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O CEPEFÊ

Ficção


De como Olegário Spencer Gibbs deixou Tanquinho de Feira para ir à Bahia conseguir seu cartão de CPF


Por JOÃO UBALDO RIBEIRO


O Estado da Bahia, como sabem todas as pessoas que cursaram o ginásio, principalmente as que cursaram o ginásio no Estado da Bahia, tem o mesmo tamanho que a França. Aliás, é um pouquinho maior, mas, mesmo assim, dificilmente se encontra um francês no Estado da Bahia. Na capital, ainda podem ser vistos dois ou três, notadamente na época turística, quando eles e elas surgem no começo da manhã, eles sem cabelos no corpo, elas com cabelos saindo de dentro dos biquínis, eles perguntando onde podem achar des négresses, des grosses négresses et beaucoup de soleil. Entretanto, essa presença se constitui em exceção, pois, na maior parte das vezes, só se consegue encontrar um número certamente excessivo de baianos e uma quantidade quiçá exagerada de sergipanos, bem como diversos paulistas, a maioria deles falando mal de São Paulo e fumando alface seca temperada com sementes de maconha, prática que inflaciona lamentavelmente o mercado de alface. Não se pode também obscurecer a existência de inúmeros americanos, devendo-se, entretanto, alegar em favor deles que muitos permanecem no interior, cumprindo missões do Peace Corps, ocasião em que ensinam ao campesinato local como é uma vaca e como é uma cabra e como é um bacorinho. Outros ficam espionando para a CIA as nossas centrais nucleares, desfrutando da vantagem, nem sempre obtenível alhures, de que russos e chineses não são normalmente admitidos¹.


De qualquer maneira, é inegável que não há, nem de longe, para um Estado do tamanho da Bahia², um número significativo de franceses. Por essa razão, o viandante incauto haveria que sobressaltar-se — ou ao menos quedar boquiaberto de espanto — ao perceber que Olegário Spencer Gibbs, saindo da Praça Municipal, correndo de um membro da milícia estadual pelo Terreiro e enveredando pelo Maciel, encontrou nada menos que oito franceses, sete dos quais lhe dirigiram a palavra e um dos quais deu a Olegário uma idéia. Antes, porém, há que fazer um breve retrospecto, onde se verá como Olegário chegou a tal lugar e tal situação, bem como a forma pela qual o francês lhe deu uma idéia³.


Olegário Spencer Gibbs havia emigrado rapidamente de Tanquinho de Feira (ou Jeremoabo, segundo alguns), onde, numa cena hilariante, se despediu de sua mulher parida, a qual, com a brejeirice da sertaneja, lhe informou:


— Ô Olegá, num sabe-num, que Deus A-Deus levou Orofin.


Olegário explodiu numa gargalhada. Com que então Orofino, que já tinha passado dois dos sete dias costumeiros, havia seguido o mesmo destino que Rosália, Maneco, Gelomatic, Rúzelvete, Ronivaldo, Florisvaldo, Paminôndio, Leontina, Lindinalva, Patibune, Roialbriar e Jurandy (este último com nome que serve para homem ou para mulher, porque quando morreu não se sabia ainda ao certo)? Olegário, mal abafando o riso, pensou que o danadinho bem que já vinha mostrando aquela risadinha — forma pitoresca com que o rude homem do campo denomina o rictus sardonicus, adorno conferido à face dos moribundos de tétano (o que ocasionou a observação de uma repórter de TV do sul do país, mal sopitando o pranto que lhe vinha aos olhos: "deste inferno de sol e seca, desta pobreza esquálida, os anjinhos do nordeste parecem saber que vão para lugar melhor, porque morrem com um sorriso").


— Bem que o compadre lnput queria apostar que esse menino se criava — disse Olegário. — E, se eu tivesse apostado que não se criava, tinha ganhado o que quisesse, visto que o compadre Input, só numa feira de sábado, faz dinheiro que nem ladrão acaba, prá mais de 70 contos.


Mais tarde, em conversa numa bodega da supramencionada cidade de Tanquinho, Olegário ouviu a explicação de que, na Bahia, ele poderia achar um infalível remédio para que os meninos não viessem a morrer com uma semana de nascidos, já que nem o estrume de vaca colocado no embigo com todo o carinho, nem o fumo de corda pilado, nem folhas frescas de bananeira brava adiantavam nada. Além disso, Olegário tinha que ir à Bahia de qualquer maneira, porque tivera problemas com certos recebimentos e outras providências, por não possuir cartão de C.P.F. O funcionário do banco que informou sobre a situação se chamava Octacílio e tinha um olhar algo demente. Para que você não se esqueça, disse o funcionário, você deve cantar sempre esta musiquinha:


Sem Cepefê, eu não posso viver.


Sem Cepefê, eu não posso viver.


(Breque: Eu vou morrê-ê!)


Spencer Gibbs, assim, enterrou alegremente o sorridente Orofino e demandou à Cidade do Salvador, onde viria a hospedar-se sob a marquise do cinema Excelsior, instalando-se nas proximidades de um tabuleiro de baiana ali sediado durante o dia, aproveitando, desta maneira, o calorzinho do fogareiro, tão necessário nestes dias em que a ensolarada Bahia, entre raios fulgurantes de sol e o azul flamejante do céu, presenciava o despencar de algumas toneladas de chuva, as quais derrubaram todas as casas na beira do Dique, soltando aquela colorida massa humana pelas ruas, numa gloriosa visão da pitoresca população que só a Bahia parece ter. Por outro lado, os desabamentos fizeram com que Olegário tivesse companhia debaixo da marquise, já que não chove debaixo da marquise. Foi nessa ocasião que Olegário conheceu um rapazinho por nome Insumo, o qual, depois de perguntar-lhe quanto dinheiro ele tinha na mão, cobrou-lhe exatamente a mesma quantia para mostrar-lhe onde era a Delegacia Regional do Imposto de Renda. Olegário, de cartão de cepefê em punho, mirou-o orgulhosamente:


— Cartãozinho caro da pustema. Vou falar com compadre Cashflow prá comprar uns quatro aqui prá revender em Tanquinho, que deve dar bom lucro.


De qualquer forma, o cepefê de Olegário, se lhe dava a solução para um problema, lhe causava outros, pois que o impossibilitava de comer e de voltar para casa como tinha planejado. Por essa razão, Olegário se pôs a andar pela cidade, havendo por acaso entrado na Câmara Municipal, onde, assim que passou pela sentinela, encontrou um vereador e, por nunca ter visto um vereador, olhou fixamente para ele.


— Seu caso já está resolvido — disse o vereador celeremente, desaparecendo em seguida.


Olegário maravilhou-se com a rapidez da solução para o seu caso, se bem que permanecesse intrigado sobre como o vereador soube de tudo sem trocar uma palavra com ele. E ali se postou, esperando que viessem entregar-lhe a solução e ponderando como era um homem de sorte, que não só tinha tido a felicidade de estar com a quantia exata para comprar o cepefê, como encontrara logo um homem que resolvera seu caso. Não obstante, havendo transcorrido algumas horas desde que o vereador falara, Olegário decidiu-se a inquirir um circunstante. O primeiro informou que não tinha trocado, o segundo lhe deu um cruzeiro e o terceiro pediu que o procurasse amanhã, na mesma hora e no mesmo lugar. Finalmente, tendo descoberto um que lhe pareceu em condições idênticas à sua, Olegário ouviu que a única explicação plausível seria a de que também ele estava contratado para o serviço de cavar cadáveres nos desabamentos do Dique. Muito satisfeito com a abertura de novo mercado de trabalho, Olegário dirigiu-se ao Dique em companhia de seu informante. Lá chegando, procurou um homem que parecia dirigir as escavações e perguntou se era ali que a pessoa se oferecia para o emprego de cavar cadáveres. O homem lhe disse que entrasse na fila e Olegário entrou na fila, a qual arrodeava o dique e começava na avenida Vasco da Gama. Olegário, com a graça e o humor do baiano, comentou que ainda bem que estava chovendo, porque assim não tomavam sol. Confiante, apertou seu cepefê no bolso. Por falta de cepefê é que não ia perder o emprego. Contudo, depois que a fila já tinha andado um pouco, dando oportunidade a que os olhos felizes de Olegário pasmassem ante toda a beleza luxuriante de sua terra natal, fazendo com que ele esquecesse a fome, o frio e a falta de dinheiro, pois quem vive nesta terra não precisa de dinheiro nem comida, que este sol é vida e este mar é força, a fila parou.


OLEGÁRIO, COM A BRAÇA E O HUMOR DO BAIANO, COMENTOU : QUE BOM QUE ESTAVA CHOVENDO, ASSIM NÃO TOMAVAM SOL

— Por fineza — disse Olegário , aqui não é a fila para o pessoal de cavar "cavades"?


— É — disse o perguntado. — Mas parece que não estão precisando mais de gente.


Divertido com aquela irônica situação, Olegário, entre gargalhadas, indagou de seu companheiro sobre outras oportunidades de emprego, recebendo a resposta de que a única solução, no momento, seria catar mariscos no Lobato, onde a concorrência era pouca, porque os mariscos estavam contaminados de mercúrio e assim havia chance para os mais empreendedores. É serviço prá homem, acrescentou o informante, não é prá qualquer um. Entretanto, Olegário raciocinou que, ao chegarem lá, já estaria escuro, de maneira que comprou um pão com o cruzeiro que lhe deram e foi para a marquise do Excelsior, a fim de repousar das canseiras do dia e pensar no futuro. No caminho, deteve-se um pouco para assistir a um programa de TV na vitrine de uma loja, no qual um homem explicava como a situação estava melhorando dia a dia⁴. Olegário alegrou-se mais uma vez com a sua sorte, porque já estava ficando chateado com aquilo tudo e, se o homem não explicasse como tudo estava ótimo, podia ser até que ele não percebesse.


— O nosso cash flow — disse o homem — está em níveis excelentes.


— Ave Maria — pensou Olegário compadre Cashflow tá rico como o diabo. Até as otoridades já fala nele.


Já quase chegando ao Excelsior, Olegário se deteve diante de uma bela peça, na qual pôde ler, depois de conferir algumas letras na cartilha que sempre trazia consigo, a informação de que se tratava de um maravilhoso aparelho, o qual, pressionados alguns botões e tomadas outras providências, forneceria dinheiro ao necessitado, sem maiores problemas. "Dê seu número apertando os botões", informava o aparelho. Olegário maravilhou-se mais uma vez. Só pode ser o número do cepefê, pensou, sacando o cartão do bolso e passando a, laboriosamente, apertar os números nos botões do aparelho. Quando estava no segundo número, apareceu um guarda.


— Que é que está fazendo aí? — perguntou o guarda.


— Tou vendo se pego um dinheiro aqui — disse Olegário.


— E com certeza você é cliente do banco — disse o guarda.


— Não. Mas estou só.


— E o que é que tem isso? — gritou o guarda.


— Diz aqui — explicou Olegário pacientemente, apontando as letras grandes na parte de cima do aparelho —, diz aqui sós. Portanto, é para as pessoas sós.


— Diz aí esse-o-esse! — gritou o guarda mais ainda. — Não diz sós, diz esse-o-esse!


— Xi — pensou Olegário. — Buli num negócio da Marinha.


E, notando que o guarda dificilmente se sensibilizaria ante as suas ponderações, além de, nunca tendo visto um navio, alimentar grande medo da Marinha, Olegário desembestou pela Ajuda acima, em direção à praça da Sé. O guarda, contudo, parecia ganhar terreno e teria alcançado Olegário antes de ele entrar no Terreiro, se não fossem os sete franceses que estavam no viaduto da Sé e que quiseram falar primeiro com Olegário. Este, alegando estar com uma certa pressa, prosseguiu na carreira, mas o guarda, quando viu que as máquinas fotográficas estavam apontadas em sua direção, deteve-se instantaneamente.


— Jornalistas? — perguntou o guarda, levantando o cassetete.


Quoi? — disse um francês.


— Ah, turistas — disse o guarda entreabrindo um sorriso alvar. — Cinco contos a pose.


Desta forma, quando Olegário estava chegando aceleradamente ao Maciel, pôde atender à solicitação do francês, que carregava uma bolsa a tiracolo e desejava circular por aquela área da cidade em companhia de um nativo. Olegário pensou em certificar-se de que o francês não era falso ao corpo, mas este falou logo que pagaria, de forma que Olegário se benzeu e pensou que fosse o que Deus quisesse. Este francês — pensou Olegário — vai pagar tudo. E de fato o francês pagou. Andando pela cidade, com o francês interessadíssimo, Olegário passou uma semana percorrendo as atrações turísticas da cidade. O francês tinha um quarto no Maciel mesmo⁵, e Olegário pôde dormir em outro lugar que não sob a marquise do Excelsior. E pôde mais uma vez agradecer a Deus haver nascido nesta terra abençoada, onde cada esquina é um mistério e cada canto um fascínio, pela sua tipicidade e autenticidade. O francês filmou um grupo de capoeira, em pleno Mercado Modelo.


O grupo interpretou uma canção folclórica:


Berimbaus (Rock-balada)

I not good for you, ma mma, oh yeah!

I am go away to California, oh yeah!

To forget you and your love I forever thinking of.

Think of, think of, I think of you, baby.

I come back someday maybe. (One more time)

I not think I can forget you

Because always I think I get you

And when I get you, what luck,

We go to do a lot of (expletive deleted)


E a vida se desenrolava despreocupada e feliz.


Todas as manhãs, antes da ronda habitual, Olegário ia ao mercado comprar o almoço, a ser cozinhado pelas mulheres, em companhia do turista francês, que já havia declarado estar decidido a ficar morando ali para todo o sempre, devido à luz maravilhosa da terra, à autenticidade do povo etc. etc. Na sexta-feira, foram ao mercado comprar camarões.


— Mas que camarões horríveis — disse o francês. — Todos pardos, cinzentos, quase pretos. Eu sempre vejo camarões rosados, vermelhinhos.


— A mulher disse que este camarão está fresco — disse Olegário.


— Ah — falou o francês. — Cette merveilleuse naiveté.


E o francês tanto procurou que encontrou alguns camarões com pintinhas vermelhas, muito mais satisfatórios do que os outros. De noite, contudo, em havendo Olegário se recusado a partilhar do almoço e tendo o francês comido todos os camarões, o francês não estava bem. Ai, disse o francês, sentado num penico. Que horror, disse o francês.


Mas também Olegário estava mal, por seu lado, muito pálido e arfando num canto do quarto. O francês, que tomava um chá trazido pela rapariga Multinacional Teixeira, inquiriu-lhe sobre o que era, já que ele não havia comido os camarões.


— Ah, é doença de Chagas — explicou Multinacional. — Depois passa.


— Depois passa e ele não tem mais nada? — perguntou o francês. — Ele não morre?


— Não — disse Multinacional.


— Depois passa. Num depois desses é que ele morre.


— Ah — disse o francês.


Mais tarde, passada a crise, o francês fez algumas investigações no local e descobriu que, além de doença de Chagas, a morada ali ainda podia render leptospirose e talvez elefantíase — quem sabe? O francês ficou revoltado e mostrou toda a sua solidariedade a seus companheiros.


— Vou embora — explicou o francês, indignado. — Depois eu volto.


— Sim — disse Olegário, recebendo o dinheiro que o francês lhe dava.


— Meu irmão — disse o francês a Olegário, com a voz embargada pela emoção. — Nunca vou esquecer você. E pode ter certeza: se você estiver para morrer, eu morro por você.


Olegário ficou muito satisfeito com aquilo, porque, demonstrando mais uma vez a sagacidade do brasileiro e a malícia do nordestino, convencera o francês, sem esforço, a morrer por ele⁶. Com o dinheiro, Olegário pôde voltar a Tanquinho, munido do remédio e disposto a fazer outro filho, que de fato fez. E, antes de o menino vir a morrer, com o tradicional sorriso da família, chegou a ser um simpático neném, atendendo pelo nome de Esse-o-esse. Na volta do enterro, Olegário Spencer Gibbs, assoviando de contente com a beleza do dia e a riqueza daquelas terras abençoadas, teve uma pequena crise.


— Mulher — disse ele a sua mulher, que já estava grávida de Cadávio —, venha cá. Não é que eu vá morrer, porque aquele francês ficou de morrer por mim. Depois passa. Mas, por via das dúvidas, se num depois desses eu morrer, quando chegar o homem para fazer o enterro não se esqueça de mostrar a ele o meu cepefê.


¹ A opinião alarmista de parte da imprensa norte-americana, quanto ao assunto, não deve ser levada em conta (cf. We Are Losing Caculé to the Russians, in Reader's Digestion).

² Maior que a França. Maior que a Holanda, a Bélgica e a Suíça juntas. Não é mole, não.

³ Na verdade, o retrospecto não era rigorosamente necessário, já que a história poderia ser contada direito. Contudo, nunca é prudente deixar passar a oportunidade de mostrar à crítica especializada que sabemos escrever e inclusive que sabemos que a expressão em vernáculo é flashback. O ideal seria que não falássemos no flashback, para que a crítica o descobrisse sozinha, mas não custa nada dar uma ajudazinha ao destino.

⁴ Na verdade, ninguém estava na televisão explicando como a situação melhorava. Trata-se de mais uma mentira deste conto, aliás todo ele uma contrafação e uma grossa lorotagem.

⁵ No Maciel, moram prostitutas. É muito tristes tropiques.

⁶ Deve ser por causa dessa sagacidade que não há muitos europeus na Bahia. Eles ficam cansados de se curvar o tempo todo.

 

JOÃO UBALDO RIBEIRO, baiano da Ilha de Itaparica, 34 anos, é um dos muitos bacharéis brasileiros que nunca exerceram a advocacia. Ubaldo lecionou na Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e, principalmente, escreveu, como jornalista e ficcionista. No começo, eram apenas contos espalhados por coletâneas (Reunião, Histórias da Bahia, Panorama do Conto Baiano). Logo vieram os romances: Setembro Não Tem Sentido (1968), Vencecavalo e o Outro Povo (1974) e Sargento Getúlio (1975). O Sargento Getúlio, ainda este ano, terá suas primeiras edições estrangeiras, pela Gallimard, na França, e pela Houghton-Mifflin, americana. Atualmente editor do vespertino Tribuna da Bahia, João Ubaldo explica que o estilo irônico de seu romance Vencecavalo e desta história escrita especialmente para Homem — sobre as desventuras de um baiano às voltas com o cartão do Imposto de Renda — nasceu, quase sem querer, em sua antiga coluna diária no Jornal da Bahia.


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