top of page

ÚLTIMA ENTREGA

Ficção


Era raro o dia em que ela não ligava. Às vezes pedia só uma cartela de aspirina. Mas, na noite de sexta-feira, com o fim de semana pela frente e a farmácia fechada no domingo, era certo ela fazer um pedido... E ele estaria lá, fazendo a entrega especial


Por LUIZ ALFREDO GARCIA-ROZA


Farmácia para o Sol! — gritou o rapaz ao aparelho que chiava junto ao portão para o vigia dentro da guarita. Passado 1 minuto, o portão fez um clique forte e o entregador teve acesso a uma gaiola do tamanho de um elevador, inteiramente cercada. Outro portão se abriu à sua frente, e ele chegou à portaria do prédio. Nem o guarda que franqueou sua entrada ao pátio do edifício nem o porteiro que abriu a porta de entrada ao prédio eram visíveis. Tanto a guarita como o balcão da portaria eram protegidos por grossos vidros fumê, sendo que o contato verbal com ambos era feito por meio de interfones.


No elevador, conferiu mais uma vez o nome da moradora.


— Bom dia, dona Selma. A senhora está melhor?


— Graças às suas entregas.


— A senhora vai ver, mais uns dois ou três dias a senhora não vai estar sentindo nada.


— É disso que tenho medo.


Enquanto entregava o troco e recebia a gorjeta, pensava na frase da velha, e continuava a pensar minutos depois enquanto destrancava o cadeado da bicicleta. "Merda! Tenho que tomar cuidado."


Logo na primeira semana de trabalho o patrão tinha lhe oferecido o lugar de balconista. "Você pode ganhar bem mais do que como entregador. Tem boa figura, sabe falar bem, vai agradar os fregueses." "Obrigado, seu Lúcio, mas esse trabalho é só pra ganhar uns trocados durante as férias."


Trabalho de merda. De segunda a sexta, das 2 da tarde às 10 da noite, calor fodido, a gorjeta não passando de trocados. Tinha estabelecido o limite de dois meses, nem mais um dia. Como entregador de pizza não tinha ficado nem uma semana. Quem come pizza não tem dinheiro, é garotada. O negócio é remédio, coisa de velho.


No primeiro mês já dispunha de uma pequena lista de fregueses-alvo. Organizara a lista levando em conta o número de apartamentos por andar (no máximo dois), idade e sexo do morador. Queria apenas moradoras, são mais fracas e obedecem logo ao comando. Homem, mesmo velho, é metido a machão e quer logo encarar. Apartamentos com mais de dois moradores também não interessavam. Era importante saber se tinha empregada e se ela dormia no emprego. E se tinha cachorro.


Cada noite, depois de esquentar no micro-ondas o prato que a mãe guardara, sentava-se à mesa da cozinha, recolhia dos bolsos a gorjeta do dia e pedaços de papel nos quais rabiscara anotações e, enquanto comia, avaliava os apartamentos selecionados; no quarto, antes de dormir, passava a limpo o essencial num bloco de bolso e queimava na pia os pedaços de papel com as anotações. Não se dava conta da passagem da vigília ao sono. Mulher, só nos sonhos. Nos poucos fins de semana livres faltava oportunidade e tempo para iniciar uma paquera. Queria namorar quando tivesse dinheiro para frequentar restaurantes e se hospedar em hotéis. Não estava a fim de namorar a pé e comer pedaço de pizza em balcão de lanchonete.


Escolhera a velha do 801. Morava sozinha, a empregada não dormia em casa, não tinha cachorro e sempre o recebera com simpatia. Ele nunca tinha ido além do hall de entrada do apartamento, mas o pouco que vira do interior era suficiente. Dona Selma era gente fina. Viúva de general, ouvira dizer. Nada pior do que gente grossa e burra: quando é ameaçada começa logo a gritar pelo porteiro, não escuta nada que a gente fala, fica que nem galinha correndo de um lado para o outro. Dona Selma não era velha. Ele é que achava velha qualquer uma com mais de 50. Como sua mãe. O importante era que dona Selma não parecia ser do tipo que sai gritando pelo corredor, preferia conversar.


A primeira coisa que rico faz quando é ameaçado é chamar pra conversar. Já tinha visto nego sacar um 38 no sinal e começar a gritar ordens pro rico dentro do carro, e o rico abaixar o vidro e responder: "Calma, vamos conversar". Conversar?!? Com um cano de revólver a um palmo da cabeça, e o cara quer conversar? Depois diz que o assaltante estava drogado.


A primeira coisa que rico faz quando é ameaçado é chamar pra conversar. Com um cano de revólver a um palmo da cabeça, e o cara quer conversar?

Tinha combinado com o patrão que ficaria no emprego só mais aquela semana. Até sexta. As aulas iam começar na segunda, disse. Na quarta e na quinta, enquanto fazia as entregas, repassava mentalmente os planos para a noite de sexta. Evitava pensar num depois, toda a atenção estava concentrada na noite da última entrega. Caso a velha não fizesse nenhum pedido, ele inventaria uma entrega qualquer e diria que tinha sido engano do caixa. Mas era raro o dia em que ela não ligava. Às vezes pedia só uma cartela de aspirina e nem sempre pedia remédios. Mas, na noite de sexta-feira, com o fim de semana pela frente e a farmácia fechada no domingo, era certo ela fazer um pedido... E ele estaria lá, fazendo a entrega especial.


Na quarta à tarde ela tinha feito uma encomenda. Nada de mais; pelo tamanho do pacotinho devia ser comprimido pra dor de cabeça. Ela mesma abriu a porta. Não parecia ter nada, nem dor de cabeça, estava de bermuda e camiseta e parecia mais moça. Nunca tinha percebido que ela até que era gostosa.


— Boa tarde, dona Selma. A senhora hoje está l00%.


— Depois de uma certa idade ninguém está 100%. Conseguir se manter nos 70% já é uma grande coisa...


— Pois então pode ter certeza de que a senhora está.


— Ora, veja! E eu nem sequer te dou grandes gorjetas.


— Sempre foram boas, dona Selma. — Entregou o troco, agradeceu a gorjeta recebida e...


— Até sexta.


— Sexta? O que tem sexta?


— Nada... Nada... É que a senhora sempre faz algum pedido na sexta.


— Então, quem sabe, até sexta.


No elevador, teve vontade de socar as paredes, mas sabia que a câmera do circuito interno de vigilância estaria registrando a cena.


"Retardado! Cretino! É a segunda cagada que você faz. Por que não conta logo pra ela o que está querendo fazer na sexta?!? Imbecil! Estúpido!"


O elevador chegou ao térreo, e ele ainda estava se maldizendo.


— O que aconteceu, Paquito? Não ganhou gorjeta? — perguntou o porteiro, que naquela tarde estava do lado de fora da cabine.


— Paquito é a puta que pariu! Meu nome é Antônio.


— Calma, Paquito. Vê lá como se comporta dentro deste prédio...


— Desculpe, estou nervoso.


— Melhor então descansar.


— Vou fazer isso. Boa tarde.


— Boa tarde, menino.


"Terceira cagada. Você tem que ser simpático com o porteiro. É ele quem abre a portaria pra você, sua besta. Dois dias, faltam só dois dias, e numa única entrega fez duas cagadas... E acha que é inteligente!"


A quinta-feira transcorreu lenta. Número de entregas regular, e nenhuma para o 801. Melhor assim.


Acordou cedo na sexta-feira e antes do café da manhã fez uma faxina completa no quarto — que na verdade era um quarto dividido ao meio por um tabique de madeira, o que fazia dele um meio-quarto no qual cabiam uma cama de solteiro, um gaveteiro mínimo, uma cadeira e uma arara para as roupas. Não tinha muito espaço para faxinar, mas não queria deixar nenhum sinal que o incriminasse, nenhum indício de para onde iria. Terminada a faxina, que consistiu numa busca de pedaços de papel com anotações, o que não levou mais de 5 minutos, guardou suas coisas na mochila e fez uma pausa para o café. Retornou ao quarto para a tarefa mais importante da manhã. Dias antes, tinha ido a uma loja de ferragens para escolher a faca. Queria uma faca que não chamasse atenção nem no momento da compra nem no caso de ser pego com ela ao voltar para casa. Escolheu uma faca de cozinha, de bom tamanho, própria para cortar carne, encontrável em toda cozinha doméstica. Comprou também fita adesiva larga e resistente. A fita adesiva ficara guardada no bolso de um casaco, a faca ele colocara debaixo do colchão. Sabia que sua mãe, ao arrumar o quarto, quando muito levantaria a beirada do colchão para prender o lençol, e não para procurar objetos escondidos. A faca estava bem embrulhada e na mesma posição em que ele tinha colocado. Retirou o papel, passou o dedo pela lâmina para sentir o fio e experimentou diferentes empunhaduras. Ainda de cueca, prendeu a faca na perna direita com três voltas de fita adesiva, no meio, perto da ponta e no cabo. Sacudiu várias vezes a perna para ver se ela estava bem presa e não balançava. Em seguida, vestiu sua calça cargo: era resistente, larga e com bolsos externos na perna que escondiam perfeitamente o volume da faca. Satisfeito com o resultado, repassou cada etapa da ação noturna: primeiro, mudar o tom de voz, nada de voz de bom moço, obediente e submisso, assim que a velha abrir a porta assumir o comando; segundo, não se preocupar com o visível, o importante está oculto (tinha ouvido essa frase uma vez e gostado); terceiro, o verdadeiro rico tem sempre á mão dólar ou diamante, quase sempre guardados no quarto em sacolas de pano junto com os sapatos ou nos bolsos dos casacos de viagem; quarto, esquecer os cofres no interior dos armários de roupa, são para enganar otários, só têm bijuteria de camelô.


Queria uma faca que não chamasse atenção nem no momento da compra nem no caso de ser pego ao voltar para casa. Escolheu uma faca de cozinha

Antes do meio-dia, pegou a mochila, deu tchau para a mãe e saiu. Tinha 2 horas para comprar a passagem, comer alguma coisa e pegar a bicicleta na farmácia para iniciar as entregas do dia. Podia fazer tudo isso sem grandes deslocamentos. Em lugar de ir até a rodoviária, comprou o bilhete numa agência de viagens do próprio bairro, almoçou um prato feito no botequim e foi andando até a farmácia, sentindo como se tudo já tivesse acabado. Claro que ainda tinha toda a tarde e boa parte da noite, mas a sensação era a de estar na reta final sem ninguém no seu encalce. A faca presa na perna não o incomodava.


Quando entrou na farmácia, ouviu a voz de seu Lúcio:


— Então, meu jovem, quer dizer que hoje é o seu último dia conosco?


— Falando assim parece até que eu vou morrer!


— Morrer você vai, meu filho, mas não hoje... Você é jovem e saudável, ainda vai viver muito.


Dentre as primeiras entregas da tarde havia uma para o mesmo prédio da velha: apartamento 1001, décimo andar. Até que era uma boa, uma sondagem do local à luz do dia. Já tinha feito entrega naquele apartamento. Era um casal de velhos, bem mais velhos do que dona Selma, antipáticos, não davam gorjeta nem as moedas do troco. Pelo pão-durismo, deviam ter dinheiro escondido em casa. E tinham um cachorrinho que parecia um rato, que começava a latir desde que se abria a porta do elevador e depois corria pra debaixo de um móvel e continuava latindo até a pessoa ir embora. Foi exatamente o que aconteceu.


— Boa tarde, senhor. Entrega da farmácia.


— Da próxima vez, suba pelo elevador de serviço — disse o velho, enquanto o cachorro latia e gania.


— Os moradores preferem que eu suba pelo elevador da frente.


— Não importa o que os moradores pensam. As entregas são feitas pelo elevador de serviço.


Conferiu o troco duas vezes e fechou a porta sem dizer mais nada e sem dar gorjeta.


— Velho fedorento! Cada vez que peida deve cagar e mijar nas calças — falou baixo.


A porta se abriu novamente:


— Você disse alguma coisa?


— Disse que para o senhor a entrega vai ser feita pelos fundos. — E entrou no elevador, que continuava parado no andar.


No elevador, sorriu para a câmera e, ao sair, apenas movendo os lábios, disse "Até logo mais à noite", acenando para o vidro fumê.


O movimento de entregas durante a tarde foi intenso, como costumava ser às sextas-feiras, mas o que o inquietou foi quando deu 8 horas. Até aquele momento dona Selma não tinha telefonado para a farmácia. Claro que, se ela não fizesse nenhum pedido até as 9, 9 e meia, havia a possibilidade de ele levar qualquer um daqueles embrulhos para ela e dizer que a farmácia se enganara no endereço. Mas... E se ela tivesse viajado? Se tivesse convidados para o jantar? Se estivesse com hóspedes? Não havia como adiar nem como voltar atrás. Acima de tudo, já estava com a cabeça pronta, os detalhes pensados várias vezes, as palavras de ordem decoradas e ensaiadas... Impossível abortar a operação (era assim que falavam os militares).


Tinha pedalado o dia todo com a faca presa na perna com várias voltas de fita adesiva, e ela incomodava pelo tamanho e pelo peso. Felizmente estava usando uma calça bem larga.


As 9 e 15 dona Selma ligou para a farmácia. Ele estava recolhendo os embrulhos para a última entrega quando viu a moça do caixa anotar o pedido e o endereço; nem prestou atenção ao conteúdo, dispôs o embrulho de modo que fosse a última entrega a ser feita. Eram poucas, de modo que pôde entregar todas a tempo de chegar ao prédio da velha na hora que calculara.


— Farmácia para o 801 — anunciou com voz firme ao interfone quando faltavam 5 minutos para as lo.


Esperou o porteiro confirmar o pedido com a moradora. O portão fez o clique de sempre e começou a se abrir. Melhor, impossível. Parecia cena de assalto a banco em filme americano: tudo cronometrado. Dentro de 4 minutos haveria troca de porteiros, e o novo porteiro nem saberia que ele tinha subido para o 801... caso fosse interrogado pela polícia.


Subiu sozinho no elevador. Sem testemunhas. Chegando ao oitavo andar, nem precisou tocar a campainha; a porta do apartamento foi aberta assim que a luz do hall se acendeu.


— Boa noite, dona Selma. Desculpe a demora. Tive muita entrega.


— Não tem importância. Nada nesse embrulho é urgente.


— Quando ela se virou para deixar o embrulho em cima da mesa e pegar o dinheiro, ele entrou e fechou a porta.


— Para o quarto! — ordenou, mostrando a faca.


A moradora não ofereceu resistência e não se mostrou alarmada.


— Não há necessidade disso — apontou para a faca.


— Eu decido o que é necessário. Vamos andando.


No corredor, ela olhou para trás, para a faca que ele tinha na mão.


— Andando! — ordenou.


Chegando ao quarto, ela acendeu a luz e, virando-se para ele:


— Pronto, já estamos no quarto. Pode guardar a faca e tirar a roupa — disse, desabotoando a blusa.


— Tirar a roupa... — O entregador ficou olhando para ela, confuso...


— Tirar a roupa?!? — gritou, perplexo. — Acha que armei tudo isso pra trepar com uma velha?!? Era por isso que você abria a porta de short e blusa transparente? Escrota! — gritava o entregador, rosto vermelho, olhos esbugalhados, cuspindo enquanto falava e gesticulava perigosamente com a faca na mão. — Você não entendeu nada!... Achou que era filme de amor, mocinha e mocinho... Não é nada disso, porra! É filme de assalto a banco! Não tem ninguém dizendo "eu te amo". Assalto a banco: sabe o que é isso? É barra pesada, sua puta. E vem você com essa história de "pode tirar a roupa"! Tirar a roupa pra você?!? Depende de quanto tem escondido nesse armário... Quero ver o dinheiro! Todo o dinheiro! Quero ver as joias... Nada de joia de camelô, quero ver joia de verdade... Dinheiro de verdade... Dólar, muito dólar!


O suor escorria pelo rosto, a camisa estava molhada, o rosto cada vez mais vermelho e os olhos cada vez mais esbugalhados.


— Tá olhando o quê? Tá esperando eu tirar a roupa. Pega essa merda desse dinheiro, porra!


A faca cortava o ar cada vez mais próximo do rosto dela. Dona Selma recuou uns passos, sempre olhando para ele, até suas costas encostarem no armário que ladeava a cama, virou-se e abriu as duas portas do guarda-roupa. Afastou os vestidos e os casacos dependurados nos cabides, debruçou-se e pegou uma bolsa de couro guardada no fundo, verificou o conteúdo e jogou-a em cima da cama. O entregador pegou a bolsa, sacudiu e tentou abri-la. Segurava-a com uma das mãos e a faca com a outra; olhou para dona Selma, a visão turvada de suor; largou a bolsa e puxou o lençol da cama; enxugou o rosto. Quando olhou de volta, ela apontava uma arma para ele.


Com um grito louco, avançou sobre ela.


O primeiro tiro o atingiu na barriga; o seguinte, no peito.


ILUSTRAÇÃO MARCELLO QUINTANILHA


108 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

コメント


bottom of page