresa. Abriu lentamente a gaveta à direita, tirou uma carteira de identidade, abriu-a diante dos olhos de Isaura:


— Não conhece este homem?


— Não. Nunca vi este homem.


— É este que foi assassinado porque ia entrar com você na casa.


— Não sei quem é...


— Então ele lhe cantou na rua e você topou um desconhecido? Você fazia isso sempre? Você levava qualquer homem lá?


— Pelo amor de Deus, doutor... — soluços sacodem Dudu, a cabeça sobre os punhos em cruz.


Isaura impassível reagindo:


— Não entendo nada do que o doutor me fala Quando eu era mocinha, meu pai me pôs no hospital, mais de um mês, porque falaram mal de mim. Era mentira... Chamem a família desse moco — deve saber alguma coisa...


— Ele morava em São Paulo...


— Está vendo, Dudu? Acha que conheço alguém de São Paulo pra te enganar?


Dudu levanta os olhos da cara pateta, fixa penosamente essa mulher estranha que o interpela cheia de razão, e ela põe nele os olhos bem abertos, aflitos, mas seguros, num desafio que o faz estremecer.


— Você.


Depois de sustentar aqueles olhos desesperados mais de um minuto num silêncio coagulado na sala, Isaura levanta de ímpeto para se atirar sobre a mesa, arrasta as coisas que estão ali, papéis, caixa de cartas, cai tudo pelo chão com ela, seguram-na, levantam-na. O delegado dá ordens. Dudu sai no arrasto dos pés de chumbo; levam Isaura.


o o o


Depois do café, o relógio já batera nove horas, o delegado chama de novo. Ainda zonza ouve a voz, "entre, sente-se". A ordem era para o espanhol Sanjosé que ela via pela segunda vez. Nem um estremecimento, um gesto. O homem grisalho, mais de cinqüenta anos envelhecidos, na cara oblonga olhos ardentes, nariz agudo sobre uma boca fechada tendenciosamente em rugas. Ele também está indiferente.


— Conhece este homem?


— Não conheço.


Tamanha indiferença na cara de Isaura que o delegado jamais vira uma janela fechada assim. O espanhol apressava-se:


— Tanpoco yo, doutor.


— Não lhe perguntei nada. Mas você tem certeza que esta mulher não freqüentou sua casa? Nem uma vez, duas? Nunca levou nenhum homem lá?


— Doutor, personas distinguidas


— Naquela baiúca? Ah, seu Sanjosé, você está é muito engraçado. Tem certeza que esta mulher nunca foi lá com esse moco assassinado na sua porta ontem?


Sanjosé examina a cara da carteira:


— Via a fotografia também no jornal. Não estava em casa, todavia. Minha velha não mora lá; está doente na casa de uma irmã. Tem lá uma empregada que trata de tudo, tem um filho, moram no quintal. Me contaram do crime na porta, mas só hoje soube que desconfiam que o assassino matou por ciúme. Parece que aproveitou a porta encostada para se esconder. Não tinha nada com a casa.


— Quer dizer que vocês não se conhecem? Nunca se viram? É incrível.


— Pero lo es, doutor.


Isaura abaixa os olhos sentindo-se examinada por Sanjosé. Sente agora que há no corpo do lado um pedaço dolorido, de ter dormido de lado ou de ter caído ontem desvairada?


— Pode ir, seu Sanjosé.


A campainha, o escrivão que entra, que sai, que traz papéis. Campainha de novo.


— A senhora vai voltar para casa, mas esteja pronta para qualquer chamado. Não me suma de casa que fica presa. Está ouvindo?


— Queria que o doutor mandasse meu filho.


— Terá de esperar. Hoje mesmo ou amanhã esta história termina. O menino poderá ficar consigo se o juiz determinar.


Solta na rua entre tamanhas árvores na hora tão clara. Gente que anda como todos, nem reparam nela, segurando a bolsa, devagar, olhando tudo, os ônibus, gente esperando no ponto, poeira no chão.


o o o


Quando o ônibus parou e Isaura desceu, o automóvel de Antoninho estava estacionado adiante. Até alcançá-lo, o ônibus se fora; ela entrou na porta que se abrira, o carro partiu para São Vicente na carreira. Deixou para trás a cidadezinha, entrou pela ponte pênsil, seguiu para a Praia Grande. O motorista mudo, o cigarro fumegando. Isaura segurava os cabelos com a mão direita, escondia o rosto, largar a bolsa, uma emoção de fuga com Antoninho, tudo livre à frente; buscou-lhe a mão no volante, ele afastou-lhe a mão, ela pensou em prudência, mas haviam varado os seis quilômetros de estrada e entravam na solidão de areia e mar e céu. Sem ouvir uma palavra de Antoninho, docemente, lágrimas começaram a descer-lhe pelo rosto. Estremeceu à pergunta pelo tom indiferente:


— Como você conseguiu sair dessa?


Olhou Antoninho de frente e ele não era ele, sentiu-o num choque:


— Que é que você tem, Toninho? Depois de tudo, não me abraça, não me beija.


— Estou querendo saber como você se arranjou com o delegado.


Isaura suspende as lágrimas. Aquele não era Toninho de tanta ternura. Que tinha acontecido?


— Não houve arranjo nenhum, o espanhol Sanjosé negou me conhecer, neguei conhecer ele, pronto. Você soube?


— Estava na praça, Sanjosé pegou o carro, levei, ele me contou: voltei, vi você tomar o ônibus. Sabia onde você descia.


— Mas Toninho não pára esse carro, não me abraça, não me beija depois de tudo?


— Você ia com outro para a casa de Sanjosé e teu marido sabia...


— Ah Toninho! Não é verdade!


— Que é verdade? Dudu pegou vocês no flagra, bom que não fui eu. Te trouxe até aqui pra conversar. Hoje mesmo raspo pra São Paulo. Já fechei a conta no quarto, minha roupa está no porta-mala.


— E eu, Toninho? E eu?


— Você o quê?


— Então te conto tudo: aquele que o Dudu matou me cantou sim, eu vi que devia levar ele pro Dudu matar — jogar tudo. Dudu podia também me matar — antes até. Eu sabia, eu sabia que ele esperava a gente. Tinha prometido me matar, matar nós dois, eu e você... se a gente voltasse lá. Então arrisquei! Em vez de ir avisar você que era tão perigoso, eu podia fingir que andava com aquele moco e Dudu matava ele e me matava, ou se via no que dava... Vê o que aconteceu: nunca levei aquele moco lá pra estar com ele, nunca, acredite, Toninho!


— Conversa tua, invenção, então você adivinhava que Dudu tava lá?


— Ah Toninho... foi uma noite desgraçada. Ele pôs a faca no meu pescoço, sabia da casa, só não sabia que era você. E não sabe! Acredite, podemos viver juntos, Toninho. Acabou o jogo perigoso. Só tua, Toninho!


— Comigo? Você tá dando em doida? Conta isso direito... Você ia entrar com o defunto na casa se o Dudu não mata ele.


— Não. Não, Toninho. Levei só até a porta. Quando ia explicar que eu não era o que ele pensava, eu comecei a dizer, Dudu saiu da porta com a faca numa doidera. Podia ter me matado, vejo preferível agora cem vezes do que o coitado que me cantou. Não acredita, Toninho?


— Acreditar em ti que jeito? Você tá mentindo pra te justificar e ficar comigo. Não acredito em você nem em ninguém mais, nem mulher nenhuma. Você é viciada, quer é homem, dinheiro, ou tou errado?


— Errado, Toninho, errado! Ah meu Deus, meu Deus.


As mãos à cabeça, o calor da praia sem brisa, a solidão tão perto do homem que por ele tinha imaginado toda aquela roleta. Tudo vazio, na distância cinza, no mar esparramado. Pesadelo contínuo, soluços enovelados na garganta.


— Chega de chorar. Não vou na tua conversa. Direita você devia me procurar eu enfrentava Dudu, de homem pra homem. Mas arranjar um cara, um pescador... Bom, fui eu que ensinei a casa. Acho até que você deve procurar Sanjosé — chega de chorar —, ele me disse que você é preciosa. Preciosa... Vai querer te dar grandeza; você tem cartaz, cara no jornal, marido assassino por ciúme, e você é boa na cama, mas comigo não! Eu pensei que gostava de você, mas que você fosse direita, não a que vai com qualquer... a cidade inteira está falando. Por que eu vou... chega de chorar!


Isaura levanta os olhos, afasta os cabelos, sai, bate a porta do carro de estremecer toda a lataria. Um aperto no coração com a pancada — nunca mais — e para a cara de raiva do motorista:


— Fico aqui, Toninho. Vá embora você, não adianta; é cruel. Tive culpa, nem precisa dizer, mas tudo sem querer pensando outra coisa. Vá, Toninho, vá embora. Vá.


Parada, aturdida, vendo o carro fazer a volta, em torno a desolação da grande praia. O mar enorme no chumbo ondulado do céu distante, a ponta de Itaipus, o verde do morro, para lá também tudo cinza, as dunas testemunhas, tudo areial, areia, arenoso. Vazio tudo, e já longe o carro, Toninho pegou na palavra. "E cruel tudo." Lá do sul aponta um caminhão, quem não leva uma mulher sozinha junto? Procurar Sanjosé um dia, "preciosa" para ele, o Toninho falou. Preciosa por quê? Dudu assassino. Toninho não mais Toninho. Aquele coitado de pescador que acabou pescado. Todos me enganaram, enganei todos, Isaura enganadora. Só a verdade não será nunca ouvida. Tenho culpa, é minha inteira culpa, minha culpa; topei marido, amante, pescador, polícia. Paga desgraçada. Sanjosé não, um ordinário com aquela casa. Mas por que "preciosa"? Passa caminhão não pára não. Vai ver outro que suspeita de mim, e faz bem. Joelhos dobrados batem na areia dura para pedir o que a quem? A água virá subindo? Toninho não quero mais, vá, me deixa. Vá pro inferno que vou antes. Boa na cama com qualquer. Dudu assassino, meu pai carrasco, meu filho não quero mais ver, Toninho vá embora. Sanjosé pras negras dele... Ah coragem de entrar nessa água de mar lá no fundo, esquecer, preciso esquecer. Que vida, só morte.


O chofer vê a mulher de joelhos na praia, mas não para. A maré sobe

Do sul vem outro caminhão e vem apressado. O motorista olha a mulher dobrada de joelhos na praia, águas da maré subindo, molhando a saia dela. Solidão mormacenta no sem-fim de cinza. Vai ver é casada, vai ver tem marido, pescador, não te iludas! Rodando, rodando, nem olha para trás. A maré sobe, molha a saia dela.


o o o


Desemboca a estrada estreita na Praia Grande em chão batido fazia tempos. Quando começava, no outro lado da ponte, o motorista já sabia que a partir dali estava no continente. Eram quase ou precisamente seis quilômetros — uma légua sem marco nenhum ao longo dos capinzais beirando pedaços de mangue. Nessa esquina, metros antes de entrar na praia, tinha conversa na venda do Neco, ao lado de um telheiro com a oficina do mecânico e a bomba de gasolina. Os pescadores deixavam sempre sobejar algum peixe que o Neco fritava e a turma de pastagem consumia com pão e cerveja na hora da conversa, matando a sede e a fome. Abençoada geladeira.


— Ó Neco, não parou por aqui aquela fulana que tava na praia outro dia?


— Não é o primeiro que pergunta, mas não passou não. Os Lucas na ida da jardineira viram ela anoitecendo, bem pra cá do campo de aviação. Mingo falou nela, que até noite tava lá. Na volta o chofer me disse que se ela estivesse lá ele recolhia, varreu a praia com o farol.


— Eu sei, mas ia lá parar o caminhão? Tem dessas crentes que não querem nada, pra que a gente vai amolar. Seriam umas quatro da tarde. Fincada de joelhos cabeça afundada devia estar na oração.


— Acho que era caso de transe, porque o pescador Manequinho que chegou perto disse que tava quieta e dura já dentro d'água com a roupa. Ele deu o fora ela nem viu.


— Tem dessas doidas, podia tar esperando hora de se mandar pra dentro do mar.


— Nesses casos o mar rejeita o corpo.


— Vezes aparece longe, sem nome sem carteira, acabou.


— O velhinho do "Trovoada" disse que não era mulher não, que era monte de areia ajuntada na praia. Por isso é que foi indo foi indo sumiu.


— Fantasia do velhinho. Ele tá enxergando pouco, passou de longe, tem medo de sombração, já viu tanta coisa, escurecia quando o barco dele passou lá. Nem falou no caso aqui quando chegou. Dia seguinte é que perguntaram, veio com essa de monte de areia.


— O Genaro do bananal viu que era mulher e não parou mode não haver encrenca. lemanjá protege os crentes dela. Essa tava rezando.


— Possível. Já vi tanta coisa nessa beirada de mar. Uma vez...


O cafuso Donão queria era lembrar outra história.


Depois alguém insistiu ainda que algum caminhão podia ter carregado.


— Duvido. Ninguém faz fé em mulher largada na praia sozinha. Nem pra t... Nego experiente não põe a mão em vespeira. Te lembra daquela com "fogo selvagem"? Uma que andou por aí dormindo na areia? Deixou a doença dela que foi uma desgraça, só deram volta na Santa Casa.


— Bom, essa dona estava disposta a virar água ou areia... Eu vi ela exato na água na maré subindo.


— Virando água ou areia?


— Virando areia, virando areia do mar.


— Destino dela então foi virar areia, foi virar areia...


— Se o Dorré do Violão escuta essa dá modinha — tava virando areia do mar, virando areia.


GERALDO FERRAZ


Geraldo Ferraz publicou seu romance Doramundo em 1956, numa edição pequena, que teve grande sucesso de crítica e mínima repercussão popular. Em 1974 saiu a reedição da obra que, desta vez, atingiu o interesse público, contando com uma renovada onda de entusiasmo por parte da crítica. Nascido em 1905, na cidade paulista de Campos Novos, Geraldo Ferraz trabalhou como tipógrafo e revisor de livros e jornais até 1927, quando se tornou repórter. Secretariou a Revista da Antropofagia, órgão do movimento modernista pós-22.


Jornalista há 49 anos, foi co-fundador do Salão de Maio, marco da evolução das artes visuais no Brasil. Na sua atividade de crítico de arte, participou de vários júris de seleção e premiação das Bienais paulistas, além de publicar estudos como Lívio Abramo (1955), Warchavchik, Introdução à Arquitetura Moderna no Brasil (1957), Wega, Liberta em Arte (1975) e Retrospectiva (1976). Em 1945, publicou o romance A Famosa Revista, em co-autoria com Patrícia Galvão, definido dela crítica como uma injeção de renovação no sonolento romance brasileiro da época. Só voltou à ficção com Doramundo, romance de um amor trágico ambientado numa cidadezinha de ferroviários na serra do Mar.


Geraldo Ferraz está preparando um livro de contos, de onde retiramos esta História de Pescador, amostra de sua prosa vigorosa e altamente original.


ILUSTRAÇÃO JAYME LEÃO



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