top of page

O GRANDE HEFNER

Reportagem


Hefner inspeciona o seu pequeno exército de coelhinhas em 1960: atitude liberal era altamente rebelde para a época

O homem que mudou a América

Ativista dos direitos civis na década de 1960, porta-voz da libertação sexual, filantropo e fundador de um dos maiores impérios editoriais do mundo, conheça o legado de Hugh Hefner muito além de Marilyn Monroe


Por JOÃO PEDRO JORGE


"De uma maneira ou de outra, todos os pretos sofrem preconceito", bradou o trompetista Miles Davis, um dos maiores nomes da história do jaz, na primeira Entrevista da revista PLAYBOY, publicada em setembro de 1962. Hoje a frase parece banal, mas, na década de 1960, com os Estados Unidos ainda vivendo a realidade da segregação racial, ela era uma afirmação política. E de muito peso.


A ENTREVISTA DE MILES DAVIS foi o culminar de um processo que vinha borbulhando na cabeça de Hugh Hefner desde que ele juntou uns trocados, comprou antigas fotos que a atriz Marilyn Monroe fez para um calendário erótico e, praticamente sozinho, botou de pé a revista PLAYBOY, em novembro de 1953. Embora a primeira edição afirmasse categoricamente que "questões de estado estarão fora da nossa jurisdição", o ativismo político do playboy original permeou a publicação desde o seu berro inicial. Afinal, fundar e gerir uma revista masculina em 1953 era uma afirmação política. E de muito peso.


Hugh M. Hefner nasceu em Chicago, Illinois, em 1926, e cresceu em um país dividido. A sociedade puritana dos Estados Unidos do fim do século 19 dava lugar, lentamente, a outra, dinâmica e pautada pelo consumo (e pelo hedonismo). A música de influência negra fazia sucesso, mas os negros eram impedidos, em todos os estados do sul, de usarem os mesmos banheiros, bebedouros e restaurantes dos brancos (e o racismo, embora não institucionalizado, também grassava ao norte). Esse antagonismo era ainda mais notável nos grandes centros. A Chicago onde Hefner nasceu e passou sua adolescência foi uma das primeiras cidades do norte dos Estados Unidos em que o jazz se impregnou vindo de Nova Orleans, e o jovem Hefner sorveu cada gota da música, da dança e das expressões usadas pelos negros na época — uma atitude que era um acinte para os pais em geral, mas que o tornou um dos garotos mais populares em sua universidade.


FUNDAR E GERIR UMA REVISTA MASCULINA NA DÉCADA DE 50 ERA UMA AFIRMAÇÃO POLÍTICA DE PESO

Foi depois de uma reunião de turma que Hefner, já adulto, percebeu que sua vida estava numa encruzilhada. Infeliz no emprego — era então redator publicitário na Esquire — e com o mundo que o rodeava. Era hora de mudar tudo.


PLAYBOY foi um sucesso desde o primeiro número porque seu fundador, de forma inteligente, soube canalizar os anseios de uma geração por liberdade em todas as frentes. Ele, obviamente, não foi o primeiro. Cinco anos antes da edição número 1 de PLAYBOY, em 1948, o sexólogo Alfred Kinsey lançou Sexual Behavior in The Human Male, pedra fundamental da revolução sexual. Hefner ficou fascinado pelo livro (que seria completado em 1953 por Sexual Behavior of The Human Female). Quando a ideia de PLAYBOY se consolidou, Hefner decidiu que os bastiões da moralidade sexual seriam seu primeiro alvo. Por isso transformou a publicação em panfleto. A sexualidade — dizia Kinsey e reverberava Hefner — era muito mais ampla, geral e irrestrita do que que os americanos gostavam de admitir.


Hefner, suas Coelhinhas e uma de suas namoradas (Barbi Benton): atitude liberal do fundador de PLAYBOY ajudou na libertação sexual feminina

Embora tenha causado furor nas feministas, PLAYBOY teve papel fundamental na libertação sexual. Pela primeira vez uma publicação masculina de grande circulação (ao longo da década de 1950, a PLAYBOY americana saltou de 50 mil cópias para 1 milhão e, no final da década seguinte, esse número se multiplicaria por cinco) falava de sexo abertamente. As revistas para os homens de então davam muito mais espaço para armas, caçadas, pescarias do que para as garotas. Hefner falava de sexo, e não apenas em como conseguir prazer, mas também em proporcionar. Ele foi o primeiro a falar sobre sexo oral e advogar contra leis antissodomia que vigoravam (e ainda vigoram) em vários estados americanos. Nem mesmo o tabu da homossexualidade, talvez o maior da época, passou despercebido por seu radar.


O casamento do negro Sammy Davis Jr. com a branca May Britt causou reboliço nos Estados Unidos. Hugh Hefner se posicionou publicamente em favor do casal

EM 1955, PLAYBOY PUBLICOU The Croocked Man, um conto de ficção científica de Charles Beaumont (um dos principais roteiristas do popular programa Além da Imaginação) ambientado num universo em que a homossexualidade era norma e os heterossexuais eram perseguidos. O conto causou furor entre os leitores conservadores de PLAYBOY, e a revista recebeu uma enxurrada de críticas. Hefner, magnânimo, respondeu: "Se é um absurdo heterossexuais serem perseguidos num mundo gay, também é um absurdo gays serem perseguidos num mundo heterossexual?" Bingo! Quatro anos depois, em 1959, o fundador de PLAYBOY estreou seu programa de TV, o PLAYBOY's Penthouse, e de novo causou choque nos Estados Unidos ao mostrar casais negros e brancos dividindo o mesmo espaço na pista de dança (além de dar amplo espaço a estrelas negras como Nat "King" Cole e Ella Fitzgerald). No começo da década de 60, depois de apoiar publicamente o casamento do cantor negro Sammy Davis Jr. com a branca May Brite (em uma época em que casamentos inter-raciais ainda eram proibidos em vários estados americanos), Hugh Hefner lutou para que os PLAYBOY Clubs dos estados do sul terminassem suas políticas discriminatórias. Em um editorial, escreveu que "PLAYBOY é uma instituição liberal que está sendo forçada a cumprir legislações regionais".


PODIA FICAR SÓ NO DISCURSO, mas em poucos meses os clubes de Nova Orleans e Miami foram comprados de seus antigos proprietários pela sede da revista em Chicago e integrados. A atitude gerou elogios dentro e fora da comunidade negra, e rendeu a Hefner prêmios de associações pelos direitos civis. "Eu aceito todas as pessoas", diria ele depois. "Para mim não importa raça, cor, nacionalidade ou credo. Contanto que elas sejam competentes." Mas o nefasto episódio mostrou para o diretor de PLAYBOY que chegara a hora de enfrentar, de peito aberto, a questão racial.


Em 1962, PLAYBOY já vendia 5 milhões de cópias e era uma das revistas mais importantes da América. Os Estados Unidos também tinham mudado, e toda uma geração propagava o amor livre e rumava para São Francisco com flores nos cabelos. Hefner tinha vencido uma batalha, mas a liberdade com que sonhava ainda estava longe de se tornar realidade. Assim nasceram duas frentes de batalha: o The PLAYBOY Philosophy, uma série de editoriais em que defendeu sua ideologia sobre sexo, política, aborto, drogas e diversos outros temas, e a Entrevista de PLAYBOY. Questões de estado entravam definitivamente na nossa jurisdição.


Líderes espirituais, atores, ativistas e políticos. Todos que tivessem algo para dizer e que fossem relevantes seriam perfilados. Miles Davis era uma escolha perfeita para começar: famoso, inteligente, respeitado e engajado. Mas PLAYBOY não ficaria apenas nas franjas do movimento pelos direitos civis americanos. Em maio de 1963, Malcolm X, um dos principais líderes da causa, foi a Entrevista do mês. Nela, ele afirmou: "Não sei quando o Armagedom chegará, mas sei que está próximo o fim dos brancos." Era (e ainda é) incendiário. Em janeiro de 1965, o outro grande líder dos negros americanos foi o entrevistado: o reverendo Martin Luther King Jr., que perguntou: "Por que os brancos não conseguem entender que os negros estão cansados de ter seus direitos dados em prestações?"

Em meio à luta pelos direitos civis, Jennifer Jackson se tornou a primeira Playmate negra de PLAYBOY, em 1965: pedido pessoal de Hugh Hefner

Todo esse ativismo causou problemas. No mesmo 1963, Hefner foi preso por "publicar pornografia", um caso no mínimo estranho, já que PLAYBOY comemorava então seu décimo aniversário. Se a intenção era amedrontá-lo, não funcionou. Em 1965, Jennifer Jackson se tornou a primeira Playmate negra da história da revista — um pedido pessoal de Hefner, que queria dar mais diversidade às páginas de sua publicação. Melhor, a perseguição contra seu negócio abriu o apetite de Hefner para outras questões. Nos anos seguintes, o diretor de PLAYBOY colocou seu prestígio e as vendagens colossais de sua revista (que atingiram a marca de 7 milhões ao final dos anos 1960) à disposição das causas que ele achava justas. Foi nessa toada que artigos como Resolving our Vietmam Predictment, publicado em 1967, e The Amaricanization of Vietnam, publicado em 1970, colocaram o dedo na ferida de um dos conflitos mais complexos da Guerra Fria.


A PERSEGUIÇÃO QUE SOFREU SÓ ABRIU O APETITE DE HEFNER PARA MAIS TEMAS POLÊMICOS

Alguns colaboradores de PLAYBOY reunidos para uma convenção, em 1971: time político de peso contava com nomes como Arthur C. Clark, Gay Talese e Alex Haley

Um dos momentos mais curiosos dessa cruzada aconteceu em abril de 1966, quando PLAYBOY abriu espaço para um dos "heróis" anti-integração, George Lincoln Rockwell, "führer" do Partido Nazista Americano. Parecia um contrasenso, mas na provocadora Entrevista, Rockwell passa 12 páginas sendo achincalhado por Alex Haley, jornalista negro responsável pelas entrevistas com Miles Davis e Malcolm X. Mas nem mesmo a conquista de maior liberdade sexual, a integração racial da América e o fim da Guerra do Vietnã fizeram Hefner sossegar. Com o império PLAYBOY consolidado, Hugh colocou suas armas à disposição de outras batalhas, principalmente aquelas ligadas à liberdade de expressão nos Estados Unidos, causa que ele impulsionou coma criação do Prêmio Hugh Hefner da Primeira Emenda, em 1979. Nesse período também se dedicou à filantropia. O famoso letreiro de Hollywood, na Califórnia, deve sua sobrevivência ao esforço de Hefner, que organizou bailes beneficentes e até "comprou" a letra "y" por 26 mil dólares, quando o famoso símbolo do cinema americano estava decadente e às vésperas de ser demolido.


A FILOSOFIA DE HEFNER continua viva na PLAYBOY americana e em todas as suas "filhas" ao redor do mundo. Somos pela liberdade. Sempre. Uma das mais recentes (mas com certeza não a última) afirmações políticas da revista aconteceu em setembro de 2012, quando, em um editorial, Hugh Hefner defendeu o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Parece estranho vindo de uma "revista masculina". Não é. Uma corajosa posição que segue o histórico do rebelde e ativista que fundou o império midiático mais gostoso do planeta.


Nem só de política vive o homem

Entre revoluções, Hefner namorou dezenas de beldades




78 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page