Ficção
Nove anos depois, furioso de paixão, ele queria também a garota. Com uma condição: os três juntos, na mesma cama
Por Dalton Trevisan
...Estou desesperada, Zezé. Amanhã o João vai embora. Por que tive pena daquela mocinha? E recolhi lá em casa? Grávida de cinco meses. Tudo eu arranjei. Um casal de velhos levou a criança. E eu, boba, deixei que a mãe ficasse.
— É bonitinha?
— Pudera, vinte anos. Cega — só pode ser feitiço —, nem desconfiei. Dos presentes de calcinha e sutiã. Sem roupa, a coitada. Até uma sombrinha azul ele comprou — mais vistosa que a minha. Bem sabe que eu e o João... Quer mulher? Lá na rua ele pode. Quer um filho de outra? Faça, que eu crio.
— Que houve com a mocinha?
— Uma noite eu vi que ele não estava na cama. Levantei e fui até o quarto dela. Peguei os dois no ato. Bem quietinhos. Ele por cima. Muito bonito, hein? Sua grande cadela.
— Que a senhora fez?
— Na hora fiquei meio boba. Só repeti: Bonito, hein? Eu bem que... Voltei chorando para o quarto.
— É uma santa, dona Maria.
— Dia seguinte, ele foi para o emprego, eu toquei a moça de casa. Achei que era demais.
— Fez muito bem.
— Esqueceu na pressa uma calcinha de flores. Está guardada até hoje. Não dizer que roubei. Também é enfermeira. Noite sim, noite não, meu plantão no hospital. Sabe o que ele tem coragem? Traz a moça para nossa casa. E passam juntos a noite.
— Como a senhora descobriu?
— Não descobri. Ele que contou. Meu chinelo sempre ao lado da cama. De volta do plantão, onde estava o chinelo? Lá na cozinha, debaixo da mesa. João, quem pôs esse chinelo aqui? Eu que peguei. Sei disso, não cabe no teu pé. Gritei com ódio: Respeite a minha cama. Faça o que quiser. No sofá. No chão. Só não suje a minha cama. Nem use o meu chinelo.
— Daí ele contou?
— Ele alugava uma casa maior. A mocinha ficava grávida. Uma família feliz os três, depois quatro. De tanta surpresa, aceitei. Uma condição: O filho é meu, registro no meu nome. E ela: Não, o filho é meu. O outro você enjeitou. Esse eu quero — é por amor. Sabe do que sou capaz? Não me responda, sua bandida. Te dou um tiro! Eu que não tenho boca para nada.
— E daí?
— Caí de joelhos diante dela: Deixe o João em paz. O que viu nele? É feio. Velho. Pobre. E a sirigaita: Eu é que sei. Desgostosa, podia aceitar a proposta. Não fosse tão soberba, ela a dona da casa? Com o sapato sujo pisava o chão branquinho. Já viu desaforo maior? Discutimos, ele bebeu e ligou a TV bem alto.
— E agora?
— João alugou um quarto para ela. Na mesma rua. E uma advogada disse que ele ganha o desquite. Só provar que não sou mulher inteira.
— ...
— Uma coisa é não poder. Outra não querer. Eu não tenho razão?
— Decerto que sim.
— Não sei de quem sinto mais pena. Se de mim ou dele. Meu sogro fosse vivo, isso não acontecia. Ele era a meu favor.
— A senhora não é...?
— Eu nasci assim. Pensei que todas como eu.
— Assim como, dona Maria?
"Se a senhora fizesse tudo o que ele..." "Eu já fiz. Até o que mulher da rua tem vergonha"
— Nove anos perdi da minha vida com esse homem. Viciado desde menino — matou a mãe de tanto beber. Roubava os elefantes de louça para vender. Sumia sem dar notícia. Dormindo em valeta.
— Como foi a lua-de-mel?
— Ele tentou tudo. Não dava certo. No começo foi delicado. Viajamos no sábado para voltar na quarta. E domingo à noite os dois em casa. O médico disse que operando eu ficava boa. E João aceitou.
— Ai, se lhe contasse, dona Maria... Do que um homem é capaz!
— Nunca sofri tanto. Me judiou demais. Com a dor eu gritava. Ele queria por força. É incansável. Todos esses anos não me deu sossego.
— Uma mártir, dona Maria.
— Ele a cachaça não bebe, enxuga. Ele bebendo, eu sofrendo. Daí queria tudo. O que é proibido. Eu, ai de mim... Se reclamasse, ele me batia. O que podia fazer?
— A senhora se habituou?
— Que é isso, menina? Ainda me surra. Mas não sou boba. Trato de escapar.
— Não sei...
— É direito o marido fazer assim?
— ... o que dizer.
— À força ele conseguiu. Mais de uma vez. Sempre contra minha vontade. Nove anos de dores e gritos. Não desejo para a pior inimiga. Falei com o sogro, ele consultou o juiz. Disse que podia anular. E quem não quis?
— A senhora?
— Foi o João. Se ele anulasse, minha vida era outra. Eu me conformava, era moça. Esse homem sempre foi louco por mim. Ele eu tirei da valeta. Você conheceu o velho? O maior bêbado da rua. E o filho era pior.
— Ele deixou o vício?
— Misturo droga na comida. Deixar não pode. Fica de rosto vermelho e inchado. Ainda mais atiçadinho. A droga, será? Depois de nove anos, tanto sofrimento, quer me largar sem nada. Entendo o seu drama. Agora que a operação não deu certo. Ontem fui ao médico. Disse que segunda vez é arriscado. Saí soluçando.
— Paciência, dona Maria.
— Entendo o drama de João. E o deixei livre. Outro médico me deu esperança. Filho eu sei que não posso. Me contento de ser mulher inteira.
— Livre, o João, para quê?
— Já que não posso, eu disse. Você tem direito. Com dona da rua.
— E deixou a senhora em paz?
— Que nada, menina. Ainda ontem me rasgou toda. Era a noite de ficar em casa. Mais dores e gritos. Desmontada a cama, foi no sofá vermelho da sala.
— Esse homem não tem pena?
— Agora quer o desquite. Por força. Perdido pela mocinha. Ela vai te enganar, eu o avisei. Uma vergonha para a família. O pobre não vê que tem 40 e ela 20 anos. Ainda mais no hospital. Enfermeira bonita os médicos não perdoam. Eu sei, menina, lá que trabalho. A noite é um convite.
— Ela não é boa moça?
— Uma vagabunda. Loirinha por cima. Ele passa o dia fora de casa. Já viu, não é? Amanhã traz o caminhão da firma. Vai me dar uma pensão. E tira tudo de casa. A TV, nosso quarto, o grupo estofado, o jogo de fórmica.
— E o que ele deixa?
— A geladeira, que é minha. E um fogão velho. Ele pode fazer isso?
— Por mim chamava a polícia.
— E o escândalo, Zezé? Se eu chamo a polícia, ele perde o emprego. A mocinha não quero de volta. E desquite eu não dou.
— A senhora é uma heroína.
— Com a pensão mais o hospital, devagarinho, compro tudo de novo. A mania dele é um filho. Eu queria adotar uma menina. Um filho meu, ele disse. Não bastardo de outro. Pois faça o filho, eu respondi. Que eu crio. Só não quero perder você.
— A senhora gosta do João?
— Bêbado eu sinto nojo. Gosto quando é delicado. Gosto até do cheirinho da roupa. Ergui esse homem da lama. Não o salvei para outra. Pena o meu sogro ser morto. Com ele não tinha coragem.
— Ele vai sentir a falta.
— Não sei. De cabeça variada. Aquela é uma porca. Com ela não tem o sapato engraxado. A calça passada. O chão branquinho.
— O desquite a senhora não...
— Eu não devo. O que pode alegar? Trabalho. Cuido bem da casa. Só dele a moela, o coração, a sambiquira. Ainda acha pouco. Quer ficar com as duas. Na mesma cama.
— É a suprema cama.
— Na carteira dele um atestado médico. Eu sou aleijada?
— Ah, se fosse comigo...
— Os vizinhos sabem da mocinha. Será que você não viu? O médico que fez mal propôs casar. Acha que ela quis? Veja se não presta. Só de cadela. Eu triste de mim, recolhi essa maldita. Para se regalar com o meu chinelo. Na minha cama.
— A senhora chaveie a porta. Não deixe entrar.
— Amanhã, ele disse, com o caminhão. Tudo eu carrego. Já desmontou os móveis. Até a cama de casal. Arrancou a pia da parede.
— É violento?
— Furioso de paixão. Na força do homem. Mil e uma noites que não dá descanso. Quer o que não tenho. Assim não tem graça, ele se queixa. Não dá para nada. Nove anos atrás eu me cuidava sozinha. Agora velha e sofrida. Com tantas dores e gritos. Não sei o que fazer. Bem eu queria ser a companheira.
— Se a senhora fizesse... Será que não...?
— Eu não? Eu fiz tudo! Até o que uma mulher da rua tem vergonha.
— Deus é grande, dona Maria.
— Mas não. O bandido quer mais. Quer as duas. Lá na mesma cama. Estou desesperada, menina. Acha que devo aceitar?
ILUSTRAÇÃO JAN CURVELO E ALBERTO NADDEO
Este conto será incluído no próximo livro de Trevisan, a ser lançado este mês. Nosso colaborador habitual, Dalton Trevisan já apareceu em Homem n.º 6, 9, 15 e 24.
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