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NÃO ME PERGUNTE NADA, AMOR

Ficção


Aquela mulher fantástica o perseguia. No trabalho, em casa, na rua. E ele adorava cada momento dessa perseguição


Por ALBERTO LÓPEZ TORRES


— Não me pergunte nada, amor.


— Me diz apenas onde mora, o que faz?


— Amor, se eu lhe dissesse tudo...


— Mas preciso saber seu nome... Como poderia me lembrar de você se...


— Lhe deixo minha pele tatuada na sua pele... Te encontro amanhã.


— Espere um pouco...


Mas Ela ia embora deixando o quarto cheio de sua ausência. Uma tristeza de curva de rio crescia nele desde o fundo do seu sangue — uma tristeza sem palavras, quase alegre, que vagamente sorria nas suas mãos deixando escapar a lembrança da sua pele.


Haviam se encontrado três vezes e ele acreditava conhecê-la desde sempre. Não lembrava como a tinha conhecido. Sua lembrança já estava envolvida por essa névoa em que a memória transforma o tempo. Quando a encontrava era mais uma lembrança do que uma mulher. Mas, de repente, o tempo perdia sua forma e Ela surgia com uma violência inesperada, impondo-lhe sua presença, como a resposta exata para cada um dos seus poros. Era Ela, a enigmática, Ela que absolvia todas as suas perguntas e, ao mesmo tempo, o fazia sentir sua resposta.


Fazia mais de cinco anos que trabalhava como escriturário no 3.° Tabelião. Era um lugar sórdido, com um cheiro úmido emanando dos montes de papéis, enquanto velhas e pesadas máquinas de escrever metralhavam os ouvidos dos funcionários.


— Carlos Guilherme, se você quiser conservar seu emprego, acho melhor prestar mais atenção ao que está fazendo. Ultimamente suas minutas estão infestadas de alusões eróticas e isso eu não posso permitir. Tudo menos pornografia!


— Pois não, doutor — respondia, enquanto arregaçava as mangas da camisa, sentado diante da sua velha Remington: "Ao norte, numa extensão de 23 metros e 17 centímetros, com o senhor Benedito dos Santos. Ao sul... seus imensos olhos sedentos suplicantes... A oeste, em toda a sua extensão com o rio... caudal das suas coxas transbordantes e suas unhas procurando o porto dos meus ombros no meio da tormenta do seu ventre... A leste... o precipício dos seus seios".


O cartório perdia seu ar sórdido para ganhar um aroma de terra úmida, e o ruído das velhas máquinas se transformava no estalo das folhas secas do bosque, quando...


— Carlos Guilherme — gritava seu chefe. — Isto não é um templo budista. É um tabelião. E, para sua maior informação, acho que devo dizer-lhe que hoje em dia ninguém mais ganha a vida olhando para o umbigo.


— Desculpe, doutor... seu umbigo, algibe de mel... caverna de terremotos escondidos limitando ao sul com o escuro triângulo do seu sexo... e, diante de mim, 3.° Tabelião, disseram... tua língua, cacho de uvas delirantes... tuas axilas, côncavos vulcões em repouso à espera...


— Carlos Guilherme! Por favor, Carlos Guilherme! — repetia-lhe inutilmente o tabelião, enquanto ele sumia na névoa, procurando-a, reencontrando-a dentre a névoa para de novo perdê-la entre os gritos irreverentes de seu chefe.


Seis horas da tarde e, na rua, a multidão se atropelando, se agredindo. Nada havia mudado. Apenas ele. Agora se lembrava, quase com tristeza, quantas vezes deambulara entre essas mesmas gentes, por essas mesmas ruas, esperando a noite chegar para ir até o parque ao encontro das prostitutas que fatalmente viriam com seus gestos ostensivos e caricaturais de luxúria, que se perdiam na sua própria intenção, não chegando a ser impudor, mas apenas o reverso do pudor. Quando saía do parque, sujo do nojo da sua própria merda, reencontrava sua solidão maltratada pela frustrada companhia — sem nome, sem rosto, sem voz — porque a memória se estabelecia nas mãos para lembrar com minuciosa exatidão a pele morna das coxas e as convulsões inocentes das nádegas acompanhando o intencionado, fraudulento frenesi dos quadris.


Era ele quem havia mudado. Agora, andando entre a multidão, não sentia a agressão dessas gentes — suas antigas colegas de solidão. Caminhava por essas mesmas ruas que um dia foram intermináveis caminhos para a escuridão. Andava procurando-a, até sentir a proximidade desse ar denso — quase névoa — que lhe anunciava a sua presença.


— Amor... Amor...


E a névoa dissipando-se no calor dos seus lábios, na pressão dos seus seios, no corpo amado que crescia entre seus braços... E seu monólogo, sem ele perceber, se fazia diálogo.


— Gosto de encontrá-la assim... É como se a minha vida se cruzasse com a sua.


— Amor, você adora converter as situações em palavras.


— Talvez. Mas, quando você me diz, "te vejo amanhã" e não me diz onde nem a que horas, está me exigindo que transforme o aleatório em predeterminado, e eu aceito porque o risco é mínimo.


— Vem amor...


E perambulavam pelas ruas, sem pressa, com um futuro imediato certo. Tomavam café, logo depois, uma cerveja, Ela dizia "vamos", e voltavam a andar abraçados em silêncio — olhando para os pés, brincando de manter o mesmo passo.


— Boa noite — dizia-lhe o porteiro, como lhe havia dito nos últimos dez anos de solidão. E a penumbra dos degraus o aproximava, passo a passo, do odor que escapava pela fenda da porta do seu apartamento. Era um odor que antes foi silêncio de ruídos repetidos — a goteira da pia, o motor da geladeira... E essa sombra fria dos cantos que ganhavam um pouco de calor e de luz perto da única janela. Esse odor-silêncio de ruídos repetidos, que antes era o caminho de uma insônia castigada a chicotadas pela memória, agora era seu refúgio, sua terra firme.


— Quando a beijo, meus lábios se confundem a tal ponto com os seus, e a minha língua com a sua se unem de tal forma que apenas a sua respiração entrecortada me prova que você existe...


— Se as palavras o amassem como você as ama...


E tirava a blusa; despia-se cuidadosamente, com uma lentidão que deixava de ser intencional para transformar-se num gesto definitivo, como se abandonasse suas roupas para sempre. Andava nua, cortando a solidão, o silêncio-odor e o ar do apartamento, até convertê-lo em seu espaço, até encher com a luz dos seus quadris mesmo os mais recônditos cantos, até transformar toda essa cinzenta monotonia num cheiro de mulher transbordando pelas barreiras da sua pele — e ele nem tinha tempo de tirar suas meias azuis de listras brancas, nem seus óculos de oito dioptrias, e já se lançava, com a coragem acumulada em seus trinta e seis anos, nesse mar de altas ondas. E suas coxas se afogavam em seu corpo, queimando-lhe a pele, enquanto suas mãos se detinham largamente minuciosas na curvatura das nádegas e um cardume de pêlos se agitava entre seus dedos. Os lábios dele procuravam sua boca, seguindo a rota das suas axilas e seus seios, e Carlos Guilherme naufragava definitivamente num alarido de alívio nascido no mais profundo abismo do seu sangue. E, quando o corpo havia dito sua última palavra, sentia sua solidão crescer em companhia.


As mãos dele se detinham nas nádegas da mulher e um cardume de pêlos se agitava entre seus dedos

— ... Apenas o seu nome.


— Eu.


— Não tem curiosidade de saber o meu?


— Você um dia chegará a esta estranha igualdade: 1+1= 1.


— Certamente, mas eu preciso saber da sua vida, das pessoas que a rodeiam, dos seus sonhos...


— Não me pergunte nada, amor... Se eu lhe dissesse tudo...


E Carlos Guilherme a via recolher suas roupas tão definitivamente abandonadas, arrumar o cabelo com um gesto que ele imaginava ter a intenção de criar uma lembrança insinuante apesar de que sua significação presente era a de uma fatigada coqueteria, e se deter ainda antes de abrir a porta para dizer-lhe:


— Vai chegar tarde ao trabalho... Te encontro depois.


"Te encontro depois", ele se repetia, indo sem pressa para o tabelionato — regressando d'Ela por um corredor de paredes negras, com janelas espaçadas por onde ele olhava distraidamente a rua invadida por seres estranhos, de gestos duros, empurrando-se, insultando-se, andando contra o tempo.


— Carlos Guilherme — gritava-lhe o tabelião. — Isso não é hora de chegar. — Um sorriso ambíguo crescia em seus lábios, um sorriso dissecado por um taxidermista inapto. Um sorriso que simultaneamente era a ponte que lhe permitia entrar no mundo do tabelião e o muro que o separava do tédio e da rotina do cartório, permitindo-lhe submergir no universo de sua bem-amada, na sua verdadeira existência. Porque o cartório era apenas um pesadelo. Sua realidade era tão precária que bastava-lhe seu sorriso dissecado para que o ruído das máquinas de escrever fosse se afastando até desaparecer no redemoinho das suas perguntas: "...Por que não me diz seu nome?... Seu endereço?... Será casada?... Mas, afinal, o que me importa seu nome, se mesmo agora meus dentes mordem seu cabelo e aqui nos meus ouvidos batem as pulsações da sua femoral, enquanto suas coxas oprimem meu rosto e minhas mãos deambulam enlouquecidas por suas pernas, perseguindo a raiz da sua penugem, submergindo em sua pele para sentir a úmida viscosidade de seus músculos, penetrando nela, inquirindo seus mais profundos rincões, esquadrinhando as mais esquecidas reentrâncias de seu corpo?... Se mordo sua boca com uma violência que inesperadamente se resolve em ternura e, desde essa ternura, entrego-me totalmente a Ela, ao delírio dos seus dentes?..." O seu sorriso dissecado sucumbiu à voz do patrão:


— Carlos Guilherme, você está demitido.


Nada perguntou. Colocou o paletó, limpou os óculos com a ponta da gravata e enfrentou a rua. Não a reconheceu. Às dez da manhã, era uma rua diferente. Era quase igual ao cartório — seu sorriso também podia fazê-la desaparecer —, só que a rua não tinha patrão.


Andou entre as pessoas, esperando-a. Quando entrou no parque, Ela lhe disse:


— Amor. — Ele a segurou com o olhar, porque a voz lhe chegou desde dentro e não do banco do parque, onde ele agora, quase surpreendido, olhava para Ela. Um segundo de desolação, porque Ela o cingiu com a totalidade do seu corpo e murmurou em seu ouvido. — Vamos, amor.


Em seu apartamento também tudo era diferente. Parecia domingo. Pareciam essas onze horas da manhã que ele tanto conhecia. Essas onze horas da manhã de domingo, quando ele, de regresso do território dos seus sonhos, entreabria os olhos e se descobria habitando esse corpo anônimo — esse soldado desconhecido da vida, abandonado até pelos seus próprios sonhos — e então fechava novamente os olhos para iniciar sua cotidiana coalescência, para começar a ser, para ter um nome e um endereço conhecidos, para respirar esse ar que se identificava com seus protestos e que incontáveis vezes exigiu dele um posicionamento diante do vazio da sua existência. Mas agora, mesmo junto a Ela, sentiu essa exigência, como se as onze horas da manhã fossem mais importantes do que a presença d'Ela, como se a vida d'Ela dependesse mais do tempo do que do espaço. E foi seu sorriso — sem ar, sem gesto — o caminho que sua coragem encontrou para dizer-lhe:


— Fique comigo para sempre, amor!


Ela olhava para ele desde as mais insuspeitáveis lembranças — apagadas lembranças de turvas noites solitárias —, enquanto desabotoava a blusa com um gesto que era face escondida do pudor. Depois foi até a janela e, liberada do gesto, despiu-se e deixou que o vento levasse suas roupas.


Ele a viu nua contra a luz, aproximando-se, balançando os quadris com uma cadência que ele percebeu ser inexistente, de tal maneira respondia com exatidão à sua expectativa. E seus seios e suas coxas e seu ventre se multiplicaram, e suas axilas e seu sexo se fundiram com seu sorriso crescendo por todos os cantos. E ele, reconhecendo-a em suas mais profundas origens, chegou a saber que Ela não existia e foi certamente por isso mesmo que ele se abandonou definitivamente a Ela.


ILUSTRAÇÃO NEWTON MESQUITA


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