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UMA PONTE PARA A LOUCURA

Ficção



A visão: pernas tão esguias que quase daria para envolvê-las com a mão


Sem palavras, uma garota misteriosa atrai um desconhecido para um hotel e...


Texto e fotos PABLO Dl GIULIO


Ele enxergou primeiro a figura recortada contra o céu e a água. Sob a saia curta que ela usava, as pernas surgiam esguias, magras como as de uma pintura de Klimt, pernas tão finas que quase daria para envolvê-las com a mão. Imaginou a maciez da pele, auxiliado pelo vento que também atravessava a ponte e levantava a saia da moça de vez em quando. Ela usava uma peruca preta barata, curta.


Subiu a ponte do Brooklyn, em câmera lenta

De trás não dava para ver muito além disso, até que os cabelos pretos balançaram no ar e ela voltou seu rosto, parcialmente coberto por óculos da Canal Street, mais falsos do que os cabelos da peruca. Então ele viu a boca sem batom, enorme, uma boca de quem jamais perde o apetite. Estremeceu, com a pele eriçada, e esse foi o primeiro sinal da bruxaria: a moça passou em câmera lenta, como um flash se apagando à medida que se afastava.


Subiu a ponte do Brooklyn e depois entrou no metrô atrás dela, automatizado, sem sentir os próprios movimentos. Quando notou em volta, estava na Rua 23 e ela havia sumido dentro do Hotel Chelsea, cinza, decadente, cheio de histórias: Jack Kerouac e Jimi Hendrix, Arthur Clarke escrevendo 2001, Sid Vicious e Nancy botando fogo em tudo. Entrou também e pediu um quarto na esquina. Gerente sempre desconfia de hóspede sem nada de bagagem, mas ele pagou adiantado e recebeu a chave gasta do 519.


Helena. O nome da misteriosa moça era Helena, informou o porteiro, um cara mal-humorado, mas observador. Helena era russa, mal falava inglês. Tinha chegado de Moscou acompanhada de um cara estranho com pinta de gângster barato, que dizia ser seu irmão. Estavam no hotel há dois meses e ela passava dias inteiros no quarto. Ou então saía no final da tarde e voltava de madrugada, sempre só. O seu apartamento tinha a entrada pintada de muitas cores e estava alugado para um grupo de Hare Krishnas, aqueles malucos que andam de fraldas. Por alguma razão, explicou o porteiro, os Hare Krishnas acabaram alugando o quarto para o gângster e sua amiga.



Olhos gelados, azuis, pela primeira vez descobertos


Naquela noite, ele voltou a se enfiar pelos corredores sombrios e deu de cara com a porta colorida, dentro de um hall com uma cortina de contas que lembrava um templo no Tibete — ou a entrada de um puteiro na Tailândia. Teve vontade de bater e perguntar por ela, mas alguma força o conteve. Recuou um passo e leu, em cima da porta, uma frase escrita sobre um fundo vermelho: A mente é como um pára-quedas, só funciona quando está aberta.


Voltou para o seu quarto e desabou sobre os lençóis gastos, entorpecido. Desde que entrou naquele hotel, sentia um cansaço crescente, como se tivesse caminhado quilômetros carregando muito peso. Mesmo assim, demorou a dormir. Estalidos, ruídos secos rondavam a cama. Ele pensava em ratos ou no fantasma de Nancy, assassinada por Sid. Vicious. Estava inquieto, dolorido de exaustão. Só funciona... aberta... A imagem de Helena apareceu na frente daquela porta, convidativa, e ele se sentiu mergulhando atrás, tonto de sono. Acordou mais cansado do que estava quando tinha ido se deitar.



Ela surgiu de uma sombra, como uma alucinação. Corredores sombrios e uma porta colorida


Depois de uma ducha fria, saiu para tomar um café. Diante da xícara, tentou ordenar os acontecimentos, desde a véspera — a ponte do Brooklyn e aquela mulher que caminhava sempre na sua frente, a sensação de estranheza que teve desde que entrou no hotel e que ainda perdurava, como se nada daquilo fosse real. Concluiu que o melhor seria voltar para casa e esquecer aquilo tudo, mas na saída do café voltou para o hotel, novamente levado por uma compulsão inexplicável. Logo na entrada cruzou com Helena e viu pela primeira vez seus olhos azuis gelados, livres dos óculos escuros. Outra vez teve a sensação de que seus movimentos ficavam lentos, até perder o controle sobre eles. O gerente perguntou se estava de saída e ele pagou outra diária, sem tirar os olhos de Helena, que falava em voz baixa ao telefone. Num único instante de distração, ela sumiu.


Helena vaga pelo hotel, misteriosa

Foi direto ao andar dela e ficou sentado numa escada em frente ao quarto, esperando. A mente é como um pára-quedas... O torpor evoluía para uma espécie de alucinação onde as frases giravam no ar, as cores da porta dançavam como num musical do tempo dos hippies. A sensação que teve desde que entrou no hotel era a de ter tomado alguma droga, dessas que provocam alucinações e que agora atingia o seu efeito máximo. Helena surgiu de uma sombra, vestindo um casaco de couro e ligas que sustentavam as meias pretas sobre as coxas brancas que brilhavam, luminosas. Ela começou a vagar pelo hotel, subiu e desceu escadas e ele a seguiu por todo lado, cada vez mais perto, sentindo sua respiração cada vez mais forte. Mesmo quando ela saiu pela escada de incêndio, do lado de fora do prédio, ele foi atrás — mas em seguida recuou instintivamente, obedecendo a uma voz desconhecida que o mandou voltar para o quarto.


Quando abriu a porta do apartamento 519, começou a tremer: aquele não era mais o seu quarto. As paredes estavam forradas de fotos de mulheres e homens musculosos. No chão havia pesos espalhados, como numa academia. E Helena em carne e osso estava ajoelhada na cama, coberta apenas por uma lingerie negra, acariciando um leão de pelúcia. Ele se jogou na cama — ... um pára-quedas, só funciona... —, e quando se deu conta ela já estava por cima, cavalgando-o como se o selvagem, o animal a ser domado fosse ele. A viagem prosseguiu, desembestada, sem destino, até que o lençol virou um mar de suores. Ele sentiu que desfalecia, sem conseguir gozar. Depois (não qual a saberia dizer quanto tempo depois), semi-acordado, viu de longe como ela andava pelo quarto, pedia lanches pelo telefone, olhava-se no espelho do banheiro e, sentada diante da TV, mudava os canais sem prestar muita atenção em nada, até perceber que ele estava pronto para recomeçar tudo outra vez. Mais suores, mais torturas à flor da pele até que num gesto brusco, com os olhos fixos e um sorriso vitorioso nos lábios inchados de prazer, ela finalmente se deixou inundar. E o jorro que recebeu não era só dele, era de uma multidão de homens, era um rio antigo e sagrado como o Nilo, como o Ganges.


Ele acordou outra vez sozinho em sua cama. Nenhum sinal de Helena, exceto o perfume e o sabor doce de sua boca. Vestiu-se e saiu, sentindo-se leve, em paz. Ao deixar o hotel, não perguntou ao porteiro por ela — seria inútil, porque sabia que nunca mais encontraria aquela mulher na rua, num corredor escuro, numa ponte qualquer. Helena já estava dentro dele para sempre.



Encara o espelho: imagem real? Chegando a hora: dúvida, expectativa e revelação


PRODUÇÃO E MAQUIAGEM GEOVÁ RODRIGUES



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