top of page

JOÃO GILBERTO

Perfil



João Gilberto é assim

Ele procura viver com a maior simplicidade cada momento de sua vida e de sua música — e esse é o grande segredo da revolução que causou


Por IVO CARDOZO


João Gilberto está apaixonado. E, apaixonado, ele não fica satisfeito enquanto não explorar todos os caminhos, todos os lados, trechos e gostos dessa paixão. Ele não se sentirá relaxado senão quando chegar ao total equilíbrio, à relação absolutamente harmoniosa, perfeita com a paixão. Então, quando já tiver dado a ela e dela obtido tudo o que for possível, poderá até mesmo abandoná-la. E restará, de quando em quando, o prazer do reencontro, da revivescência dos momentos de procura e de descoberta...


Sua paixão atual é Bastidores, a música de Chico Buarque de Hollanda. João, seu violão e Bastidores estão trancados, há meses, no apartamento duplex de cobertura em que ele mora, num apart-hotel do Leblon, no Rio. Um processo artesanal de criação que pode durar seis meses, ou mais, e que tem a ver com a personalidade de João, um homem que se coloca inteiro em tudo o que faz, e a qualquer momento de sua vida. Que sabe exatamente do que gosta e faz tudo para curtir cada um dos seus gostos.


— Escuta o grilo, que bonito! — João interrompeu a cantoria dos amigos, silenciou o violão e fez com que todos o acompanhassem, deixando perplexos os outros fregueses do bar Líder, em Juazeiro, Bahia. E lá fora, naquela noite do fim da década de 40, puderam todos ouvir o grilo que só ele percebera, e assistir ao improvável dueto, em que João respondia ao grilo, dedilhando o violão, e silenciava quando o bichinho voltava a trilar... Os amigos de Juazeiro não se lembram quem — se João, se o grilo — foi o último a tocar, mas quem o viu, naqueles minutos emocionados, esquadrinhando o violão, balançando a cabeça, procurando a melhor harmonia, a perfeição musical entre o som que produzia e o que vinha da natureza, não teve dúvida: João estava, naquele momento, apaixonado pelo grilo.


— Ouve que beleza, como está bom esse som! — diz ele, muitas vezes, chamando a atenção de um amigo para o som do motor de seu Voyage, nos longos passeios quase diários, à noite, do Leblon até a longínqua praia de Guaratiba. E o amigo — que pode ser sua ex-mulher Heloísa Buarque de Hollanda, a Miúcha, ou o empresário musical Otávio Castilho, o Otávio Terceiro, ou ainda o compositor João Donato, ou o advogado Krikor Tcherkesian, ou o gerente de elenco da gravadora Ariola, Adail Lessa, únicas pessoas com quem ele convive atualmente — tenta o impossível: acompanhar os acordes que o privilegiadíssimo ouvido de João capta, no silêncio da noite, para combiná-los ao ruído do motor do carro.


— Ah, meu Deus, agora não tá bom não! — lamenta, de repente, João, se o som do carro o desagrada, ou se a buzina de outro carro interrompe a melodia que ele supõe. E o faz com a mesma irritação que o levou, aos sete anos de idade, a interromper uma missa de domingo em Juazeiro. Ao lado da mãe, envolvido pelo respeito e a reverência que o momento impunha, a massa de vozes do coro mal permitia que se ouvisse o acompanhamento do harmônio. Mas de repente Joãozinho não se conteve e falou em voz alta, para a organista:


— Ô dona Emilinha, a senhora está errando uma nota!


E estava mesmo.


Em seu show do ano passado, no Teatro Municipal de São Paulo, ele interrompeu, na metade, a música Linda Flor, em que acompanhava Bebel, sua filha de 15 anos com Miúcha, por causa do sistema de som do Teatro:


— Não dá, desculpem, mas assim não dá. — E passou para outra música.


Tom Jobim conta que, anos atrás, João ia cantar numa boate e exigiu que todos os aparelhos de ar condicionado fossem desligados. Certos de que João não ia perceber, os homens deixaram ligado apenas um aparelho, bem longe dele, atrás de uma cortina. Mas, na hora em que ele ia começar a cantar, João parou, franziu a testa e decretou:


— Ou desligam esse ar condicionado aí ou eu não canto.


Sua cisma contra certos sons é uma das razões por que nunca sai à rua: João se zanga por não gostar da voz de certas pessoas, ou de barulhos como o de riscar fósforos. Um dia ficou bravo com Otávio Terceiro porque este tentou acender um fósforo por duas vezes:


— Puxa — reclamou João —, mas você hoje está insuportável!


Uma hipersensibilidade, que se estende a toda e qualquer cena de violência, mesmo às dos filmes que ele adora ver na televisão (ao cinema, nunca vai). Outro dia, conversava com Adail Lessa pelo telefone (outro de seus hábitos preferidos), enquanto viam na TV o nacional Iracema. Ele chegou a elogiar o filme, achando-o "muito bonito, interessante". Súbito, largou o amigo falando sozinho e foi desligar a TV, chocado com uma cena em que um personagem espeta um caranguejo com uma lança:


— Lessinha, desligue aí também, que essa coisa está muito ruim. Que maldade, matar o bichinho, que triste!


Ver filmes na TV e passear de carro até Guaratiba são hoje as formas prediletas de lazer de João Gilberto. Mas, há algum tempo atrás, seu programa preferido era jogar pingue-pongue. Otávio Terceiro conta que ele ficava dias inteiros jogando, enquanto os parceiros se sucediam, vencidos pelo cansaço.


— E ele não dava uma cortada. Só casquinha, aquela jogada em que a bola bate na pontinha da mesa e não dá para rebater. Se alguém cortava, ele condenava o adversário: "Mas olha, que mau caráter... Querendo ganhar o jogo assim!"


Mas da mesma forma como esgota as possibilidades de relação com uma música, e a abandona, João deixou de lado o pingue-pongue. E hoje se esmera em ser um grande motorista, na sua maneira toda especial de dirigir e segundo uma visão toda pessoal do que seja isso. Miúcha, sua amiga mais íntima (é a única que tem permissão para fumar no apartamento de João, e com quem ele fala, indefectivamente, duas vezes por dia ao telefone) conta que, além de dirigir "pelo som", analisando todo o tempo o barulho do motor, ele costuma passar vários sinais vermelhos e depois parar num verde. Tem ainda a mania das curvas perfeitas, acompanhando com perícia o desenho das calçadas. Os passeios começam todos depois da meia-noite. Há sempre uma parada na Barra da Tijuca, para tomar água de côco. Em Pedra de Guaratiba, João gosta de ir comer doces num armazém cujo dono já ficou seu amigo, e que, com prazer, lhe abre as portas na madrugada.


O som de um motor de carro, um grilo na mata, as vozes das pessoas: para João, tudo é música

Segundo João Donato, nesses passeios João Gilberto se sente muito feliz, batendo papo em meio ao silêncio da natureza, "junto da terra, do mato, dos pássaros. Ele gosta de ver o sol nascer e a vida passando, e ele tendo ao lado alguém com quem conversar".


A conversa é sobre tudo: música, natureza, Bahia, amigos, vida. E morte. "A gente está sempre falando da morte", conta Donato, "pois sempre morre um conhecido. João Gilberto, embora sendo muito místico, não crê que a morte é o fim de tudo (ele e Donato crêem que, morrendo, vão chegar no céu e encontrar os amigos, na maior festa), nesses momentos fica triste.


Como ficou triste em Juazeiro, em novembro de 1980, quando sua mãe, dona Patu (Martinha do Prado Pereira de Oliveira), morreu. No dia seguinte, chamou o primo Robélio e outros amigos e disse:


— Vamos ali, até Carnaíba.


Em Carnaíba, um pequeno distrito de Juazeiro, João subiu numa colina. Todos foram atrás. Sentou-se no chão, lá no alto, e ficou falando e falando, da natureza, dos pássaros que sobrevoavam a colina, das árvores e dos bichos. Então pegou o violão, foi até a frente de uma capelinha e, durante um longo tempo, tocou e cantou.


Num mês de junho, há 51 anos, dona Patu, segunda mulher de Joviniano Domingos de Oliveira, dono de barcaças que subiam e desciam o rio São Francisco (Juazeiro fica de um lado do rio; do outro é Petrolina, Pernambuco) deu à luz o garoto a quem resolveram dar o bonito e sonoro nome de João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira.


Tom Jobim costuma dizer que João já nasceu com o gene musical da família, e é verdade. Seu Joviniano (ele também já morreu, mas os sete irmãos — quatro homens e três mulheres —, cinco dos quais do segundo casamento do pai, estão vivos), segundo se conta, era um excelente clarinetista na banda de Juazeiro, a cujos ensaios João nunca deixou de assistir. Além disso, o garoto vivia viajando nas barcaças com o pai, só para ouvir os remadores cantando, o tempo todo, as músicas regionais.


Interessadíssimo em música, ele não tardou a ganhar um violão e, aos 14 anos, sua mãe lhe trouxe o método de aprendizado de Américo Jacobino, o Canhoto. Ligado em música brasileira e fã ardoroso de Orlando Silva (muitas de cujas gravações, como Aos Pés da Santa Cruz..., ele vivia a recriar), João adorou. Estudando em Aracaju, depois em Senhor do Bonfim e, finalmente, em Salvador, ele passava invariavelmente as férias de fim e de meio de ano em Juazeiro. E logo seu violão era muito popular na cidade. Seu irmão Ederval (hoje gerente do Banco do Nordeste, em Salvador) conta que juntava gente, todas as noites, em frente à casa da família, na praça da Bandeira, para ouvir o violão de João: "Cada música que ele terminava de tocar era uma grande salva de palmas que se ouvia das famílias vizinhas, que vinham todas para a calçada".


E foi ali mesmo na praça da Bandeira o primeiro show de João. O compositor Luís Galvão, ex-integrante dos "Novos Baianos" (também filhos de Juazeiro) e hoje candidato a deputado federal pelo PMDB da Bahia, assistiu ao show:


— João tinha uns 17 anos e cantava alto e solto, como todo mundo na época. Mas já era preocupadíssimo com o som. Lá de cima, com o microfone ligado, ele perguntava ao primo Dewilson: "Me diga aí se tá bom, primo. Tá bom?"


Por um período curto, ele veio então pela primeira vez ao Rio. Chegou com uma malinha cheirando a alfazema, toda arrumadinha, roupa bem passada. Mas, conforme contou a Tom Jobim mais tarde, ficou com medo de se aventurar na noite do Rio sozinho. Saiu algumas vezes, mas achou "a barra muito pesada" e voltou depressa para a Bahia.


Em Salvador, passou a cantar regularmente na Rádio Sociedade. Algum tempo depois, numa dessas apresentações, Toninho Botelho, também baiano e líder do conjunto "Garotos da Lua", ouviu-o, gostou e convidou-o para substituir o crooner do conjunto, Jonas Silva, que estava deixando o grupo. Foi a segunda descida de João ao Rio. Segunda e decisiva.


João Donato, como pianista e arranjador, convivia muito com os Garotos da Lua, que eram fascinados por seu jeito simples e meio maluco de encarar a vida. Um dia eles lhe disseram que tinha chegado da Bahia um sujeito cuja cabeça funcionava de um jeito igualzinho à dele.


— Fui lá conferir — diz Donato — e foi um verdadeiro encontro. Ficamos uns cinco minutos nos olhando, sem dizer nada. Afinal dissemos: "É mesmo!"


Logo João Gilberto pediria para sair dos Garotos da Lua. Segundo uma versão, ele não conseguia chegar no horário aos ensaios. Segundo outras, o pessoal da Tupi, rádio em que o conjunto se apresentava, achava sua voz "muito pequena".


Isso foi em 1949, quando João tinha 18 anos. Ele ficou cantando em boates. Em 1953, Marisa gravou, na RCA, uma composição sua e de Russo do Pandeiro, chamada Você Esteve com Meu Bem? Logo em seguida, no mesmo ano, João gravou em 78 rotações, pela Copacabana, com músicas de compositores desconhecidos: Quando Ela Sai e Meia Luz.



O disco não fez sucesso, mas a essa altura ele já era bastante conhecido nos meios musicais. Estava sempre cantando na boate Plaza, em Copacabana, ponto de encontro de artistas, e, dentre estes, os mais interessados em aperfeiçoamentos técnicos, novas harmonizações (Johnny Alf e João Donato, por exemplo) adoravam ouvir sua maneira suave de cantar e sua batida de samba diferente. Na época, imperavam o bolero e o samba-canção cantados de maneira dramática e a alto volume. Por isso, os mais sofisticados voltavam-se para as novas harmonias do cool-jazz e do be-bop americanos. João Gilberto, que, na sua procura da harmonia e da perfeição, reelaborou genialmente as influências musicais que sofreu — das cantigas dos remadores do São Francisco às canções de Vicente Celestino, aos sambas de Orlando Silva e aos acordes dissonantes jazzísticos — era a alternativa perfeita para os gêneros e modas estrangeiras vigentes. Contratado para acompanhar, como violinista, os cantores que gravavam na CBS, os acordes que utilizava e a batida com acentuação dos chamados tempos fracos começaram a marcar essas gravações. Em abril, de 1958, por exemplo, ao gravar seu LP Canção do Amor Demais, Elisete Cardoso teve muita dificuldade para cantar Chega de Saudade e Outra Vez, por causa da batida de João, à qual não estava acostumada. Ela brigou muito e só foi convencida a continuar a gravar pela insistência de Tom Jobim.


Sem a mudança que João causou, Nara, Chico, Caetano e Gil não estariam cantando hoje

Tom, que fazia também muitos arranjos para a Odeon, na época, achava João um gênio e tentava conseguir que ele gravasse um disco lá. Mas todo mundo achava que João era "excessivamente moderno", conta Tom.


Foi Dorival Caymmi que o levou a Aloísio de Oliveira e André Midani, então diretores Artístico e de Promoção da Odeon, apresentando-o como "um conterrâneo muito bom", que não podia deixar de ser ouvido. E dessas conversas, no apartamento de Aloísio na rua Toneleiros, em Copacabana — Midani e ele bebericando cuba-libre, e João muito tímido e sem beber nada (nunca bebeu nem fumou) — saíram seus dois 78 rotações na Odeon, gravados em 1958. No primeiro, Chega de Saudade, de Tom e Vinicius e Bim-Bom, de João. No segundo, Desafinado, de Tom e Newton Mendonça, e Obalalá, de João. Os dois venderam tão bem que foram seguidos, em 1959 e 60, de dois LPs que o consagraram nacionalmente: Chega de Saudade e O Amor, o Sorriso e a Flor.


O impacto e a revolução que João Gilberto provocou na música brasileira e na maneira de cantar o samba talvez só possa ser avaliado por quem viveu as duas épocas — antes e depois de João.



Antes de João, seria impensável ouvir Nara Leão, Caetano Velloso, Gilberto Gil, Chico Buarque — e o próprio Roberto Carlos, também um cantor de voz pequena e que começou sua carreira imitando João. Chico Buarque, em diversas entrevistas, conta que começou a compor e a cantar sob total inspiração de João Gilberto: ele passava horas ouvindo e tentando reproduzir a batida, os acordes e a maneira de cantar de João Gilberto. Para se ter uma idéia de como as coisas mudaram, vale a pena pegar as duas gravações de Chega de Saudade de 1958 — a de Elisete Cardoso e a de João Gilberto e ouvi-las. São como um marco da passagem da antiga para a nova música brasileira.


Com o nome de "bossa-nova" — que João Gilberto abomina até hoje; ele diz que toca e canta samba e ponto final —, a música de João ganhou o mundo a partir de 1962, quando o Itamaraty organizou, no Carnegie Hall, em Nova York, o célebre concerto com músicos brasileiros. Os críticos e músicos americanos ficaram fascinados — e ele próprio percebeu que aquela chance não podia ser perdida. Ainda assim, só se decidiu a ir morar nos EUA quando, de volta ao Brasil, teve uma conversa com o escritor Jorge Amado. Este estava seguro de que João, morando nos EUA, não só não perderia suas raízes brasileiras (diga-se de passagem que até hoje ele não fala inglês, nem nenhuma outra língua senão o português), como levaria a influência brasileira à música internacional.


Cumpriu-se a profecia de Jorge Amado. O primeiro — e legendário — LP de João nos Estados Unidos, com o saxofonista Stan Getz, vendeu mais de um milhão de cópias e ganhou 6 prêmios Grammy, o mais importante da indústria fonográfica americana. Astrud, uma carioca filha de alemães com quem João se casou antes de deixar o Brasil, foi lançada como cantora nesse disco, e até hoje é chamada, nos EUA, de "The Girl from Ipanema" (ela e o baterista João Marcelo, seu filho de 21 anos com João Gilberto, continuam morando lá).


O mesmo sucesso ocorreu com seus discos posteriores — certa vez, durante 28 semanas, João permaneceu em primeiro lugar entre as gravações mais tocadas nos Estados Unidos, deixando em segundo nada menos que os Beatles. Suas turnês pela Europa e Japão também marcaram época e lhe abriram novos mercados internacionais.


Mas nada disso mudou a maneira de ser de João Gilberto. Ele continuou sempre — como continua agora —, a sua busca de harmonia, de simplicidade e de perfeição nos sons e na vida, seja em Nova York, no México — para onde ele foi em 1970, com sua então mulher Miúcha, assistir à Copa de 70; não viu um jogo e ficou morando lá três anos, só porque estava achando bom — ou no Brasil — onde está morando, também "provisoriamente", há três anos. Por isso mesmo, sua preferência por morar em hotéis ou em flat-services, de onde pode mudar-se, sem maiores atropelos, quando quiser — pois João só fica onde se sente bem, só faz o que quer fazer, e do jeito que quer.


E quase sempre quer ficar em casa, com seu violão e sua TV. Tomando muito chá e café, que ele mesmo prepara e serve aos amigos. Faz ioga ("A música e a ioga são as duas formas de conversar com Deus", ele costuma dizer) e exercícios respiratórios, receitados por um foniatra. Quando lhe dá na telha, põe-se a sapatear os passos que aprendeu com o coreógrafo Nick Castle em Hollywood, onde foi fazer um show e ficaram se conhecendo. Assim como o pingue-pongue e a paixão atual por dirigir o carro, já teve outras — como o cinema em super 8: depois de "atuar" num filminho feito por Glauber Rocha, comprou três câmeras e ficou filmando furiosamente em Nova York, temas como "uma folha de jornal voando do 25.° andar sobre o Central Park". Esgotou a vontade e abandonou a mania.


Faz questão de vestir-se bem, e segundo a última moda, embora sempre com roupas clássicas — Pierre Cardin e Yves Saint-Laurent, geralmente, e outras, compradas na Brook Brothers, uma das lojas mais conservadoras de Nova York. Praticamente só sai de terno e gravata — e nem sequer atende a campainha, mesmo para os amigos mais chegados, se ainda estiver de pijama.


Nunca toma sol, nem mesmo na piscina de seu apartamento (fez apenas uma tentativa, mas ficou todo empelotado), e foi apenas duas vezes à praia, com seu amigo Otávio Terceiro: uma na Itália, outra na Barra da Tijuca. E não gostou.


Não costuma cozinhar mas também não sai para comer: encomenda as refeições, quase todos os dias, ao maitre Garrincha, da churrascaria Plataforma, do Leblon — picanha, steak ao sal grosso ou T-Bone steak mal passado, com salada de agrião e arroz, água mineral ou Coca-Cola. E quem as traz é sempre o mesmo mensageiro do flat-service (ele também faz questão de que seja sempre a mesma camareira a arrumar o apartamento).


Não se preocupa com dinheiro, e ganha muito, quando grava ou faz shows: 30 mil dólares pelo especial da Globo no ano passado (até então, o maior cachê da televisão brasileira) e 60 mil dólares pelo disco Brasil, fora os três shows no Municipal de São Paulo, que "renderam bastante", segundo seu empresário e amigo, o advogado Krikor, que se recusa a dizer quanto. Este mês de agosto, ele fará dois shows, nos dias 20 e 21, no Teatro Castro Alves, em Salvador. Mas são os amigos que trabalham com ele que cuidam das contas e negociações, no Brasil ou no exterior (só a do telefone costuma passar de Cr$ 300 mil por mês, pois João conversa com quem tem vontade, a qualquer momento e a qualquer distância nacional ou internacional).


Até os namoros de João são a domicílio. E são muitas namoradas, no Rio e em Nova York

E quando não quer, não conversa. Enquanto trabalhamos neste perfil dele, por exemplo, sua preocupação central era a Copa do Mundo. Conversei três vezes com ele, mas apenas por telefone. Só me atendeu depois de demoradas e complicadas negociações feitas através de Miúcha. Mas as conversas nunca puderam ir além da Copa — ele me pedindo desculpas por não poder desligar a cabeça da atuação do Brasil na Espanha — e de um princípio de papo sobre música brasileira, no qual ele fazia questão de não dar opinião nenhuma e de conhecer as minhas. Se eu insistia em que ele falasse, apenas respondia:


— Estou te escutando, Ivo, estou te escutando.


Até seus namoros são a domicílio. Ele liga para a garota — segundo seus amigos, são muitas, mas estão todos proibidos de citar o nome de uma sequer —, conversa horas com ela ao telefone, e a convida para visitá-lo. Nunca sai com nenhuma.


Mas elas entendem. Ou não, pois para amar João Gilberto é bom não se preocupar em entendê-lo.


Uma cena que se repete, porém, desde a sua juventude, talvez nos ajude a compreender João.


Toda vez que ele vai a Juazeiro, algumas de suas companhias preferidas são os doidos da cidade. Dona Patu tinha o hábito de dar comida e conversar com os doidos — uma espécie de instituição em algumas cidades do interior. Maria Pezinho, Bico Doce, Seu Zé, Cheira Gasolina, Galo Choco e Firmino eram alguns que logo ficaram amigos de João e que, segundo seu irmão Ederval, "iam todos esperá-lo na estação de Juazeiro quando ele chegava na cidade para as férias."


Ederval conta que João dá a maior atenção aos doidos, conversa horas e lhes dá presentes.


E não há mesmo por que eles não se entenderem, já que toda grande arte, como a de João Gilberto, inovadora, revolucionária, surpreendente, não pode lidar com os padrões convencionais. George Bernard Shaw dizia que "o homem sensato adapta-se ao mundo; o insensato tenta adaptar o mundo a ele. Logo, todo o progresso se deve aos homens insensatos". Na genial insensatez de João Gilberto está o seu poder de criação. Coisa de homens superiores, que podem conversar com os loucos.



ILUSTRAÇÃO ELIFAS ANDREATO



56 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page