top of page

GALVÃO BUENO | JULHO, 1994

Playboy Entrevista



Uma conversa franca com o locutor da Fórmula 1 sobre Ayrton Senna e Nelson Piquet, pódio e ódio, circo e tragédia, vitória e derrota


Bem, amigos da Rede Bandeirantes, da Manchete, do SBT: o homem da Globo está aí de novo. Depois de comover o país narrando a tragédia de Ayrton Senna, agora a Copa de 1994, alegre ou triste, também é com ele.


A voz redonda de Galvão Bueno passa do mundo dos pneus para o planeta da bola com a mesma emoção, a mesma credibilidade — e por isso carrega 50 ou 60 milhões de espectadores brasileiros, um país inteiro no ar.


"Este era um ano em que eu sonhava narrar dois tetracampeonatos, mas um Deus não quis", dizia ele no final de maio, pouco antes de embarcar para o GP da Espanha e de lá para São Francisco, na Califórnia, onde a Seleção Brasileira encerrava seus preparativos para o Mundial. Galvão Bueno viaja muito, sempre de primeira classe, como determina seu excelente contrato com a Globo (o repórter e comentarista Reginaldo Leme vai de classe executiva). Mas, embora tenha de tirar um passaporte novo a cada seis meses, por falta de folhas brancas para carimbar vistos, entradas e saídas, ele ainda não esteve em nenhum lugar onde se sentisse melhor do que aqui. Veio dessa paixão o "Ayrton Senna do Brasil!" com que ele comemorava as vitórias de seu grande amigo, o piloto tricampeão do mundo falecido dia 1º de maio no GP de San Marino, em Imola, na Itália. Vem também daí a torcida pela Seleção que ele conduz, com os nervos expostos, em busca de um título que nos escapou sempre desde 1970.


Quando o Brasil ganhou o tricampeonato no México, 24 anos atrás, nada indicava que Carlos Eduardo dos Santos Galvão Bueno seria locutor esportivo. Filho do ramo carioca da tradicional família Galvão Bueno, aos 3 anos viu a separação dos pais. Aos 7, acompanhava a mãe na sua mudança para São Paulo, onde se instalaram num bom apartamento no Jardim América e ele começou a se preparar para a vida. Praticou todos os esportes, cresceu até 1,79 metro e tentou viver como jogador de basquete, primeiro em Brasília, onde moraram alguns anos, e depois de volta a São Paulo. Em 1970, o futuro era um trevo de onde saíam estradas para todos os lados: Galvão Bueno estudava Educação Física, planejava fazer cursinho para Economia e trabalhava numa fábrica de embalagens plásticas, onde o padrasto era diretor.


Para não dizer que não lembrava em nada o grande narrador de hoje, ele já falava pelos cotovelos, o que rendeu a bronca de um tio durante um jogo da Seleção no México que acompanhavam pela televisão: "Quieto, rapaz, me deixa ouvir a transmissão! Quem você pensa que é? O João Saldanha?"


Mas que bela idéia! Em 1974, Galvão. Bueno era dono de uma pequena firma de representações e se irritava com o sócio, que não trabalhava durante as duas horas do programa Disparada nos Esportes, na Rádio Gazeta. Galvão dizia que tinham compromissos, que era perda de tempo ficar lá ouvindo o radinho, que ele entendia muito mais de esporte do que aqueles caras. Um dia, três meses antes da Copa na Alemanha, o sócio o inscreveu num concurso em que a Rádio Gazeta procurava um novo comentarista. "Vai lá, mostra que você entende", desafiou ele. Galvão foi e encontrou um auditório lotado, que se esvaziou pela metade quando os candidatos tiveram de ir ao microfone ler algumas linhas sobre o clube inglês Manchester United.


Os remanescentes sorteavam um tema numa caçamba e improvisavam seus comentários. No final, ele duelou contra um inflamado professor de português que desancou, com todos os verbos conjugados corretamente, a estratégia do técnico Zagalo para a Copa, chamando-o de retranqueiro e incompetente, para delírio da platéia e mesmo da banca examinadora. Trêmulo, Galvão sorteia seu tema: Zagalo. "Eu não tinha saída", conta. "Fiz a maior defesa que o Zagalo mereceu na vida dele, provando que não poderia ser chamado de retranqueiro quem tinha arrumado lugar no time de 1970 para craques como Rivelino, Tostão e Jairzinho, todos deslocados de suas funções habituais." Saiu de lá contratado.


Na própria Gazeta, a estrada do esporte se alargou admiravelmente quando Galvão Bueno começou a comentar Fórmula 1, numa época em que Emerson Fittipaldi brilhava tanto nas pistas que, patrioticamente, resolveu correr por uma equipe brasileira, a Copersucar. Em 1978, quando Emerson completaria seu terceiro ano de derrotas na Copersucar, a Rede Globo jogou a toalha e entregou as duas últimas corridas da temporada para a Bandeirantes, onde Galvão estava desde o ano anterior. Ele narrou então a estréia de um piloto brasileiro chamado Nelson Piquet e percebeu que se dava muito bem naquela função. Em 1979 a Globo ainda transmitiria todas as provas, na voz de Luciano do Valle, mas no ano seguinte se desinteressou de vez e a temporada toda foi de Galvão Bueno, que transmitiu pela Bandeirantes um inesperado e espetacular vice-campeonato de Piquet. Ressuscitado o interesse nacional pela Fórmula 1, a Globo voltou para o circuito e levou Galvão, em setembro de 1981, para uma carreira sem fronteiras, cheia de vitórias e de algumas derrotas inesquecíveis. Sua voz virou fenômeno de audiência, mas nem por isso recebe cuidados especiais. Ele é um fumante daqueles que consomem dois maços de cigarros por dia, da marca Free ou da que estiver por perto.


Hoje, aos 43 anos, é uma pessoa com poucos desejos materiais ainda não realizados. Você quer dinheiro para quê — para viajar? Ele anda pelo mundo todo, Japão, Austrália, Europa, Estados Unidos, muitas vezes com intervalos entre as transmissões para fazer turismo. Você gosta de comer bem? Galvão também, e já provou de tudo — desde aquele restaurantezinho extraordinário escondido no interior da França até o exotismo da África do Sul, onde uma noite se viu diante de um bufê onde algumas plaquinhas identificavam as carnes que fumegavam nas travessas: rinoceronte, elefante, girafa, iscas de crocodilo, escalopinhos de impala, cérebro de macaco... Ele recorda maravilhado um peixe assado sobre pão que experimentou no Porto de Santa Maria, perto de Lisboa. Impregnado de suco, o pão guarda sabores impressionantes. "Cada garfada é uma Ave-Maria", lembra o locutor, que vez ou outra vai à cozinha para preparar seu camarão na moranga com catupiry e arroz de lula com brócolis. No seu tempero, o segredo é deixar o alho picado descansar meia hora em azeite frio. Mas Galvão agora está de regime. Por isso mantém distância de arroz, massas, manteigas e gorduras. E quase só bebe vodca — sua favorita é a Absolut, sueca. De vez em quando, permite-se um vinho, especialmente o português Barca Velha e o espanhol Vega Sicilia, seus preferidos. Não está gordo, mas quer acabar com uma respeitável barriga, capaz de comprometer a elegância dos mocassins, jeans, camisas sociais e paletós caros que usou nas duas sessões desta entrevista. Num passado remoto, usava enrolar a manga do blazer, no estilo Roberto Carlos.


Galvão Bueno tem uma casa em Angra dos Reis, no litoral fluminense, um barco de 21 pés e uma Cigarrette off-shore vermelha de 36 pés que não custa menos de 100.000 dólares. Na garagem – "Não sei andar devagar, não" –, uma Mitsubishi Eclipse Turbo e uma Pajero. E está se mudando para uma cobertura que paira como um helicóptero gigante sobre a zona sul do Rio, com vista de 360 graus que inclui a praia de Ipanema e a Lagoa Rodrigo de Freitas. "Não vamos falar em dinheiro, pelo amor de Deus", pede Gaivão. Ele garante — sem revelar números — que ganha muito bem na Globo, mas que esse conforto todo não vem do salário. Vem principalmente do tino comercial de sua mulher Lúcia, uma loirinha de temperamento farte, mãe de seus três filhos e administradora dos negócios da família, que somam lojas de decoração, um salão de estética e uma produtora de vídeo. Como quase tudo na vida do locutor, também ela foi uma conquista proporcionada pelo mundo esportivo. Em 1968, era jogadora de vôlei, a despeito de seu pouco mais de 1,60 metro, quando conheceu Galvão durante a realização dos Jogos Estudantis Brasileiros. Estão casados há 22 anos, e Lúcia, nas longas ausências do marido, tocou a casa e a educação de três filhos: Letícia, de 20 anos, já casada; Carlos Eduardo, de 18, que pretende ser piloto; e Paulo Eduardo, de 16, que trocou o kart pelo judô. Só agora, com os filhos crescidos, a mulher pode acompanhar Galvão em viagens internacionais com mais freqüência, normalmente quando ele tem um intervalo ocioso entre dois eventos esportivos. Desde que, é claro, não seja ela quem esteja envolvida numa competição feroz para garantir vírgulas e vantagens a favor do marido, nos contratos profissionais que levam a assinatura de Galvão Bueno. Foi assim que ela conquistou o ódio de muita gente e o reconhecimento do parceiro, que reitera a paixão a cada meia dúzia de frases.


A pedidos, então, não vamos falar em dinheiro — há assuntos de uma riqueza muito maior para se conversar com Galvão Bueno, neste momento particularmente denso de sua vida. Depois da morte de Ayrton Senna, ele se recusou a dar entrevistas, apesar do assédio dos jornais e das revistas, e não quis nem pensar na proposta de várias editoras para escrever um livro sobre o grande piloto e amigo. Além de dar um depoimento para o programa Globo Repórter, na semana seguinte ao acidente, só aceitou falar longamente para PLAYBOY, que na sua opinião realiza as melhores e mais completas entrevistas da imprensa brasileira. Aqui, como você poderá ler a seguir, Galvão Bueno falou sobre sua vida e resolveu deixar seu testemunho emocionado sobre o que viu e o que passou nos últimos tempos. Poucas vezes pudemos realizar uma entrevista tão cheia de histórias de bastidores, algumas muito engraçadas, a maioria delas arrepiante.


Para entrevistar Galvão Bueno, PLAYBOY enviou ao Rio o editor-contribuinte Guilherme Cunha Pinto, que o encontrou para duas sessões de conversas que somaram quase dez horas de gravações, acabando com o estoque de fitas levado na viagem. "Não é à toa que o Ayrton Senna chamava o Galvão de 'Papagaio'"; pensou o repórter. No final da entrevista, Galvão Bueno mostrou uma foto em preto e branco onde aparece conversando com Senna uma hora antes da largada em Imola — sua última imagem com o amigo tricampeão. Ao lado da foto, que carrega numa pasta de couro, o narrador guardou um papel com a tabela da Copa de 1994, em que ele havia rabiscado seus prognósticos. No boião de Galvão Bueno, preenchido poucas semanas antes do primeiro jogo do Mundial nos Estados Unidos, o Brasil faria uma semifinal contra a Bélgica ou com a Holanda, e a Alemanha faria a outra semifinal contra a Argentina. Na final, Brasil e Alemanha, enfrentando-se pela primeira vez numa Copa do Mundo. Você também acha que entende de futebol mais do que ele?


PLAYBOY — Exatamente vinte anos atrás, você estreou justo na Copa em que o Brasil começava a buscar o tetra. Como foi isso?


GALVÃO BUENO — Foi um trauma. Eu tinha começado na Rádio Gazeta há apenas três meses, e antes disso nunca tinha pegado num microfone. Fazia também algumas coisas para a TV Gazeta, que nessa Copa de 1974 formou um pool com a Bandeirantes e a Record. As estrelas na época dessas emissoras — o Sílvio Luiz e o Blota Jr., da Record, o Peirão de Castro e o Roberto Petri, da Gazeta, o Fernando Solera e o Chico de Assis, da Bandeirantes — estavam na Alemanha, onde se revezavam nas transmissões ao vivo. E os jogos menos importantes eram gravados e iam ao ar à noite, narrados de um estúdio da Bandeirantes na hora da transmissão por um time de segundos locutores. Éramos eu pela Gazeta, o Alexandre Santos pela Bandeirantes e o Sérgio Cunha pela Record. No começo da noite escolhia-se o jogo, a gente buscava todas as informações — o resultado, quem tinha feito os gols, escalações, juiz — e ia para o estúdio, não podia ter erro. Uma noite nos avisaram: o jogo seria Bulgária e Suécia. Nos preparamos como sempre e estávamos tinindo, cheios de anotações, quando começa o teipe. A Suécia entra de amarelo, a Bulgária de branco, tudo certo, e bola rolando. A Bulgária ataca, a Suécia se defende. De repente a Bulgária troca passes na entrada da área e chuta pela linha de fundo. A Suécia vai dar o tiro de meta quando a câmera dá um close no placar do estádio, onde está escrito: Austrália 0, Alemanha Oriental 0.


"Narrávamos Bulgária e Suécia do estúdio, quando a câmera dá um dose no placar: Austrália 0, Alemanha 0"

PLAYBOY — Era outro jogo.


GALVÃO — Mas veja que coisa: trocaram o jogo sem avisar a gente. E os dois times tinham justamente as mesmas cores nos uniformes — a Austrália de amarelo, a Bulgária de branco.


PLAYBOY — O que vocês fizeram?


GALVÃO — Ficamos os três olhando um para a cara do outro, petrificados, num silêncio que pareceu uma eternidade. A uma determinada altura eu achei que deveria dizer alguma coisa, qualquer coisa, para romper aquele silêncio constrangedor no ar... E eu disse: "Vai a Austrália para o ataque e a Alemanha Oriental se defende como pode."


PLAYBOY — Assim?


GALVÃO — Assim. A Bulgária chutou por cima do gol da Suécia e quem bateu o tiro de meta foi a Austrália, que jogava contra a Alemanha Oriental. Eu não tenho dúvida nenhuma de que o telespectador que tomava uísque em casa naquela noite parou de beber, achando que tinha chegado num nível perigoso.


PLAYBOY — Teve gente que pode ter parado de beber para sempre.


GALVÃO — Até hoje, porque nunca ninguém deu justificativa alguma para o que aconteceu. Como é que podíamos explicar?


PLAYBOY — Como você lida com o erro numa transmissão?


GALVÃO — Olha, eu me preparo, acompanho o que é possível em todos os esportes, leio revistas estrangeiras — mas o erro é humano, vai existir sempre. Hoje eu corrijo tranqüilamente as falhas que percebo, mas foi preciso um amadurecimento para isso. Lembro que num Brasil e Paraguai, na Copa América de 1989, eu atribuí ao Mauro Galvão um gol que tinha sido do Bebeto, como em seguida ficou claro na repetição. Tentei justificar com aquelas coisas — "Entraram os dois juntos na bola, mas quem tocou por último foi o..." Depois o Armando Nogueira, que era diretor de Jornalismo da Globo, me disse que eu tinha perdido uma grande oportunidade de ser profissionalmente correto e simpático ao telespectador, assumindo o erro e pedindo desculpas. Concordei e hoje procuro agir assim.


PLAYBOY — Como é que você definiria seu estilo?


GALVÃO — Eu sou um vendedor de emoções. O esporte é basicamente emoção e esse é o meu produto para vender. Mas é uma emoção que eu sinto de verdade. Fui vendedor durante anos e sei que, se você não acreditar no seu produto — seja ele automóvel, coco ou camisinha —, você não vai vendê-lo bem. Muitas vezes sou criticado por me emocionar demais, ou por torcer excessivamente para o Brasil, como certamente vai acontecer depois dessa Copa outra vez. Não me incomodo, porque se você vai a uma Copa do Mundo é claro que tem de dizer as verdades — mas todos os brasileiros estão torcendo pelo país e eu não sou diferente, sou brasileiro e vou torcer mesmo. E o povo, o espectador, gosta disso, seu sei pelas cartas, pelo contato pessoal e pela audiência, que é um negócio mais frio mas dá a medida também. Não sei quantas vezes eu terminei uma transmissão chorando. Me lembro quando o Piquet foi bicampeão do mundo, em 1983, na África do Sul, eu encerrei a transmissão chorando. Em 1988, o Ayrton campeão do mundo — e aí nós já tínhamos uma amizade grande, até entre as famílias... Enfim, eu queria demais aquele título e pude sentir da cabine a emoção que ele devia estar sentindo dentro do carro, depois de um ano dificílimo de disputas com o Alain Prost, que era a grande estrela da McLaren. Terminei a transmissão aos prantos.


PLAYBOY — Como foi transmitir o acidente que matou Ayrton Senna?


GALVÃO — Foi a transmissão mais difícil da minha vida. Na hora do desastre, pela forma como foi e pela forma como ele foi atendido, eu sabia que a coisa era gravíssima, mas tive de levar a corrida até o final. Na sexta-feira nós não estávamos transmitindo e quando houve aquele acidente com o Rubinho Barrichello eu até disse para muitas pessoas, depois que soube que ele estava bem: "Meu Deus do céu, ainda bem que isso não está sendo transmitido ao vivo, porque como é que eu ia continuar falando até ter alguma notícia, sabendo que o pai e a mãe dele estavam me ouvindo no Brasil?" Aí veio o acidente, a morte do Ratzenberger no sábado, e a gente estava ao vivo, mas pelo menos não estava transmitindo para a Áustria, era só isso que me vinha à cabeça.


PLAYBOY — O Ratzenberger morreu na pista, na hora?


GALVÃO — Eu tenho quase a certeza de que ele morreu na hora — morte cerebral. Ela só não foi anunciada porque você tenta reanimar, leva para o hospital. Foi o mesmo que aconteceu com o Ayrton. Quando eu cheguei ao hospital domingo, depois da prova, o dr. Sid Watkins disse: "Ele está morto. Teve morte cerebral, teve parada cardíaca, nós conseguimos reanimá-lo e ele está mantido vivo por instrumentos, mas a lei italiana determina que se esperem doze horas e que se faça um novo eletroencefalograma. Só aí podem ser desligados os aparelhos." E eu ainda perguntei: "Mas, dr. Sid, nós vamos ter de esperar doze horas sofrendo?" Ele respondeu que não acreditava que, mesmo com os aparelhos, o coração resistisse essas doze horas. E, de fato, duas horas depois o coração parou de bater. Então, o Ayrton também morreu na hora, teve morte cerebral na hora.


PLAYBOY — Mas já pela forma como bateu você percebeu a gravidade?


GALVÃO — Se você ouvir de novo a narração, vai notar que eu digo — não sei exatamente as palavras, porque não tive coragem de rever a cena —, digo mais ou menos: "Ayrton bateu forte. E sério, é grave, é grave." Sabe, quando se bate a 300 quilômetros por hora numa parede, só a desaceleração já é mortal.


PLAYBOY — Muita gente disse isso depois, mas o fato é que há vários anos estávamos acostumados a ver acidentes horríveis, o carro em pedaços, muitas vezes pegando fogo — e o piloto saía inteirinho.


GALVÃO — Existe um médico que diz que a desaceleração foi tão violenta que o impacto teria sido de dentro para fora, o cérebro teria explodido. Mas, antes daquele fim de semana, realmente há doze anos não morria ninguém numa corrida. O último tinha sido o Ricardo Palletti, na largada do GP do Canadá de 1982. O Gilles Villeneuve morreu num treino, nesse mesmo ano. Depois disso só tinha acontecido com o Elio de Angelis, em 1986, num treino privado em Paul Ricard, na França. Mas ali, com o Ayrton, eu senti que era muito grave. Pela batida, a forma como ele ficou, a forma como os bombeiros se aproximaram e não quiseram tocar, o sangue todo no chão.


PLAYBOY — Aí você já sentiu...


GALVÃO — Tem uma coisa que as pessoas não sabem. Quando o médico chega ao local de um acidente ele utiliza um código, que vai de 1 a 4. Se diz "código 1", é um acidente com ferimento mas sem proporções graves. Se ele chega e chama o código 2, é um acidente grave — e isso quer dizer que a ambulância deve vir imediatamente para fazer o transporte para o hospital do autódromo. O código 3 é gravíssimo, situação desesperadora, e determina a vinda do helicóptero da UTI para a pista. Para se ter uma idéia, o helicóptero não veio buscar o Rubinho, ele foi transportado numa ambulância. Então, no acidente do Ayrton, quando o helicóptero desceu eu sabia que era código 3, e a situação era desesperadora. O código 4 é para morte, o cara está morto.


PLAYBOY — A angústia nos minutos seguintes ao acidente parece que cresceu mais porque a imagem era neutra. A tomada era estranha, dava uma volta numa árvore do outro lado da pista. Não havia uma câmera mais bem colocada?


GALVÃO — Não. Até porque se evita, e eu concordo com isso, que se mostre o rosto de um acidentado. Em momento nenhum se viu o rosto do Ayrton, que estava completamente... eu nem devia falar isso, porque tenho um trato com a família, mas... Só uma pessoa fotografou isso, um repórter chamado Angelo Orsi, amigo íntimo dele também. Ele é editor de fotografia da Autosprint, a principal revista internacional de automobilismo. Estava atrás daquela grade e por profissionalismo armou a máquina e disparou, sem nem ver direito o que estava fotografando. É a única pessoa que tem as fotos do rosto do Ayrton, reveladas e guardadas num cofre da casa dele. Já recusou fortunas por elas, não vende, não dá. A direção da revista entendeu a posição dele, mesmo com o assédio das agências, e eu achei uma atitude bonita, muito digna.


"Só uma pessoa fotografou o rosto de Ayrton depois do acidente. As fotos estão guardadas num cofre"

PLAYBOY — Como você fez para levar a transmissão até o fim?


GALVÃO — Eu tinha vários sentimentos dentro de mim. Uma nação inteira esperando uma notícia sobre o seu ídolo — mais que ídolo, o Ayrton era o único herói nacional. E eu tinha a certeza de que seu Milton, a dona Neide, a Viviane, os pais e a irmã do Ayrton, estavam todos me ouvindo, esperando que eu pudesse dizer alguma coisa positiva. Na hora, ali, foi uma coisa terrível, eu mesmo implorando em silêncio para o repórter Roberto Cabrini entrar com uma notícia positiva.


PLAYBOY — Ficam só você e o comentarista Reginaldo Leme na cabine?


GALVÃO — Há muitos anos, além do Reginaldo e do operador de áudio, tenho uma pessoa a meu lado em qualquer lugar do mundo, em quase todas as corridas: o Braguinha, o empresário Antônio Carlos de Almeida Braga, que tinha pelo Ayrton um carinho de pai para filho — e a recíproca era verdadeira. A gente se olhava sem se falar, com a mesma preocupação. Pelo meu fone de ouvido eu recebia o tempo todo o incentivo do Alain Vignais, que foi chefe de equipe e é o coordenador da nossa transmissão, e do Fernando Guimarães, diretor de eventos esportivos da Globo: "Vamos, Galvão, vai em frente", diziam eles do Brasil. Umas três vezes eu saí da cabine, fui respirar um pouco. E, como eu tinha essa amizade com o Ayrton, as pessoas começaram a aparecer na cabine, o manager do Rubinho, a namorada do Christian, todo o mundo parece que vinha buscar uma esperança. A dez minutos do final da prova eu fechei o microfone e disse: "Braga, pelo amor de Deus arruma um helicóptero, porque se a gente for de carro ao hospital vai levar duas horas para chegar." O Braga saiu e logo voltou para a cabine dizendo que tinha arrumado um helicóptero com o Jo Ramirez, da McLaren. Terminada a corrida, recebi um recado para esperar o Christian, que queria ir junto ao hospital. A essa altura já tinham entrado uns dois boletins do Cabrini, informando sobre o problema cerebral do Avrton, de modo que eu estava mais desesperado ainda. Fui até o motor-home da Arrows e o Christian saiu com o macacão meio caindo, descalço. "Galvão, espera eu colocar uma roupa", ele pediu. Quando eu voltei me deu o primeiro choque, porque havia uma série de pessoas cercando o Braga: o Gerard Berger, o Ron Dennis, dono da McLaren, o Jo Ramirez. Pensei que estavam dando a notícia da morte ao Braga, mas era só o carinho das pessoas. Me lembro que o Berger estava dizendo ao Braga que, se o problema era cerebral, existia um médico na França que era um gênio, já tinha salvado o Jean Alesi naquele acidente num treino da Ferrari alguns dias depois do GP do Brasil. O Berger falou que poderia mandar um avião buscar esse médico em Paris, se houvesse autorização, então o Braga disse: "Está dada." E o Berger correu para telefonar. Fui apressar o Christian e no caminho encontrei o José Pinto, narrador da TV portuguesa, que me avisou que o Braga já estava indo para o helicóptero com o Berger. Então peguei a chave do meu carro e joguei para ele, avisando que o carro estava no estacionamento de imprensa. "Mas o que eu faço com ela?", perguntou. E eu, já correndo: "Não sei, entrega pro Reginaldo." Quando chego onde eles estavam esperando o helicóptero, vejo o Braga com a cabeça baixa, o Berger encostado na cerca. Corro ao telefone, ligo para a cabine e pergunto ao Claudinho, operador de áudio, se tem alguma notícia. Ele conta que o Cabrini tinha entrado mais uma vez, informando que o estado era desesperador, mas que o Ayrton ainda estava vivo. Volto, o helicóptero ainda demora um pouco, corro de novo para o telefone e o Braga diz: "Pára, pára, Galvão, que ele está morto. O Berger disse que ele está morto." Eu me viro para o Berger: "Mas, Berger, eu acabei de falar... Ele tem um problema sério, mas o coração ainda está batendo..." O Berger não fala nada, só faz um sinal com a mão e baixa a cabeça. E aí nós entramos no helicóptero, fomos absolutamente em silêncio até o hospital em Bolonha. Quando subimos para a UTI havia uma sala à direita onde estavam o Leonardo, irmão do Ayrton, e várias pessoas da assessoria dele. Nos levaram para uma salinha, onde o dr. Sid Watkins nos disse aquilo, que ele já estava morto, o coração ainda batia mas não resistiria muito tempo.


PLAYBOY — Como foi a viagem de volta, junto com o corpo no avião?


GALVÃO — Um avião da Força Aérea italiana nos levou até Paris, onde iríamos apanhar um vôo da Varig, porque a família quis que ele viesse num avião brasileiro para cá. Estávamos o Celso Lemos, diretor da empresa do Ayrton, a Betize Assumpção, assessora de impressa, eu e o Joseph Lebere, um austríaco que era nutricionista dele e do Berger. Lembrávamos quantas vezes tínhamos voltado para o Brasil com o Ayrton depois de uma corrida, de uma forma alegre — e pensávamos num jeito para que o corpo dele não fosse no bagageiro, para que viesse como sempre veio. Quando chegamos lá o Flávio de Carvalho, diretor da Varig em Paris, nos garantiu que ele voltaria como passageiro. Todo o pessoal da Varig foi maravilhoso, fez de tudo — menos um filho da puta chamado Gomes não sei o quê, comandante do vôo, que colocou todos os empecilhos possíveis e imagináveis. Primeiro disse que não podia colocar um caixão junto aos passageiros, que a LATA [International Air Tranport Association] não permitia. Veio uma ordem para isso da direção de Operações da Varig, a que estão subordinados os pilotos, mas ele exigiu uma ordem da presidência da fundação, veio essa ordem — enfim: naquele momento, acho que foi o único mau brasileiro que eu vi. O copiloto não, ele veio até onde estávamos, rezou, chorou junto.


PLAYBOY — Mas vocês acabaram vindo do quê, de primeira classe?


GALVÃO — Não, nós viemos de classe executiva. Foi assim: havia só seis pessoas na primeira classe, onde cabem dezesseis passageiros. Desses seis, quatro éramos nós. Na executiva, havia doze pessoas. Então esses doze passageiros foram para a primeira classe enquanto nós quatro ficamos na executiva. Foram retiradas seis poltronas e colocado ali o caixão, com a bandeira do Brasil em cima, as cortinas fechadas.


PLAYBOY — As pessoas vinham de outras partes do avião para ver o caixão?


GALVÃO — Não. Ninguém. Tudo muito civilizado, como aliás em todo o processo. Incrível, o Ayrton era uma pessoa tão fantástica que até isso ele conseguiu. Até o enterro, o que se viu foi uma grande, uma imensa dor, mas uma manifestação muito civilizada, com muita ordem. No cortejo do Aeroporto de Guarulhos até a Assembleia Legislativa de São Paulo, eu estava naquela van entre os dois carros de bombeiros, e o que eu vi nunca vou esquecer — o metrô que parou em cima de uma ponte na Marginal do Tietê e os passageiros acenando nas janelinhas, os policiais chorando, as expressões de dor que se repetiam enquanto mudava o padrão social das pessoas ao longo do trajeto, primeiro pessoas mais humildes nos bairros periféricos, depois a mescla no centro da cidade, por fim a classe média nos jardins.


PLAYBOY — Foi uma comoção, mesmo.


GALVÃO — Sabe por quê? Porque nós somos um país de derrotas. Nós perdemos todos os dias — para a miséria, para a desonestidade, para a incompetência política, para a corrupção, para o analfabetismo. E ele era o brasileiro que vencia, o motivo de orgulho da gente. Apesar de toda dor, ele deixou uma lição ainda maior que todo o sofrimento, para todos esses poderosos que estão aí: basta fazer as coisas direito, com honestidade e determinação, que o povo responde com respeito.


"Sabe por que foi uma comoção? Porque nós somos um país de derrotas e ele era o brasileiro que vencia"

PLAYBOY — Como foi transmitir o Grande Prêmio seguinte, justo em Mônaco, onde Senna ganhava há tantos anos?


GALVÃO — Foi muito complicado. Eu passei lá quatro dias de muita reflexão. A uma determinada altura, cheguei à conclusão de que já tinha cumprido minha missão no automobilismo. Em 200 grandes prêmios, sei lá, já perdi a conta de quantos transmiti, foram 65 vitórias, juntando as do Ayrton e as do Piquet. Foram seis títulos mundiais, quatro vice-campeonatos. Nunca um esporte brasileiro teve uma fase tão longa de supremacia. E eu acho que tive uma importância — mínima, perto da grandeza deles —, mas tive uma importância no crescimento do amor do torcedor brasileiro pela Fórmula 1. E me deu um sentimento de, porra, peraí, cumpri minha missão. Está na hora de eu parar com a Fórmula 1.


PLAYBOY — Isso foi antes ou depois do Grande Prêmio?


GALVÃO — Isso foi de sexta para sábado, depois o sentimento voltou no domingo, pouco antes da transmissão. Acho que todo o mundo se sentiu estranho naqueles dias, sem vibração, justo no Grande Prêmio que concentra todo o glamour do automobilismo mundial, mas eu me senti pessoalmente atingido. Todo o mundo tem de parar um dia. E eu me perguntei se não era minha hora. Se não deveria deixar surgir alguém novo para acompanhar o crescimento dessa nova geração, exatamente como tinha acontecido comigo doze anos atrás.


PLAYBOY — E como você venceu isso? Aliás, você venceu isso?


GALVÃO — Bom, foram várias coisas que pesaram, até do ponto de vista pessoal. Eu tinha um contrato a cumprir, mas nessa hora é o que menos conta, porque é uma coisa de emoção, um sentimento — e eu senti que não podia fazer isso com as pessoas. Não podia fazer isso com a Lúcia, minha mulher, a quem devo muito da minha vida profissional desde o dia em que ela disse para mim, vinte anos atrás, quando eu estava começando minha carreira: "Se você quer ser o melhor, vai e não se preocupe com mais nada, que do resto eu cuido." Acho que ninguém pode imaginar o que se passa na vida da gente, mas comigo aconteceram coisas assim: em 1978, quando eu morava no Leblon, um dia pararam dois táxis na frente do nosso prédio — num eu embarquei para a Copa da Argentina, noutro ela seguiu para a maternidade, onde teria o nosso terceiro filho, que eu só vim a conhecer quarenta dias depois. Eu não podia abandonar tudo de uma hora para outra. Também não podia fazer isso com a Globo, que investiu tanto em mim e na Fórmula 1. As pessoas imaginam que sem o Senna a Fórmula 1 vai despencar, a Globo vai perder um grande produto — não é verdade. Pode ser que não tenhamos a mesma audiência num primeiro momento, mas sempre vai existir por parte do povo um carinho muito grande por esse esporte. E, por fim, não podia fazer isso com os garotos que estão lá, o Rubinho e o Christian, que depois do Grande Prêmio de Mônaco tiveram uma atitude muito bonita comigo — me levaram para jantar. Não... eu estou desde o Emerson dando uma força a todos eles, acho que seria uma covardia com os garotos. Então acho que mais ou menos superei, vamos embora, vamos em frente.


PLAYBOY — Mas deve ser uma sensação estranha, para quem narrou tanto tempo a briga dos brasileiros pela ponta, se preocupar com o que acontece no pelotão intermediário.


GALVÃO — Não tenho nenhuma dúvida de que os dois vão ser pilotos de ponta. É só comparar com o Damon Hill ou com o Martin Brundle, que estão nas grandes equipes, e você vai ver que o Rubinho e o Christian são muito melhores. Quando começou todo o assédio a eles, logo depois dos acidentes, eu já achei que seria difícil vencer as tentações, mas que era melhor para eles ficar nas suas equipes, ganhando experiência durante mais uma temporada. Até nós estávamos num táxi em Paris, na segunda-feira depois do GP de Mônaco, e o Rubão Barrichello, pai do Rubinho, me perguntou: "Galvão, você como pai, o que faria no meu caso?" Ele sabe que eu, além de todo o envolvimento profissional com a Fórmula 1, tenho um filho, o Cacá Bueno, que está começando como piloto, já foi campeão de kart. Então respondi: "Como pai, acho que o Rubinho deveria ficar mais um ano onde está. Mas sei também que, surgindo o convite de uma equipe grande, vai ser muito difícil segurar a cabeça do garoto, que vai querer ir de qualquer jeito. Nesse caso, se eu pudesse escolher, iria para a McLaren." Para mim, é a equipe mais organizada, tem um carro excelente esse ano, um projeto novo que está dando resultados muito antes do que se esperava e eu acho que, do meio da temporada para a frente, vai ter condições de disputar corrida com a Benetton. Ao passo que a Williams, apesar de ter um motor fantástico, tem um problema de projeto seriíssimo. Eu não sou técnico de Fórmula 1, mas houve um erro ali, de geometria, suspensão dianteira, aerodinâmica, sei lá. O carro só consegue funcionar com rigidez absoluta, extremamente duro, e com isso ele absorve qualquer alteração de piso, fica bem mais instável, muito mais nervoso que o normal.


PLAYBOY — Isso explica o acidente com Senna?


GALVÃO — Não, para mim o que houve no acidente foi uma falha mecânica, é diferente. Mas explica a rodada do Ayrton na primeira corrida, as rodadas do Damon Hill, as dificuldades que eles estavam tendo. O Ayrton só estava conseguindo marcar as poles porque era um gênio, estava acima dos outros. Depois do Grande Prêmio do Japão ele me disse: "Eu deixo esses caras malucos, mas acerto esse carro." Mas o carro que nasce errado é muito difícil de acertar, o carro que nasce certo tem uma evolução natural. A McLaren é um carro que nasceu certo, essa Williams é um carro que nasceu errado.


PLAYBOY — Por que mexeram tanto na Fórmula 1, deixando as provas mais perigosas?


GALVÃO — Claro que não era essa a intenção. Fizeram modificações que tiraram sustentação do carro na pista, mas o objetivo era diminuir os custos para aproximar as equipes e haver mais competição. É uma tecnologia muito cara, essa de suspensão eletrônica, câmbio automático. São coisas de muitos milhões de dólares e algumas equipes chegaram ao fim de 1993 sem nada disso, por absoluta falta de condições.


PLAYBOY — Mas a Fórmula 1 não deveria justamente investir cada vez mais em tecnologia, se ela funciona como um laboratório para a indústria automobilística?


GALVÃO — Ah, não, isso é passado. Claro, se você for ver, coisas até rudimentares vieram primeiro das pistas de corrida, não só da Fórmula 1 — freio a disco, antiblocante. Mas nós estamos numa época muito mais adiantada, a Fórmula 1 não tem mais a preocupação de servir como laboratório. A Fórmula 1 é o esporte mais sofisticado do mundo e é um grande business. Chegou-se até à conclusão de que estava virando mais business que esporte, daí todo esse movimento.


"A Fórmula 1 não tem mais preocupação de servir como laboratório. Estava virando mais business do que esporte"

PLAYBOY — As modificações que estão sendo providenciadas são boas?


GALVÃO — Algumas sim, como a maior proteção para a cabeça dos pilotos. Se você pensar nos acidentes, na morte do Ayrton e do Ratzenberger, depois na batida do Wendlinger, ninguém teve nada do pescoço para baixo. Aquele habitáculo do piloto, de fibra de carbono, aquilo não quebra de jeito nenhum. Mas a cabeça estava solta. O que se chegou à conclusão na morte do Ratzenberger é que, além do choque, houve um movimento de cabeça para a frente e para trás de tal forma que ele teve nas duas primeiras vértebras uma coisa que se chama "efeito guilhotina". É como ele tivesse sido decapitado. Apesar de a cabeça continuar no lugar, o cérebro passou a não ter mais nada a ver com o corpo. Então essa era uma modificação mais que necessária. Anteriormente já havia se avançado muito em outros aspectos, como o reforço na frente dos carros para proteger as pernas dos pilotos, ou a criação dos tanques retráteis para impedir a formação dos gases que faziam o carro explodir como uma bomba nas batidas mais fortes. Mas acho equivocadas todas as alterações que tentarem deixar os carros mais lentos nas curvas, sem uma perda de potência no motor equivalente às perdas de estabilidade que eles estão promovendo. Isso porque o piloto vai querer sempre passar, fazer a curva mais rápido, frear mais tarde que o outro... Estão mexendo nos carros, mas eu quero ver mexer nos circuitos. Aquele muro em Imola, a 10 metros da pista, com um pouco de grama e cimento, aquilo é um crime...


PLAYBOY — O Piquet disse que...


GALVÃO — É um crime, não pela curva, porque não há possibilidade de errar, o piloto faz um movimento mínimo no volante e o carro faz sozinho a curva. Mas você vai bater quando? Quando tiver um problema de pneu, como teve o Piquet. Ou por uma falha mecânica, como aconteceu com o Ayrton, ou ainda por uma falha de suspensão, como teve o Berger. Aí você passa reto e vai se espatifar no muro. Ouvi falar num cálculo de que ali, com caixa de brita, deveria haver um mínimo de 78 metros de recuo. É o que tem de ser feito, a vida dos caras tem de ser preservada, pô.


PLAYBOY — No dia seguinte ao acidente o Nelson Piquet foi ao programa Roda Viva, na Rede Cultura, e disse mais ou menos o seguinte: não há nada de errado com Imola. E mais: existe um componente sádico no fascínio exercido pela Fórmula 1. Se você tornar as provas 100% seguras, muita gente vai deixar de ver.


GALVÃO — Veja só. O Piquet fez sua história no automobilismo internacional de 1979 ao início dos anos 90, justamente uma fase de grande segurança na Fórmula 1. Foi nessa época que ele se fez lenda, legenda, virou tricampeão do mundo, porque era um piloto fantástico. Muito bem. Eu não posso discutir Fórmula 1, conhecimento técnico com o Piquet, não tenho a menor condição para isso. Eu, durante anos, aprendi a transmitir Fórmula 1 e passei a ter conhecimento de algumas coisas. Eu acho que você nunca vai conseguir evitar o risco por completo. Os acidentes sempre vão acontecer. Mas, em sã consciência, eu não consigo comparar Fórmula 1 com circo romano, não passa pela minha cabeça que alguém ligue a televisão ou vá lá para ver alguém morrer, está certo? Os romanos faziam isso. Iam lá para ver os gladiadores se matarem, para ver o leão comer um cristão. A Fórmula 1 para mim não é isso — ela é uma coisa de alta tecnologia e alto risco, mas o fascínio vem exatamente dos grandes artistas que vão para a pista. Assim, ela tem é de preservar a vida desses grandes artistas. Você vai ter sempre lances espetaculares, grandes performances, acidentes — agora, ninguém deve morrer. Você deve tentar tudo para que ninguém morra. Eu não posso concordar com ele que Imola esteja perfeito. Não pode estar certo. O Campeonato Mundial de Motociclismo se retirou de Imola. Morreram sete motociclistas ali, ficou proibido correr ali. Não pode estar certo.


PLAYBOY — No programa, Piquet chamou a atenção para o interesse que todo o mundo tem pelas largadas, quando sobe a possibilidade de acidentes. Você estava em Bolonha no dia, mas soube desse programa?


GALVÃO — Não, e nem gostaria de entrar num assunto de bate-boca com o Piquet à distância. Sinceramente. Acho que não tenho conhecimento técnico para isso, e acho que não é o caso.


PLAYBOY — Ele também falou sobre isso. Não no programa, mas numa outra entrevista: disse que assistia às corridas de Fórmula 1 sem som, para não ouvir as bobagens que você dizia.


GALVÃO — Ah, sobre isso eu quero falar. É o seguinte. O curioso é que, enquanto ele era o "Nelson Piquet do Brasil" na minha voz, enquanto eu cantava e enaltecia as vitórias dele, ele nunca emitia nenhuma opinião nesse sentido. Esse é o ponto 1. O ponto 2 é que essa declaração foi uma coisa gratuita e acho que, até pelos anos em que convivemos lá, eu merecia um pouco mais de respeito. Sempre achei o Ayrton Senna muito mais piloto que o Piquet, apesar de achar o Piquet um grande piloto. Era uma coisa sobre a qual sempre me provocavam, me perguntavam quem era o melhor entre eles, e eu, em respeito ao fantástico piloto que o Piquet sempre foi, em respeito ao produto importante que ele foi para mim, em respeito ao que ele fez na pista, ao tricampeonato, sempre respondi: "Essa é uma comparação que nem se deve fazer, são dois gênios, dois ídolos brasileiros." Por respeito a ele. Não entendo de automobilismo como ele, mas acho que consigo fazer bem, acho que o público telespectador — porque eu não transmito corrida para o Piquet, transmito para milhões de pessoas — gosta do que eu faço, sei disso pelos resultados, pelo feedback. Então, morre por aí. Acho que ele foi infeliz, como em tantas declarações desrespeitosas a outras pessoas que ele já fez. A minha definição do Piquet é a seguinte: nas pistas, um gênio. Fora delas, um idiota.


"A minha definição do Nelson Piquet é a seguinte: nas pistas, um gênio. Fora delas, um idiota"

PLAYBOY — Você sabe como começou a briga entre o Piquet e o Senna?


GALVÃO — Em 1988, o Ayrton veio ao Rio com o pai dele, seu Milton, para uma série de compromissos. Estávamos no meu carro, indo para uma sessão de fotos de publicidade que ele precisava fazer — eu e seu Milton na frente, o Ayrton e um repórter do Jornal do Brasil no banco de trás. Ele ia dando uma entrevista no caminho. A uma determinada altura o repórter perguntou por que o Ayrton andava sumido nas últimas semanas e ele respondeu: "Sabe o que é? O Piquet acabou de se tornar tricampeão mas a imprensa continua só querendo saber de mim, então eu dei um tempo para falarem um pouco dele." Disse isso, bateu no meu ombro e riu: "Agora eu fui fundo, hein, Papagaio?" Eu disse: "Acho que agora você se estrepou." O Ayrton aí voltou a falar sério, explicou que a temporada anterior tinha sido estafante e tal. No dia seguinte estava lá no jornal: "Ayrton Senna diz que sumiu para deixar Piquet aparecer". E foi aquele rolo. Foram repercutir a declaração com o Piquet, que se queimou e mandou perguntarem ao Ayrton por que ele não gostava de mulher.


PLAYBOY — E como o Senna reagiu a essa insinuação?


GALVÃO — Ele estava na minha casa quando ligaram passando a declaração do Piquet, agora para ele repercutir. Até a Lúcia, minha mulher, se indignou com aquilo e sugeriu: "Ayrton, fala para perguntarem à mulher do Piquet se isso é verdade", lembrando que ele tinha sido namorado da Catherine antes do Nelson. E o Ayrton se recusou: "Não, isso eu não faço. Se ele não respeita ninguém, eu respeito. Não faço isso com mulher nenhuma."


PLAYBOY — Daí veio sua briga com o Reginaldo Leme? Fala-se num jantar em que vocês teriam rompido e a partir daí só se falavam no ar, durante as transmissões. Foi isso?


GALVÃO — Houve o rompimento, que hoje já está superado. Mas não foi aí. Até existiu esse jantar, num restaurante de Monza em 1990, em que um convidado do Reginaldo — o Keko Pacce, filho do Mário Pacce, que foi diretor do Grande Prêmio do Brasil — se referiu de forma grosseira ao Ayrton, repetindo aquelas bobagens ditas pelo Piquet, e a Lúcia e eu reagimos. Mas não houve nada ali com o Reginaldo. O rompimento veio mais tarde, pelo acúmulo de desgastes entre duas pessoas que têm lá suas diferenças e convivem dez anos trabalhando juntos, dividindo tudo, desde quartos em hotel, carros alugados, jantares, cabines de transmissão. Um dia houve uma discussão maior, a gente explodiu um com o outro e deixou de se falar. O Ayrton já tinha se desentendido com o Reginaldo muito antes, por motivos lá deles, e eu vivia insistindo para que continuasse a dar entrevistas, para que aquele desentendimento não atrapalhasse a relação profissional entre eles. Nesse dia do rompimento, o Ayrton me disse: "Tá vendo? Você insistia para eu dar entrevista e agora é você que não conversa mais com ele. Então também não dou mais entrevista."


PLAYBOY — E você deixou de insistir.


GALVÃO — Talvez eu tenha sido radical demais, porque na volta disse que não trabalharia mais com o Reginaldo, que se ele viajasse eu não iria. Eu me lembro que o Alberico de Sousa Cruz, recém-nomeado diretor de Jornalismo da Globo, argumentou assim: "Você imagine se o Cid Moreira briga com o Sérgio Chapelin e diz que não faz mais o Jornal Nacional com ele. Ou o Tarcísio Meira diz que não contracena mais com o Francisco Cuoco." O Alberico queria me convencer de que aquele precedente não poderia ser aberto. E entendi, mas o Ayrton foi bicampeão naquele ano no Japão e eu, em vez de estar lá, acabei transmitindo do Rio de Janeiro. Foi, enfim, uma coisa muito desagradável, que se prolongou pelo ano seguinte, mas hoje não existe mais. Continuamos sendo pessoas diferentes em algumas coisas, mas nos respeitamos e dentro das transmissões nos entendemos perfeitamente, a ponto de um adivinhar quando o outro quer falar alguma coisa.


PLAYBOY — A gente sempre tem curiosidade de saber como são essas parcerias. No automobilismo não surgiu ninguém como o Reginaldo Leme, mas no futebol existem muitos comentaristas e você já fez dupla com vários deles. Quem você acha o melhor?


GALVÃO — Olha, eu adoro O Pelé, o Raul Plassman, gosto de ouvir o Mário Sérgio. Mas, para mim, o melhor comentarista está fora da televisão. É o Sérgio Noronha, colunista do Jornal do Brasil e comentarista da Rádio Globo. Fiz com ele a Copa de 1982 e nunca vi igual — é inteligente, preciso, tem domínio absoluto do veículo. Essas coisas de afinidade são engraçadas, quer ver uma coisa? Acho que a Globo tem excelentes repórteres, me dou com todos, mas aquele com quem me dou melhor é o Ely Coimbra, que está na Bandeirantes. Ninguém pode imaginar isso, mas em saguão de estádio, em Copa do Mundo, eu chego e vou procurá-lo: "Ely, me passa aí as escalações e todas as informações que você tem para o jogo", eu digo, e ele me passa, como se estivéssemos numa mesma equipe.


PLAYBOY — E como é fazer uma Copa do Mundo com Pelé?


GALVÃO — O Pelé cresceu muito como comentarista desde 1989, quando começamos a trabalhar juntos na Globo. Não como visão de jogo, que isso ele sempre teve, mas como adaptação ao veículo. O Pelé está muito mais objetivo, falando mais em menos tempo. Nessa Copa agora de 1994 eu tenho certeza de que ele não deve nada a ninguém, comparado aos comentaristas de qualquer emissora. Mas eu acho que fazem uma maldade com o Pelé: ninguém pode querer que ele tenha a facilidade, por exemplo, que eu tenho para falar, sendo que eu não sou como narrador um milionésimo do que ele foi como jogador. Comparar o Pelé jogador com qualquer outra coisa que ele venha a fazer na vida é algo de uma crueldade sem tamanho. Se existe alguém no mundo que não precisava ser humilde é o Pelé, mas ele vem, me consulta, diz que está pensando dizer isso e isso, se eu acho que é por aí...


PLAYBOY — Vocês conversam bastante?


GALVÃO — Dentro do possível, porque trabalhar com o Pelé, andar com o Pelé, é um tumulto. Na Copa do Mundo a gente faz as transmissões de uma bancada, num espaço aberto, e enche de gente em volta. Na Itália, em 1990, no intervalo daquele jogo contra a Argentina que nos desclassificou, eu não agüentei. Pedi para o pessoal em volta sair de perto, porque íamos recomeçar a transmissão, mas tinha um repórter colombiano especialmente chato, que vinha todo dia entrevistar o Pelé. Na hora em que estávamos voltando ao ar ele surgiu no degrau de baixo da nossa bancada e estendeu o microfone: "Ahora para ustedes el rey del fútbol...", ele disse, e o meu "Bem, amigos da Rede Globo" saiu junto com uma porrada na orelha dele. O homem rolou uns dez degraus, foi aquela confusão, mas eu pude narrar o jogo sem mais ninguém em volta. Mas o Pelé é isso, eu ando pelo mundo todo e vejo a toda hora manifestações da popularidade dele, que é algo impressionante e até inexplicável, porque se espalha mesmo entre esse pessoal mais novo que nasceu depois que ele parou de jogar.


PLAYBOY — De que lado você fica nessa briga entre o Pelé, que denunciou um esquema de corrupção no futebol brasileiro, e o Ricardo Teixeira, presidente da CBF, que está sendo apoiado pelo João Havelange, da Fifa?


GALVÃO — Eu acho isso tudo muito triste. Me ofereci para intermediar uma pacificação, mas não foi possível. Acho que o grande errado na história foi o Havelange, que como presidente da Fifa deveria ter ficado acima da discussão, deixando a questão tomar o rumo que tivesse de tomar. Penso que o Pelé se precipitou um pouco nas declarações, embora tivesse razão em muito do que falou. E penso que o Ricardo Teixeira é uma pessoa com grande capacidade de liderança, que age com um respaldo muito grande e é bem intencionado, mas se precipitou demais em processar o Pelé. Fui falar com ele, que me disse: "Ah, eu estou coberto de razão." Eu respondi mais ou menos o seguinte: "Não vou discutir suas razões, mas acho que existem algumas pessoas no mundo com as quais não se briga — uma delas é o Pelé." Porque o Pelé é o máximo, o que ele fez ninguém mais vai fazer.


PLAYBOY — Pensando bem, o seu destino foi generoso: você foi grande amigo do Senna e ainda faz dupla com o Pelé.


GALVÃO — Isso é o homem lá de cima, que é meu amigo. Realmente, é muita estrela: eu considero o Pelé e o Ayrton Senna as duas maiores personalidades do esporte mundial em todos os tempos, e eu pude conviver com elas.


PLAYBOY — Na convivência, qual a principal diferença no estilo deles?


GALVÃO — O Ayrton também era uma pessoa muito assediada o tempo todo, mas tinha os seus momentos de privacidade. Por exemplo, ao entrar num restaurante ele avisava: "Estou com meus amigos, vou jantar e depois atendo todo o mundo." Já o Pelé não sabe dizer não. Lembro que uma vez nós estávamos no Chile, fazendo as eliminatórias, e saímos uma noite para jantar — eu minha mulher, o Chico Anysio, o Pelé e mais algumas pessoas. Era um restaurante italiano de Santiago, chamado Due Torri, e eu fiz a reserva avisando que o Pelé estava no grupo. "Oh!", se emocionou o sujeito. "O Pelé vai jantar no meu restaurante!" Eu falei que ia, sim, mas que tinha o seguinte: nós queríamos jantar tranqüilamente, conversar à vontade, e depois ele falaria com as pessoas, colocaria criança no colo, essas coisas. E assim foi. Ficamos umas três horas na mesa, você imagine — o Chico Anysio começou a contar história, eu também não falo pouco, e o tempo foi passando. E o Pelé foi ficando indócil, olhava para os lados... Nós chegamos a uma conclusão: ele estava sentindo falta do assédio, daquele tumulto, acho que isso nunca tinha acontecido. Imagino o que pode ter passado na cabeça dele: será que me esqueceram? Será que, finalmente, acabou o reinado? Mas nada disso — quando o jantar acabou, veio todo o mundo para a mesa, foi aquela bagunça que se repete no mundo inteiro.


PLAYBOY — O Senna sempre passou a imagem de ser mais contido.


GALVÃO — Mesmo mais reservado, ele era uma pessoa muito divertida. Uma vez, em Portugal, o Ayrton estava hospedado num lugar chamado Quinta da Marinha e passei lá para conversar antes de irmos para o autódromo. Fomos em dois carros. Antes, ele perguntou o caminho que eu ia fazer e respondi que voltaria para Cascais, dali entraria no Estoril e pronto. Ele disse: "Ih, rapaz, que besteira! A gente sai aqui na direção do. Faro, do Guincho, pega uma serra e quando descer já sai no autódromo." Eu falei que não conhecia o caminho e ele me garantiu que era só ir atrás dele. Eu fui. Nas ruas, na estrada, ele foi mandando o cacete, e eu atrás. Chegando na serra, era uma coisa assustadora: parede de um lado, precipício do outro. Ele começou a acelerar cada vez mais e eu fui me apavorando. Pensava: não posso perder ele de vista, porque se ficar sozinho não sei onde estou. Nunca andei tão rápido na minha vida. O que ele fazia eu fazia, o que ele fazia eu fazia — até um ponto em que não deu mais e ele sumiu. Aí dei numa encruzilhada. E agora, vou para a direita ou para esquerda? Pensei: esse cara fez de propósito. Se mandou e estou perdido aqui no meio desse Portugal. Escolho uma direção, vou à toda, e de repente ouço uma buzina, uóóóó, quando vejo no retrovisor um carro preto crescendo na minha direção. Olha que eu já estava andando o que imaginava que qualquer cidadão no mundo pudesse andar, mas ele me passou por fora numa curva, deu um cavalo-de-pau e parou de frente para mim. Morrendo de rir. Ele tinha se escondido atrás de uma moita, me deixou passar e me alcançou lá na frente. Isso foi em 1985, três dias antes de ganhar a primeira corrida dele, na Lotus.


PLAYBOY — Outra coisa que se imaginava do Senna é que tinha poucos amigos entre os pilotos. Você ficou surpreso com a reação deles à morte do Senna — a do Prost, por exemplo, que veio para o funeral?


GALVÃO — Não, não me surpreendi. O Ayrton e o Prost foram um para o outro os maiores rivais de suas carreiras, num esporte em que a rivalidade fica ainda mais acirrada pelo risco, pelo prestígio, pelo dinheiro que isso tudo envolve. Nunca vi uma rivalidade tão grande, tão dura e tão cheia de lances espetaculares. Mas, ao mesmo tempo, eles sempre tiveram de parte a parte um profundo respeito profissional. Tenho certeza de que ambos sabiam exatamente o quanto um foi importante para o crescimento do outro. Eu digo crescimento em todos os sentidos —tecnicamente como pilotos, como ídolos e como faturamento. No próprio fim de semana da morte do Ayrton, depois de um treino, a televisão francesa colocou os dois em comunicação. Eles se cumprimentaram e o Ayrton falou: "Ô francês, você está me fazendo falta, estou com saudades."


PLAYBOY — E o Nigel Mansell?


GALVÃO — O Mansell mandou uma carta muito bonita à família. Disse que disputou muitas corridas com o Ayrton, na maioria das vezes perdeu e, mesmo quando ganhou, sabia que tinha tido a honra de derrotar o melhor piloto de todos os tempos. Disse que sabia também que o Ayrton tinha o hábito de ajudar anonimamente entidades e pessoas mais necessitadas. Por isso, se a família estivesse pensando em criar uma fundação ou algo assim, por favor não considerasse o valor mas o sentimento — e anexou um cheque de 5.000 dólares.


PLAYBOY — Você e o Ayrton conversaram alguma vez sobre a morte?


GALVÃO — Piloto de automobilismo não gosta muito de falar sobre isso, não.


PLAYBOY — Que tipo de pessoas costumam ser os pilotos?


GALVÃO — Fora das pistas, eles são muito brincalhões. Convivem com o risco a tal ponto que, quando relaxam, voltam a ser crianças. Fazem coisas assim: uma noite, na Inglaterra, o Maurício Gugelmin aproveitou que o Ayrton e o pai tinham ido assinar contrato com a McLaren e forrou o colchão da cama do seu Milton com todos os pesos que conseguiu trazer da sala de musculação da casa. O seu Milton, pai do Ayrton, é um sujeito supermetódico, que se não almoça ao meio-dia e meia, se não janta às 7 e meia e se não está dormindo às 10 da noite fica intratável. Pois naquela noite eles chegaram altas horas, sem jantar, o seu Milton comeu alguma coisa bufando e deve ter se atirado na cama, porque a gente só ouviu um barulho e um grito dele, "filho da puta.ar. O Ayrton aprontou uma vez comigo. Quando viajo, costumo ir ao banheiro do avião, tiro a roupa e ponho um jogging para dormir mais à vontade e não desembarcar todo amassado. Em 1991, estávamos indo de Londres para o Grande Prêmio do Japão e no fim da viagem eu peguei as minhas roupas para me trocar no banheiro. Pus a calça e, quando vesti a camisa, vi que estava com as mangas cortadas nas cavas. Fazia um calor desgraçado, eu tive de vestir um paletó de lã por cima. Na alfândega o Ayrton dizia para os fiscais: "Esse cara é maluco. Manda ele tirar o paletó para vocês verem como ele é maluco." Agora, o campeão mundial de molecagem na Fórmula 1 é o Berger, capaz de pegar o passaporte do outro e colar foto de mulher pelada na identificação, como fez com o Ayrton na Austrália — e, dessa vez, quem passou vexame na aduana foi ele. Um dia enchemos os sapatos do Berger de espuma de barbear, numa viagem de trem-bala no Japão. Nessa noite houve um jantar mais formal e ele teve de ir de tênis. Parou na minha frente e balançou o dedo, assim como quem diz: espera. Isso foi numa quinta-feira. No domingo, uma hora antes do GP do Japão, eu estou no autódromo me preparando para subir na cabine quando encontro o Joseph Lebere, aquele austríaco nutricionista deles, que me oferece um copo de suco de laranja. Eu recuso, ele insiste, diz que acabou de preparar. Por sorte eu não queria mesmo, porque o Berger tinha esperado três dias pensando numa vingança terrível — uma hora antes da corrida, amassou ali quatro comprimidos para dormir e mandou levar para mim. Eu simplesmente ia apagar no início da transmissão da corrida que decidiria o mundial daquele ano. Os carros roncando na pista e eu roncando na cabine, já pensou?


"O suco tinha comprimidos para dormir. Seria o ronco dos carros na pista e o meu na cabine"

PLAYBOY — Essa não foi a corrida em que o Senna abriu para o Berger passar?


GALVÃO — Foi, exatamente essa.


PLAYBOY — A prova em que você disse "Eu sabia!", quando o Berger passou para a liderança no fim.


GALVÃO — É, foi o célebre "Eu sabia!", que me rendeu até um memorando de bronca do Boni [o temido vice-presidente da Rede Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho]. Ele tinha toda a razão, porque, se sabia, eu deveria ter dito antes. Saiu na hora, mas o que eu queria dizer era que esperava aquilo. Acompanhei o papel tático que o Berger tinha desempenhado especialmente naquele final de temporada para segurar o Mansell, porque àquela altura o carro da Williams já era muito superior à McLaren. E imaginava que, se o campeonato do Ayrton estivesse garantido, a equipe poderia mandá-lo abrir para o Berger passar, como acabou acontecendo. Errei, quando percebi já tinha dito aquilo.


PLAYBOY — Como foi a sua saída da Globo em 1992?


GALVÃO — O ano anterior tinha sido difícil, em parte por aquele desentendimento com o Reginaldo, que se arrastou pela temporada toda. E eu também já tinha sido mordido por uma mosca que eu pensava que não ia me morder. Sempre procurei fazer investimentos em outras áreas, mas resolvi montar uma produtora de vídeo que foi crescendo, tinha produções independentes, documentários, comerciais. E eu comecei a sonhar em trabalhar só para mim. Essas fases que a gente passa na vida — "Não quero mais ter patrão!"—, achando que vai poder fazer alguma coisa com mais liberdade, decidir mais seu próprio destino, essa história toda. Em fins de 1991 a minha produtora fazia um programa esportivo independente para a Rede Record, e a OM era afiliada da Record.


PLAYBOY — Você podia fazer um programa fora da Globo?


GALVÃO — Está no meu contrato com a Globo: não posso aparecer no ar em outra emissora, mas como produtora eu posso fazer — eu só tenho de oferecer antes o projeto à Globo, mas se ela não se interessar eu posso negociar com outra emissora. Em março de 1992, a OM paranaense começou o seu processo para virar uma rede nacional. Ela arrendou a TV Gazeta em São Paulo, comprou uma estação do Sílvio Santos no Rio, comprou uma rede em Santa Catarina, uma emissora em Recife. Foi um começo bacana. Eu tinha estudado com o Flávio Martinez, um dos donos da emissora, no cursinho para o vestibular de Economia em São Paulo — aliás, sentávamos lado a lado nesse cursinho eu, ele e o Johnny Saad, filho do dono da Rede Bandeirantes. Fiquei amigo do Flávio e do seu irmão, o José Martinez, montávamos na Hípica de São Paulo, tínhamos coisas em comum. Mas no começo eu entrei só com a minha produtora, e fomos aumentando a participação para dois, três, quatro programas. Até que eles compraram com exclusividade a Taça Libertadores da América de 1992 e me chamaram para ir de vez para lá. Lembro que eu comecei a conversa brincando: "Vocês acham que tem cabimento eu deixar de ser empregado do dr. Roberto Marinho para ser empregado do Zé e do Flávio Martinez?" E o Zé, com aquela rapidez de raciocínio dele, me desarmou, dizendo: "Mas Galvão, você está me ofendendo. Eu nunca chamaria você para ser meu funcionário. Estou chamando você para ser meu sócio."


PLAYBOY — Aí você entrou bem.


GALVÃO — O começo foi fantástico. Muitos profissionais competentes acreditaram naquele projeto de uma rede alternativa, com uma proposta nova, e o Guga, irmão do Boni, montou uma programação muito inteligente que disparou em audiência. A Libertadores foi um sucesso estrondoso. O São Paulo acabou sendo campeão, nós começamos a pontuar em segundo lugar, depois passamos para primeiro — na final chegamos a 53% das emissoras ligadas em São Paulo, foi uma coisa fantástica. Começamos a desenvolver com o Pelé um projeto para reativar a Copa do Brasil, que estava morta na CBF... Mas nenhum de nós tinha a noção exata de como eles estavam atrelados àquele esquema de Collor, de PC, dos cheques-fantasmas. No início jorrava dinheiro. Depois de três ou quatro meses, os profissionais não recebiam mais. Começou o processo do Pedro Collor, os anunciantes do governo passaram a cancelar os contratos... A gente começou a descobrir a realidade. Para mim ficou uma situação particularmente difícil porque, além de não pagar os nossos salários e muito menos a nossa participação pela publicidade que eles continuavam faturando, a OM também não pagava o que devia à CBF e nem pagava ao Marcos Lázaro, o empresário que tinha vendido os direitos para transmitir a Libertadores. Na semana da primeira partida decisiva do São Paulo eu estava apavorado.


PLAYBOY — Chegou a existir a ameaça de não se transmitirem as finais?


GALVÃO — Chegou. O jogo era numa quarta-feira. Na segunda-feira, com toda a pressão dos credores, a posição mais que compreensível do Marcos Lázaro, eu usei meu prestígio para levar a Curitiba o vice-presidente de um banco importante, a quem eu convenci pessoalmente a deixar um empréstimo de 500.000 dólares para o Martinez. Esse banqueiro meu amigo assinou o cheque e foi embora. O Marcos Lázaro estava esperando a gente e o Martinez fez os cheques para ele, um de 100.000 dólares na hora, outro para dali uns dias, outro mais para a frente, e ficaram para acertar o resto depois. Então fomos para o aeroporto, pegar o avião dos Martinez para o Rio, onde o Flávio e eu deveríamos fazer um pagamento de outros 100.000 dólares para a CBF e assinar o contrato da Copa do Brasil. O Marcos Lázaro veio junto, para descer em São Paulo. Só que, quando ele saiu do avião, sem querer eu ouvi um irmão dizer para o outro: "Bom, agora a gente faz essa final e depois esse judeu filho da puta vai ver o dia em que vai receber o resto." Aquilo me gelou. Eu fiquei pensando: onde eu vim parar, onde eu fui me meter? Olha, depois eu soube: o Martinez foi tão desleal comigo que às 4 da tarde recebeu aquele cheque de 500.000 dólares e às 8 da noite já tinha emitido 800.000 dólares em cima daquele valor.


PLAYBOY — Mas você ainda continuou lá?


GALVÃO — Eu continuava acreditando no processo, tinha muito amor pelo trabalho que estava sendo realizado. Acho que não queria acreditar que fossem tão desonestos assim, eles eram muito envolventes, sedutores. Segui algum tempo, mesmo contra os conselhos da minha mulher. E a dívida dos Martinez comigo foi aumentando, os fixos, as participações em publicidade, não recebia mais nada. Um dia, uma segunda-feira no começo de 1993, eu perdi a paciência e disse: "Se vocês não me pagarem hoje parte do que devem, eu junto minhas coisas, o meu pessoal e vou-me embora" — porque além de tudo eu tinha levado para lá os equipamentos da minha produtora. Eles ficaram me enrolando e às 8 da noite eu mandei encostar uma caminhonete e duas kombis e comecei a desmontar tudo o que era meu — VT, câmera, computador, ilha de edição. O Zé Martinez estava em Brasília, o Flávio se trancou lá em cima e eu chutava a porta dele, chamava para briga, foi um escândalo. De madrugada um emissário do Flávio me procurou com um cheque de 350.000 dólares, que eu não quis nem ver. No dia seguinte o Zé chegou de Brasília e tivemos uma conversa em que ele garantiu que as coisas iam mudar, que ele ia pagar todo o mundo, ia vender uma emissora, me oferecer sociedade em outra, em Londrina, me pediu para dar esse crédito de confiança. E eu, mais uma vez idiota, envolvido pelo sonho de fazer alguma coisa, cedi. Naturalmente os cheques que ele me deu não tinham fundo, mas eu ainda fiquei um mês porque tinha um compromisso com o Campeonato Paulista de Basquete — fiz até o último dia, até a última transmissão.


PLAYBOY — Tendo de dizer o seu slogan na emissora: "Rede OM e você, amigos para sempre".


GALVÃO — É, aquelas coisas. Até hoje estou na Justiça tentando receber o que me é de direito.


"Nenhum de nós tinha noção de que eles estavam no esquema PC. Entrei na Justiça contra a Rede OM"

PLAYBOY — "Amigos para sempre'', "Bem, amigos da Rede Globo", grande amigo do Senna... Essa é uma palavra ligada à sua imagem. Na verdade, quem são seus maiores amigos?


GALVÃO — Eu tive um grande, um imenso amigo chamado Janos Lengyel, que foi um extraordinário jornalista húngaro e que um dia me perguntou o seguinte: "Quantos amigos você acha que tem?" Eu respondi que achava que tinha muitos. Então ele disse: "Quantos deles emprestariam dinheiro a você?" Respondi que seriam alguns. "E quantos deles", voltou a perguntar o Janos, "emprestariam esse dinheiro sabendo que você teria dificuldades para pagar?" Pensei um pouco e reconheci que seriam poucos. E ele perguntou uma última coisa: "Agora, quantos saberiam de suas dificuldades financeiras e, sem que você pedisse nada, tomariam a iniciativa de oferecer ajuda?" Eu pensei bem e concluí que seriam muito poucos. "Pois esses são seus amigos", disse o Janos. Então, hoje eu acho que tenho muitos colegas, vários companheiros e alguns poucos e belos amigos.


PLAYBOY — Aquele seu espectador que você enlouqueceu vinte anos atrás, na Copa da Alemanha, trocando a Suécia pela Austrália... Digamos que tenha se internado e, agora, esclarecido o caso nessa entrevista, ele saia e volte a ligar a televisão nessa Copa. Ele vai reconhecer você?


GALVÃO — Bom, a minha voz mudou. Eu amadureci, aprendi a colocar a voz, a torná-la mais grave, a subir e a descer no momento certo. Mas eu nunca tive muito volume, potência, até hoje eu não tenho um grito de gol que exploda, como o Luciano do Valle, que é um narrador que eu admiro. Eu sempre procurei compensar isso pelo conhecimento, pela emoção, pelo sentimento — e nisso eu não mudei. Por dentro eu continuo o mesmo. Ele ia me reconhecer, sim.


POR GUILHERME CUNHA PINTO

FOTOS RICARDO FASANELLO


172 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Kommentare


bottom of page