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UM TIRO JUSTO

Ficção



O sono acordado, o vulto, a bala na testa. Ela, ainda de camisola, me espera


Por LUIZ ALBERTO PY*


Do escuro onde estou praticamente encosto o cano do revólver na testa do crioulo. Tem menos de um palmo de distância entre ele e a arma já engatilhada.


Firmo a pontaria com as duas mãos, conforme me ensinaram nas aulas de tiro, respiro fundo e puxo o gatilho. O estrondo me faz fechar os olhos. Acho que não quero ver o que está acontecendo, o resultado do que acabo de fazer. Não quero ver a bala penetrando testa adentro no cérebro do infeliz. Não quero ver ele morrer, não quero ver o momento em que me torno assassino.


Meu coração dispara mais do que antes e ainda de olhos fechados recordo o momento em que despertei do meu sono indisposto pelo calor e incomodado pelo ruído estranho, intermitente, em algum lugar próximo. Acordei tentando situar o barulho, tentando me localizar. Antes de me levantar abri a gaveta da mesa de cabeceira tateando em busca do Taurus 38, cano curto, cinco tiros. Revólver comprado num impulso quando passei por uma loja de armas. A violência crescente da cidade está chegando cada vez mais perto.


Quando vi na vitrine aquela série de armas metodicamente enfileiradas deixei de lado o compromisso que tinha e dediquei alguns minutos a escolher e comprar um revólver, me valendo das indicações do balconista. Foi ele que me aconselhou a ter aulas de tiro e deu o endereço da academia onde, depois de evitar ser matriculado num demorado curso, consegui receber breves instruções sobre como usar minha arma. Desde então ela ocupava um espaço na gaveta e eu não havia mais pensado no assunto, depois que abrira o tambor e colocara as balas, tendo o cuidado para deixar vazia a câmara diretamente à frente do cano para evitar o risco de um disparo acidental, conforme me haviam ensinado.


Caminhei pela casa, no escuro, atraído pelo barulho como um inseto a se aproximar de uma lâmpada que acende e apaga. Parei e esperei, ouvido alerta. Quando o barulho recomeçou, segui passo a passo pelo corredor. Na sala divisei, contra a luz vinda da rua, um vulto na varanda tentando com um facão abrir o trinco que une as portas venesianas que correm para os lados.


Sabendo que ele não podia me ver pois a luz vem de fora, me aproximei devagar. Ele deve ter trabalhado duramente por longo tempo, pois conseguiu abrir uma brecha de uns 2 centímetros entre as portas, afrouxando o trinco. Não poderá abri-las pois cada uma está escorada no seu trilho por um calço feito de cabo de vassoura. Verifiquei os calços e constatei que estão firmes no lugar. O assaltante pode ficar aí tentando entrar pelo resto da vida (o que de fato acabará acontecendo) que não conseguirá. Observei-o contendo a respiração para não ser percebido. Era um preto franzino, de uns 20 anos, baixo, empunhando uma peixeira enferrujada que manobrava tentando destravar o trinco. "Vou matar este filho da puta." Parecia haver um eu independente tomando decisões sem me consultar. Vi minhas mãos se erguendo, empunhando a arma e aproximando-a da testa do rapaz.


Quando o estampido cessa de ecoar ouço um breve gemido, abro os olhos e vejo o corpo do assaltante se sacudindo de costas no chão de madeira da varanda, num barulho surdo "plof", estremecendo e se imobilizando. A pouca luz impede que eu veja de imediato o buraco que acabei de fazer na testa do sujeito. Mas fica claro para mim, pela absoluta imobilidade daquele corpo na varanda, que ele está completamente morto. "Merda!, que vou fazer com ele?" "Ele", é o cadáver. Sem despregar o olho do assaltante começo a retirar os calços para abrir as portas quando ouço a voz de minha mulher.


— Que foi, que foi? Que aconteceu? Ouvi um tiro.


— Matei um filho da puta, falo me virando para ela.


Renata olha para mim e tenho a impressão de que ela acha que tive um pesadelo. Me abraça e olha por cima do meu ombro. Fica quieta um tempo e de repente dá um berro na minha orelha enquanto crava as unhas nos meus braços.


— Porra! Fica calma, pára com isso, falo irritado e com o ouvido doendo. Empurro-a para trás, para o fundo da sala.


Para com isso! Empurro-a para trás, para o fundo da sala

— Não me atrapalha! Se não puder ajudar, pelo menos não atrapalha. Fica quieta, por favor. (O "por favor" sai entredentes, mais alto que as outras palavras, com raiva).


Ela cobre a boca com a mão direita e arregala os olhos para mim. Parece que está abrindo os olhos para compensar o fechamento da boca, é como se estivesse berrando com os olhos. Mas pelo menos não faz barulho. Fico andando pela sala tentando pensar e toda vez que eu olho na direção de Renata lá estão aqueles olhos arregalados me seguindo. Aquilo começa a me perturbar e para me livrar dela peço, de forma mais incisiva possível, para ir buscar um copo de água. Ela some da sala, eu me sento no sofá e fecho os olhos. Só então percebo que continuo segurando o revólver, a mão crispada. Descanso a mão no colo, ainda segurando o revólver, tentando pensar onde devo colocá-lo. Me dou conta de que não consigo pensar nada. Passa pela minha cabeça a idéia de que eu talvez nunca consiga pensar de novo. "Que paranóia!", digo em voz alta me assustando com minha própria voz.


Renata entra na sala com um copo na mão, trêmula, molhada pela água que escorre. Se aproxima de mim me olhando nos olhos. Disparo uma gargalhada. Ela arregala mais ainda os olhos e recua, claramente apavorada. Entre risadas consigo dizer:


— Não fica assustada, não. Eu estou rindo de nervoso, só isso. Simulando alívio me estende o copo que eu pego com as duas mãos. O revólver acaba se chocando com o copo e com as mãos dela, que recua de novo, com medo do toque da arma.


Deixo o revólver numa mesa ao lado do sofá tendo o cuidado (que me parece ridículo) de apontar o cano para a parede. Enquanto bebo a água distraído, consigo começar a pensar. Vejo duas alternativas: ou chamo a polícia ou dou um sumiço no morto (imagino a confusão com os policiais tentando me tomar uma grana, ter que arranjar um advogado, processo). Acabo decidindo pela segunda alternativa, menos complicada. É melhor pôr ele no carro e largar numa rua deserta enquanto ainda está escuro. Quem vai associar aquele crioulo morto a mim? Decido não perder mais tempo. Embrulho a cabeça do cara com uns sacos plásticos de supermercado para não sujar mais de sangue e arrasto ele até a garagem. Forro a mala do carro com uma grande quantidade de jornais, que convenci minha mulher a pegar para mim, e tento jogar o morto lá dentro. Não é tão fácil quanto eu imaginei; ele pesa um bocado e está todo mole, mas finalmente ajeito ele sobre os jornais, embora sujando um pouco o carro com sangue. Instruo Renata a limpar todo o sangue da varanda e da casa. Enquanto jogo um pouco de água para tirar o sangue da carroceria, penso em adulterar as placas do carro, mas acho que vai dar muito trabalho e resmungo para mim mesmo que vou de luz apagada. Renata me ouve resmungando e pergunta o que é; explico minha idéia e ela, pela primeira vez na noite, me dá uma sugestão inteligente: desligar a lâmpada que ilumina a placa. Isso é fácil! Com uma chave de fenda, rapidamente desconecto o fio. Dirijo até o centro da cidade pensando em deixá-lo numa rua qualquer, mas descubro que as ruas são muito mais cheias de gente do que eu imaginara. Tem mendigo dormindo para todo lado!


Quando o dia começa a clarear, já quase desesperado, encontro um estacionamento vazio com um carro parado dentro. Entro, estaciono o meu carro junto do outro para ficar abrigado do olhar de alguém que passe, verifico que não há ninguém por perto e aciono o botão que abre o porta-malas do carro. Salto e rapidamente (já estou ficando com prática em lidar com cadáveres molengas) jogo meu passageiro fora.


A volta para casa é tranqüila. Encontro minha mulher suada, ainda metida na camisola desalinhada e suja de sangue. Acabou de fazer a faxina.


— Me deu vontade de chamar a empregada para ajudar.


— Eu matava vocês duas. Depois de todo o esforço para me livrar daquele idiota era só o que faltava, ter uma testemunha.


— Eu sei, eu sei, por isso não chamei. Limpei tudo sozinha, estou exausta, preciso de um banho. Enquanto fala ela me dá as costas e vai se dirigindo para o quarto. Vou atrás, atraído por sua silhueta. "Gostosa", penso, e me surpreendo com a força da minha súbida excitação.


Derrubo Renata na cama com violência, estou tomado de um desejo sexual que me parece absurdo, mas não quero pensar no assunto. Faço ela ficar nua e exijo:


— Fica de quatro — ela vira a cabeça para trás e me olha surpresa. Enquanto vou arrancando minha roupa, repito, autoritário:


— Fica de quatro! Ela obedece. Seguro-a pelos quadris e a penetro, com decisão. Vou ficando acometido de uma excitação furiosa, preciso descarregar alguma coisa que me ficou contida. Começo a lhe dar palmadas, cada vez mais fortes. Depois dou tapas em sua cabeça enquanto continuo a possuí-la. Arranco o cinto da minha calça que ficou jogada sobre a cama, ao alcance da mão, e chicoteio sua bunda. Ela parece gostar (pelo menos geme muito e não reclama). Finalmente gozo, como há muito tempo não gozava. Viro para o lado e durmo pesadamente, sem sonhar. O sono dos justos.


 

* Luiz Alberto Py é psicanalista


ILUSTRAÇÃO KENT WILLIAMS



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