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BOB MARLEY

Perfil



Bob Marley está vivo

O som do reggae vem do quarto dos meninos e você tenta distinguir a música. É a voz de Bob Marley: "Running and running and running away". Mas ele não morreu há 25 anos? Deve haver um segredo para a vida depois da morte


Por FERNANDO GABEIRA*


O segredo da vida eterna tem muitas faces. No caso do menino que nasceu de mãe negra e pai inglês, no interior da Jamaica, no fim da Segunda Guerra Mundial, esse segredo não se deixa desvendar num passe de mágica. Muita gente cantou a saga dos oprimidos. Bob Marley viveu o inferno da pobreza nos bairros pobres jamaicanos e a expressou com a força de sua experiência. É uma tese possível. Bob Marley surgiu num momento em que as revoluções clássicas do tipo marxista estavam em colapso e as minorias raciais nas grandes metrópoles tinham um grande anseio de identidade. Ele a ofereceu na forma de letras diretas e lindas melodias. Outra tese. E assim, de tese em tese, é possível explicar Bob Marley e seus admiradores, sem admitir que tudo isso é muito pouco para descrever seu grande impacto estético da década de 70. Para mim, Bob Marley não chegou sozinho, como se caísse dos céus com sua bandeira da Jamaica, a grande foto de Hailé Selassié [N.R.: último imperador da Etiópia, cujo nome de nascimento era Ras Tafari Makonnen, inspirador da religião rastafári, da Jamaica, que o considerava um deus] Mesmo sem monitorar a música caribenha, que já havia nos dado o calipso, lançado o ska e emergia agora como reggae, intuía-se na Europa, onde na época eu vivia no exílio, que alguma coisa estava acontecendo na Jamaica.


O primeiro sinal foi um filme cult que passava na televisão. The Harder They Come era seu nome. Contava a história de um jovem e talentoso cantor, perseguido pela polícia. Era um rude boy. Um nome dado às violentas gangues juvenis que dominavam os bairros pobres de Kingston, em conflito permanente com a lei.


Portanto, antes de Bob Marley nos ser apresentado, já se conhecia o fascinante meio social onde cresceu e o tipo de música que brotou desse caos urbano.


Os bairros pobres de Kingston com seus barracos destelhados eram apenas um cenário que projetaria a maior estrela do Terceiro Mundo. Ele chegou ali com uma história singular.


Robert Nesta Marley nasceu num vilarejo rural da Jamaica, chamado Nine Miles. O pai, o capitão inglês Norval Marley, seduziu uma garota negra de 17 anos, Cedella, e a abandonou com o filho no colo.


O menino cresceu admirando a coragem da mãe, que enfrentou não só o abandono mas também o estigma de ter transado com um homem branco. Embora na cabeça de Robert isso não tenha trazido nenhuma hostilidade especial aos brancos, foi o avô, da tribo dos Cromantees, valentes escravos que se batiam contra os colonizadores, que encarnou a figura paterna. O avô era um obeah, uma espécie de curandeiro.


A força da jovem Cedella e a espiritualidade cio avô foram as influências que marcaram o menino, a quem se atribuíam dons extraordinários. Se vivesse com um distante pai inglês, talvez sua base de lançamento fosse menor, O vôo mais curto.


Num momento de sua infância, o pai resolveu trazê-lo para Kingston. E o abandonou, deixando-o sob a guarda de outra mulher. Nesse momento, não era o filho de Norval que ganhava as ruas miseráveis de Kingston e começava a descobrir seus segredos. Era o filho de Cedella, o menino influenciado pelo avô que conseguiria transitar pelas gangues de rude boys, participar de alguns conflitos de rua, mas emergir com uma clara consciência de que era preciso transcender esse mundo através da música que o redimisse.


Na segunda vez que volta a Kingston, agora com sua mãe Cedella, Bob Marley pode atenuar a angústia materna com essa frase: "Não se preocupe, não vou trabalhar para eles". Ele queria dizer que freqüentava as gangues, mas seu olhar estava bem na frente. Não disse para a mãe de onde tiraria o combustível para voar bem acima das violentas gangues e da polícia. Esse combustível eram a música e a religião.


Embora entrelaçadas, a música precedeu a mensagem religiosa. Bob Marley iniciou sua carreira com o ska. Poucos anos depois, este dava lugar ao reggae, com sua cadência favorável à ênfase nas letras, ao comentário social. Tanto o ska como o reggae faziam parte de um longo diálogo da música caribenha com o rhythm'n'blues dos negros americanos.


Bob Marley faria uma música negra nas suas raízes. E cantaria a libertação da diáspora negra, esmagada na Babilônia branca, com seus pecados, seu materialismo e decadência.


Para quem tivesse vivido a década dos 60, isso não era absolutamente novo. A expressão Babilônia era comum entre os Panteras Negras, revolucionários negros americanos que fizeram algumas escaramuças armadas e foram esmagados. Usavam o nome do império antigo que escravizou os hebreus como analogia para a terra dos brancos, que igualmente escravizava os negros — e, por extensão, hispânicos, árabes, pobres, todos que não fizessem parte da "elite imperial".


No diálogo com o embaixador americano Burke Elbrick [N.R.: seqüestrado por Gabeira e outros insurgentes para obrigar a ditadura militar brasileira a libertar presos políticos], em 1969, comentei a existência dos Panteras Negras. O título do relato do seqüestro de Elbrick, em meu livro O que É Isso, Companheiro?, é "Babilônia, Babilônia".


Uma década depois, Bob Marley revestia a causa negra de um véu espiritual e uma disposição pacifista. Além disso, não falava a linguagem direta da política, comum aos Panteras Negras, mas a da música que iria percorrer com facilidade não só os guetos de Kingston mas as ruas de Salvador e São Luís, para mencionar apenas o impacto nacional.


Uma das mensagens de Marley estava há muito tempo nas teses do controvertido profeta jamaicano Marcus Garvey, que andou pelos Estados Unidos, foi preso por lá e voltou à Jamaica. Segundo Garvey, não havia salvação para o povo negro dentro dos portões da Babilônia branca. Era preciso voltar à África, que seria a verdadeira Terra Prometida. Lá surgiria o verdadeiro Jeová, no corpo de um imperador negro.


Dizem que Garvey jamais mencionou Hailé Selassié e a Etiópia diretamente. Mas quando o Ras Tafari assumiu o trono da Etiópia — e mudou seu nome para Hailé Selassié, que significa Santíssima Trindade —, o quadro se completou na cabeça de alguns seguidores, que se tornariam os rastafáris.


Os rastafáris talvez passassem despercebidos como mais uma seita, ou uma leitura negra do cristianismo, se não fosse sua relação especial com a maconha. Para eles, a ganja, como a chamavam, era uma erva sagrada, com grande poder espiritual e capacidade de ampliar as consciências.


No coração da Babilônia, a maconha tinha sua história. Proibida nos Estados Unidos e na Europa, era consumida assim mesmo. As grandes campanhas proibitivas tinham fracassado. Algumas eram francamente ridículas. Fume maconha e você será um assassino, um homossexual ou um comunista, dizia uma delas. Filmetes mostravam mulheres fumando, tirando a roupa e se jogando enlouquecidas das janelas de arranha-céus.


Através de Bob Marley, o incipiente movimento de legalização da maconha ganhou novo impulso. Ela passou a ser associada à luta de liberação dos negros. Ampliava a consciência e era envolvida na aura do sagrado.


Na década de 70, Bob Marley revestiu a causa negra de um véu espiritual e uma disposição pacifista. E deu à maconha uma aura sagrada

Quando Bob Marley percorria a Europa durante o verão, no meio da década de 70, sua música era fortalecida por duas tendências: a busca de identidade dos jovens imigrantes negros e a aliança tática com os maconheiros, que viam na mensagem de luta e espiritualidade uma forma de legitimar a erva.


A volta à África, o foco no imperador Selassié, eram elementos secundários, que não comprometiam — pelo contrário, adicionavam um toque bizarro a sua trajetória.


Embora tenha visitado a Jamaica, onde foi recebido com grandes manifestações populares, Selassié não acreditava na lenda que os rastafáris criaram em torno dele. Chegou a doar algumas terras perto de Adis Abeba para os que quisessem voltar ao continente.


O Brasil também não tinha razão para acreditar na santidade de Selassié. Ele visitou o país e sua passagem é contada na biografia de Juscelino Kubitscheck. JK era o presidente orgulhoso de receber um imperador. Acontece que, no meio de uma solenidade, um general se aproximou do imperador e deu a dura notícia: houvera um golpe de Estado na Etiópia e Selassié perdera o trono.


Os momentos seguintes foram difíceis, pois não havia comunicação fácil com a Etiópia. Selassié queria voltar e não tinha como. No bolso, apenas um cheque de 60 mil dólares. Mas quem iria descontar um cheque de um imperador caído? JK habilmente convenceu seu ministro das finanças, Horácio Lafer, a avalizar o cheque. Lafer relutou. As chances de transformar aquilo em dinheiro eram mínimas. JK argumentou que não era sempre que se podia ajudar um imperador. Lafer, a contragosto, aceitou. Selassié voltou e retomou o trono.


Quando Selassié visitou a Jamaica, Bob Marley estava nos Estados Unidos. Ao voltar a Kingston, sentiu o impacto da passagem nos cabelos de Rita, sua mulher. Ela tinha se convertido diante da visão do imperador.


Os rastafáris que migraram para a Etiópia se deram mal. Concentram-se em Shashemene, uma cidade de 100 mil habitantes, e são discriminados pelos africanos. Selassié foi varrido por uma revolução e as terras dadas por ele, progressivamente tomadas dos rastas.


Apesar de um complexo roteiro de libertação do povo negro, foi o contato com a política jamaicana o que quase destruiu Bob Marley. Dizem que tinha uma leve simpatia pelo PNP (Partido Popular Nacional), dirigido por Michael Manley. Seu opositor era Edward Seaga, do JLP (Partido Liberal Jamaicano). Em 1976, alguns membros do partido de Manley pediram a Bob Marley que fizesse um concerto para baixar a tensão pré-eleitoral. O título do concerto era "Sorria, Jamaica".


Os boatos indicavam também que a CIA apoiava o partido de Seaga. A verdade é que Bob Marley, Rita e seu empresário Don Taylor foram metralhados. Don recebeu cinco tiros, Rita foi alvejada na cabeça e Bob no peito.


Marley ensaiava para o show "Sorria, Jamaica": Dois carros estacionaram, seus ocupantes cercaram a casa e metralharam os músicos

Ele tinha sido advertido a não fazer o show. Várias ameaças de morte em forma de boato chegaram a ele. Formou-se até um grupo de voluntários que cuidou de sua segurança. Mas, no dia do atentado, não havia nenhum esquema especial. Dois carros brancos estacionaram, alguns homens cercaram a casa e outros simplesmente metralharam os ocupantes que ensaiavam para o show "Sorria, Jamaica". Talvez tenha sido seu grande impacto negativo no próprio país: sofrer um atentado na Jamaica, onde era cada vez mais amado e já se tornava o grande nome do Terceiro Mundo.


Bob Marley deve ter percebido ali como era difícil fugir da violência. Na verdade, a baixaria tomou conta da própria indústria musical jamaicana. O grupo de Marley chegou a espancar um empresário por causa de contas que não fechavam. Peter Tosh foi vítima de atentado, apanhou da polícia, era uma atmosfera de horror.


Embora seu grande sucesso mundial tenha sido No Woman no Cry, Bob Marley, de uma certa forma, deu continuidade a uma tendência patriarcal no movimento negro. As mulheres sofriam com os Panteras Negras. Rita Marley sofreu, silenciosamente, ao lado do marido. Às vezes, ele se encontrava com outra no mesmo hotel em que estavam hospedados. Para dar uma idéia em números de sua performance: dos 11 filhos que fez, apenas quatro são de Rita.


Nunca ficou claro como um homem que se sentia investido de uma grande missão e tinha um enorme apetite sexual pudesse ter-se descuidado tanto da saúde. Os problemas de Bob começaram com um ferimento no pé, quando jogava futebol. Era preciso cuidado e até mesmo a amputação de um dedo.


No seu livro de memórias, Rita acha que ele se descuidou não por uma razão religiosa (os rastas não aceitam amputação). Ela afirma que ele tinha medo de aparecer manco nos palcos, de enfraquecer sua presença como artista. Em 1980, quando corria no Central Park, Bob Marley teve um desmaio. Consultou um médico e descobriu que tinha câncer no cérebro. Dois dias depois estava cantando em Pittsburgh, mas já sabendo que a morte o rondava. Durou oito meses, cantando e resistindo. Morreu em 11 de maio de 1981.


Depois dele, além das brigas de bastidores pela sua herança, o reggae tornou-se mais ameno. Perdeu seu conteúdo de crítica social. No entanto, Bob Marley vive. Talvez porque ainda existam milhões de jovens negros em busca de identidade, milhões de fumantes de maconha pedindo liberação. O mais provável, no entanto, é que ele viva principalmente pela força da sua obra, que é a continuidade da música negra, do rhythm'n'blues, do jazz, do samba e agora dos rappers que, como ele, vivem no meio do caos urbano e cantam a própria experiência. Há uma complexa constelação no céu onde até hoje brilha a estrela de Bob Marley.


ILUSTRAÇÃO FLÁVIO ROSSI


(*) O escritor e deputado federal Fernando Gabeira, fã de reggae, inspirou-se na recém-lançada biografia de Bob Marley, escrita por Timothy White, para defender a tese de que o grande astro da música negra não morreu — e talvez não morra nunca.



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