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ROMANCE DAS DIRETAS

Reportagem



Verde, que te quero amarelo

Cenas, personagens e lembranças reunidas por um escritor, sobre os dias em que os brasileiros mudaram a cor e os rumos do país com a campanha das diretas


Por IGNÁCIO LOYOLA BRANDÃO


Era um número simpático. Antigamente, quando não havia televisão e as famílias se reuniam para o bingo (também chamado tômbola), o cantador buscava imagens, fazia brincadeiras:


— Dois patinhos na lagoa.


Quem tinha, marcava logo o 22.


Convivemos com o 22, símbolo de coisas boas. Não são necessários 22 jogadores para nosso esporte nacional?


22: significou revolução cultural no Brasil. A Semana de Arte Moderna. Mudança, revirada contra o acadêmico, transformação.


22: são os Arcanos maiores do Tarô, livro da sabedoria antiga, chave do esoterismo, caminho da iniciação.


O 2 na numerologia representa eco, reflexão, conflito, contraposição. A imobilidade momentânea quando as forças são iguais, segundo Papus, mestre das ciências ocultas. 22 pode ser 2 e 2= 4. E o quatro é símbolo da terra, é o número das realizações tangíveis.


Até que na madrugada de 25 para 26 de abril, 22 foi o número que derrotou a Emenda Dante de Oliveira. Cifra exata de uma das maiores derrotas impostas à vontade popular. Vinte e dois deputados, se omitindo ou dizendo não, jogaram no chão a batalha de uma guerra. Dizem os bicheiros que no 26 de abril se carregou no 22, cabra. Não deu. Uma vez mais, decepção com o número, em pouco tempo. Se houvesse cassinos no Brasil (e há, clandestino) e a roleta rolasse, o croupier gritaria, na madrugada já de 26, quando todo o país tinha apostado no prêmio máximo:


— Negro, 22.


E o povo veria suas fichas, de alto valor, serem recolhidas.


Mas o povo tem novas fichas.


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Maria de Fátima Figueiredo, brasileira, mãe de uma filha, profissão definida, não pôde entrar em Brasília, capital do seu país. Seu nome está numa lista da polícia. Ela não é marginal, não praticou nenhuma contravenção, nenhum ato ilegal, não ameaçou ninguém. Estranho país, onde até mesmo a língua foi mudada, o mesmo termo, dependendo da casta a que você pertença, tem conotações diferentes. Novilíngua, diria Orwell, o autor de 1984. Esta novilíngua registra:


Contravenção = batalhar em praça pública, em unanimidade com a opinião pública pelo restabelecimento da lei e da ordem.


Ameaça = propagar e conclamar o povo à restauração dos direitos legais de cada cidadão.


— Mas eu vou a Brasília, e vou entrar — garantiu Maria de Fátima Figueiredo.


Conseguirá?


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Quando criança, ouvia de meu pai: "Mulher que usa amarelo, é corajosa ou muito bonita". Cor que no espectro solar fica entre o verde e o laranja. "Se não fosse o mau gosto, o que seria do amare-lo?" reza o provérbio preconceituoso. Cor' ingrata, conotações desagradáveis: riso amarelo, febre amarela. Cor do ouro = cobiça. Amarelo é angústia, desespero. O amarelo Van Gogh.


Mas as Diretas (só consigo escrever com maiúscula) que modificaram a fisionomia do país, o comportamento das pessoas, também alteraram sentidos, renovaram conceitos, recuperaram posições. Porque amarelo é também o fogo, o sol. Fogo é vida e saúde, energia. Sol é a vitória contra o poder do mal, representado pelas trevas. Maravilhosa analogia. O amarelo = povo. Trevas = poder dominante há vinte anos. Tão simples de ver, quase primário. O eixo fogo-terra tem também um espírito recuperado, reabilitado, introduzido dentro de cada brasileiro nesta campanha Diretas-Já: fogo-terra na mito-simbologia tradicional é igual ao erótico, a sensualidade. Nada se passa neste mundo sem ligações e entendimentos profundos com os elementos.


Amarelo = esperança. Fé, crença. Fluido vital que conduziu as pessoas. Amarelo = cobiça. Cobiça de ver restaurados os direitos de cada um. Cobiça saudável de democracia. Kandinsky na sua teoria das cores apresenta o amarelo como a mais excitante, aquela que ilumina e faz vibrar todas as outras. O amarelo age sobre o humor e estimula a percepção. Kandinsky compara seus efeitos ao provocado pelo soar das trombetas (que excita, dá coragem) e aos sons estimulantes de uma fanfarra. Festa. Combatividade Trombetas soaram, caíram as muralhas da amaldiçoada Jerico.


Vamos nos divertir com analogias. Às vezes, dá para acreditar que realmente tudo está na Bíblia, livro dos livros. Jéricó não é a antevisão, milênios atrás, do Planalto, esta cidadela em Brasília? A descrição está em Josué, Antigo Testamento: "A cidade (Jerico) será consagrada como anátema de Javé, com tudo o que nela existe". Anátema é maldição, não precisam correr ao dicionário. Tem mais, importante: "O povo gritou com força e tocaram-se as trombetas. Quando o povo ouviu o som da trombeta, gritou com força e a muralha caiu por terra, e o povo subiu à cidade, cada qual no lugar à sua frente, e se apossaram da cidade. Então consagraram como anátema tudo que havia na cidade: homens e mulheres, crianças e velhos, assim como os bois, ovelhas e jumentos, passando-os ao fio de espada".


Omiti um detalhe. Jerico não foi tomada ao primeiro grito e soar de trombetas. Sete vezes, o povo conduzido pelos sacerdotes rodeou a cidade, antes do assalto final.


E nós, rodeamos (ainda) somente uma vez, levados pelos nossos sacerdotes: Ulisses, Lula, Tancredo, Montoro, Osmar Santos, Fafá, Christiane, Ruth, Brizola, Freitas Nobre — para citar os constantes no palanque. Gritamos em torno do Planalto:


Um, dois, três, quatro, cinco mil, queremos eleger o presidente do Brasil.


Gritamos, e sopramos nossas trombetas, traduzidas em trios elétricos, bandas, fanfarras, escolas de samba, orquestras sinfônicas, guitarras, cornetas solitárias, blocos.


Executamos com perfeição nosso panelaço, barulhaço, foguetaço. Tentamos nossa primeira vez e uma coisa conseguimos: as muralhas do Planalto-Jericó estão fendidas, foram abaladas. Problema quase teológico do primeiro combate: se Deus não estava com eles, os condenados pelo anátema, contavam, todavia, com a sombra da cruz. Fatídica.


Ainda temos seis tentativas a fazer. Talvez nem tanto.




Amarelo, ainda um pouco. Na Alemanha, grupos jovens, a partir da teoria de Kandinskv, criaram a chamada música amarela (Gelb). Para eles, o amarelo é sinônimo de emoção, liberdade, invenção, improvisação. Fluidos que percorrem o mundo, idênticas sensações para povos diferentes. Ou o sentido de liberdade é um só, invariável, não decomponível?


Sintomático? No dia seguinte a rejeição da Emenda Dante de Oliveira, o grama do ouro teve uma baixa de cem cruzeiros em relação ao dia anterior. O amarelo em leve depressão. Me ocorre subitamente uma inversão que corresponde a verdade. Não, os sacerdotes não eram os do palanque, eram os de baixo. Foi o que vi, o que me garantiram todos entrevistados.


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Falei em Alemanha, fico um pouco mais nela. Numa autocitação. Quando escrevia meu livro O Verde Violentou o Muro (agora recém-publicado) ficava imaginando um modo de explicar o muro aos brasileiros. Difícil. Uma barreira que divide o país, separa, isola, segrega gente igual. A antiga capital da Alemanha desligada do próprio país, cidade com leis e regras diversas. Como entender? Foi então que veio a votação das Diretas e o governo decretou estado de emergência. O general Newton Cruz deitou e rolou, a vila sob seu controle, microcosmo do país que ele adoraria governar autoritariamente. Por um período, brasileiros estiveram desligados de sua capital. Alguns, como Maria de Fátima Figueiredo, impedidos de entrar, de qualquer maneira. Brasília, território estrangeiro. Apresentar documentos, dizer a que veio, informar local de hospedagem, submeter-se a vexames como revistas pessoais e de bagagem. Estar autorizado ou ser enviado de volta. Para não falar dos que foram presos. De repente, ficou fácil para mim contar sobre o muro. A emergência foi o muro que dividiu Brasília. Um muro não precisa necessariamente ser de concreto, nem é prerrogativa de uma sociedade socialista.


"Como explicar o muro de Berlim aos brasileiros? Agora ficou fácil. É só comparar com as medidas de emergência que isolaram Brasília"

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Conversei muito com as pessoas. De todos os tipos. Nunca subi ao palanque, nem tinha o que fazer lá. Desde a concentração da Sé, em São Paulo, achei que o maravilhoso ocorria embaixo, entre o povo. Esse sim, o protagonista. Naquela tarde, andando, encontrei amigos que não via há anos. Gente que julgava morta, fora de São Paulo, alienada, acomodada na vida. Jornalistas, artistas, donas-de-casa, arquitetos, operários, comerciários, livreiros, grã-finos, colunáveis, misses, estrelinhas de teatro, stripers do Teatro Santana, lixeiros, faxineiros do meu prédio. Como se a cidade inteira tivesse marcado encontro na praça. As frases:


"Vai dar em nada, mas estamos aí, não é?"


"Não adianta mesmo, só que não custa dar uma força".


"Se o movimento pega, o governo dá o golpe, acaba com tudo".


"A linha dura está de olho, estamos na canoa furada, vão fechar o regime".


Reflexos da lavagem cerebral que veio com 64. Apesar do pessimismo, havia algo detectável no ar. Que pairava acima do simples clima de festa e confraternização. Muito além da curiosidade. Era certa ânsia de participação. Ainda indefinível no começo, mas que foi mudando à medida que as ruas despejavam gente e mais gente. E faixas. isoladas ou de grupos, e comissões, partidos, bandeiras, cartazes, estandartes, braçadeiras, adesivos colados ao peito; nos braços. Até chegar o instante em que tudo explodiu, quando o comício -ia em meio, e aquele fluido tinha passado de um para o outro. Tomado a todos como transe, posse de espírito. Tudo balançava ainda naquele ponto complexo entre a dúvida e a certeza, fio ponteagudo de navalha, perigoso. Marcada por anos de silêncio e medo, opressão e condenação ao mutismo, pela castração de qualquer esperança, aquela multidão se debateu ansiosa — como já vinha se debatendo o povo brasileiro. desde Olinda, Curitiba e outras manifestações — no conflito: externar ou não a necessidade de acreditar? Colocar para fora esta ponta de otimismo, deixar correr solta? E se desse em nada? A Sé confirmou o desejo revelado em Porto Alegre, Bauru, Salvador, Vitória, tantos lugares: o povo a se levantar, empurrando a ponta da bota que o manteve de rosto no chão, humilhado e castigado por duas décadas.


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"Acredito em mim", disse Lourenço dos Santos, bancário de Salvador. "Antes, não sei se era medroso ou conformado, ou não via as coisas. Achava que o país ia para o buraco e não tinha jeito, o melhor era viver sem complicar muito, me arranjando como pudesse, para sustentar mulher e filhos. Votar ou não, juro, não tinha importância, nunca me fez falta. Fui a uma passeata com os colegas de banco, para não passar vergonha. E começou a me dar uma coisa. Comprei uma camiseta das Diretas, para ajudar. Coloquei o plástico na janela do meu carro, porque todos os meus vizinhos colocavam. De repente, a cidade inteira tinha. Foi aí que comecei a perceber que um negócio diferente acontecia no prédio. As pessoas passaram a se falar, se cumprimentavam no elevador, sempre alguém queria saber se havia uma novidade sobre as Diretas. Conheci vizinhos dos andares de baixo. fiz outros amigos. Não posso dizer quando, porém tudo estava mudado, de uma hora para outra. A gente estava junto. As pessoas sorriam. As mulheres do prédio foram incríveis. Se juntaram, saíram pelo bairro, formaram um comitê, costuraram e pintaram faixas, levantaram dinheiro. Mulherada porreta. Sabe o que mais? Uma se elegeu síndica, botou para correr a empresa que administrava/roubava o edifício. Agora, tá assim de mulher na reunião de condôminos. Juntaram os maridos e organizaram uma cooperativa. Fazemos supermercado coletivamente, estamos economizando uma barbaridade. O movimento promete crescer, outros prédios querem saber como fizemos, o supermercado do bairro andou baixando preços, supervisores vieram falar com a mulherada. Então, a primeira coisa boa que essa campanha das Diretas trouxe foi essa, meu dinheiro esticou um pouco mais. E depois que vi essa porrada de gente junta e firme, passei a achar que dá. Que votar é troço importante."


"No meu prédio, depois das diretas, passamos afazer supermercado coletivamente. E estamos economizando uma barbaridade!" (Um bancário de Salvador)

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"Fui para a primeira passeata, disposto a bagunçar, porque não acontece muito nesta nossa cidade", me disse um estudante de Araraquara, lugar que conheço bem, porque nasci lá. "Inclusive, quando fizemos um movimento no colégio, a diretora chamou a polícia, acabou com a história. Na minha casa, meu pai falava nas Diretas, eu pouco ligava. Nunca votei para ninguém, e com esse governo tinha certeza que nunca ia votar. Quando cheguei na passeata, senti a barra. O pessoal numa outra. Não dava pé a zorra. Todo mundo alegre, muita faixa, uma puta de uma união. Não que fosse muita gente. Até o comício das Diretas, aqui, acho que foi o menor do Brasil, um monte de gatos pingados. Só que mesmo em casa, vi depois, as pessoas estavam torcendo. É preciso entender esta cidade, o povo é assim, fechado. Digo isto para mostrar que muita gente não se abriu, mas fechou com as Diretas. Sei lá se tem explicação, mas aquela passeatinha deu uma virada em mim. Veio depois o noticiário, o movimento rolando, rolando, quando anunciaram o comício do Rio, me mandei. Fiquei louco com o que vi. No ano que vem, quero me candidatar ao DA, brigar naquela escola, juntar os alunos, ver o que a gente consegue."


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Anos atrás, onde houvesse pedra de tamanho razoável, podia-se encontrar a pichação: Casas Pernambucanas. O Brasil todo tomado. Em seguida, surgiram dois concorrentes, se bem que em menores proporções: Jesus te salva e Cão Fila-Km 26. A partir de janeiro deste ano, um meteoro pichador não deixou espaço livre sem a palavra de ordem: DIRETAS JÁ!


Alô, alô, Salomão. Vamos acabar a embromação. Gritou Chacrinha para o país.


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Consulte os velhos, os madurões, os trintões. Percorra os livros de história. Nunca houve movimento igual neste país. Que juntasse, mobilizasse, fosse tão unânime. "A campanha pelas Diretas era uma tarefa a que cada um se propôs, só que ninguém tinha a mínima noção de que podia dar o que deu", disse o jornalista Tarso de Castro, da Folha de S. Paulo,

chamado também o Diário Oficial das Diretas, jornal que encampou o movimento, sustentou a opinião pública, quando ninguém ainda acreditava, e a grande imprensa esnobava (por interesses ou pura falta de faro jornalístico/cívico).


"Acenderam o pavio pensando que era bombinha de São João. Ninguém tinha percebido que dentro da massa estava uma tonelada de dinamite."


Tarso correu o país, muitas vezes dentro daquele aviãozinho que levava os coordenadores da campanha. O vôo tinha até um apelido: da Liberdade. Ele esteve no norte e nordeste, centro e sul. Escreveu muito, viu.


"Mobilização que foi maior que a da abolição. A das Diretas juntou o grande negro em busca da liberdade: toda a raça brasileira. O que se viu foi loucura, porque superou os limites partidários. Onde o PMDB — que carregava a bandeira (com PT, PDT, PTB) — estava dividido, entrou a Arena."


Tarso cometeu um curioso lapso: Arena, em lugar de PDS. Foi o caso da cidade de Aracaju, onde o PDS providenciou hospedagem, palanques, promoção, tudo. "Aliás", diz ele, malicioso, "o único governo que não pagou hospedagem — tinha de ser — foi o de Minas."


"A mobilização pelas Diretas provocou uma grande renúncia em termos pessoais. Todos abandonaram famílias, esqueceram mulheres e filhos. Uma vez, o Lula saiu de Natal, voou até São Paulo, numa brecha diminuta do programa. Só para ver a mulher. Chegou em casa, a Mulher tinha saído para um cinema, ele não sabia qual. Na mesma hora, a Vila Socó pega fogo, Lula foi para lá, e de lá para o norte. Era assim a vida."


Christiane Torloni revelou: "Meus filhos vão crescer com um conflito novo. O trauma Dante de Oliveira. Por causa do Dante, fiquei separada deles um tempão, sem poder dar a mínima assistência".


E Fafá de Belém:


"Quando embarquei na campanha, achei que dava para manter a programação de shows. Depois, fui cancelando, cancelando. E por quatro meses quase não subi ao palco, vivi no palanque".


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Talvez pelo sobrenome Figueiredo, Maria de Fatima conseguiu embarcar, apesar de se dizer que as companhias de aviação estavam avisadas pela polícia de que ela era uma das que não poderiam entrar em Brasília.


Entrará?


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"Dentro daquele pequeno avião de cinco lugares, era impossível as pessoas terem segredos. Ali foi se formando uma grande família. Vi o Lula conselheiro do Ulisses, também vi Ulisses conselheiro do Lula. Agora, uma que ninguém disse. Poucos falaram do Freitas Nobre. O grande homem da campanha. Mais do que o braço direito de Ulisses. Inenarrável o que Freitas fez. Cercava tudo, o tempo inteiro, não deixava a peteca cair. Foi o pilar, ninguém sabe disso. Pessoa fundamental, numa posição difícil para um político, porque executou um trabalho anônimo" — Tarso.

A novilíngua pode colocar em uso outra expressão: INÚTEIS DO PALANQUE.


"Você precisava ver a briga para entrar no palanque inutilmente. Houve gente que viajou por conta própria atrás da caravana, só para subir ao palanque. Gente que jamais falou, fez nada, contribuiu com um mínimo. Tudo o que queriam era estar lá em cima. Enquanto muito jornalista, artista e mesmo político tentava descongestionar a frente, os Inúteis do palanque ficavam firmes. Conheço quase todos. Depois dos comícios, os inúteis corriam aos fotógrafos, para comprar as fotos de palanque. Vai ver o que deve aparecer de diretista na próxima campanha eleitoral" — Tarso, de novo.


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Christiane Torloni e Fafá de Belém confirmam os dados: a fraternidade estabelecida no grupo que percorreu o país e esteve praticamente em todos os comícios. Fafá tinha um apelido carinhoso para Ulisses: Tio Lili. "E olhe que no começo eu nem gostava dele." Torloni lembra um instante, com ternura. "Ganhamos umas plantas de uns estudantes. No avião, naqueles vôos insanos, madrugada adentro, Ulisses adormeceu abraçado à sua planta, as mãos colocadas sobre ela, num gesto de proteção."


"O Brasil se descobriu como Nação. Foi dado o grande abraço. As pessoas juntas", diz Tarso. Christiane tem uma imagem quase semelhante: "O país redescobriu a paixão, a possibilidade de se apaixonar. E quando estamos apaixonados, tudo muda. A gente fica de bom humor, perdoa os erros, não enxerga as besteiras, se enche de alegria". Fafá completa: "A grande coisa das Diretas é que se quebrou a amarra, se cancelou a censura geral, se derrubou o medo imposto e foi eliminado o NÃO POSSO, sutilmente (ou não tão sutilmente assim) inoculado dentro das cabeças e corações. Agora é: EU POSSO".


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Sinopse rapidíssima sobre o rastilho aceso pelo então desconhecido deputado Dante de Oliveira que, em março de 1983, apresentou emenda propondo o restabelecimento de eleições diretas para a Presidência da República. Veio em seguida o apoio do PMDB que começou a contactar outros partidos. A Igreja se manifestou, a Folha de S. Paulo confirmou a vontade popular em pesquisa. A campanha foi lançada oficialmente em Goiânia, em junho. Seguiu-se um ato público em Teresina. No Rio de Janeiro formou-se uma frente suprapartidária. Teotônio Vilela e Lula iniciaram negociações com órgãos como CNBB e UNE. Em setembro, Roberto Magalhães, governador, foi o primeiro do PDS a aderir. Em outubro, Aureliano Chaves namorou a idéia. Esperidião Amin, também PDS, confirma ser diretista. Em novembro, uma festa-comício no Pacaembu, em São Paulo, reuniu apenas 15 mil pessoas. Olinda, em dezembro, teve número igual. Sur-gem comitês. O germe penetrando nas veias dos brasileiros. Janeiro de 1984: aparecem os primeiros cartazes "Eu quero votar para presidente". Adesivos plásticos para janelas e carros, jornais aumentam o espaço, enquanto Carlos Átila procura "Comício? Que comício?" Referia-se à concentração de Curitiba, ponto de partida oficial da mobilização: 50 mil pessoas. Ignorada pela grande imprensa, pela televisão e pelo governo. O deputado Bonifácio Andrada comentaria: "O grupo pró-Diretas é insignificante". Nove em cada dez pessoas querem as diretas, proclamam as pesquisas. A febre toma o país. Salvador, Vitória e Campinas promovem grandes comícios. A manifestação paulista juntou 400 mil pessoas, número "pouco expressivo" para o falante, porém cego, porta-voz Carlos Atila. Já Abi-Ackel consideraria "fato corriqueiro" e Camilo Penna juntou outro termo à novilíngua, tumultuar. "Estão tumultuando o processo sucessório", garantiu. Tumultuar toma agora, também, o sentido de "qualquer coisa que atrapalhe as intenções do Planalto".


O resto da história é recente, brasas quentes. A grandiosidade de Belo Horizonte, a enormidade do Rio com um milhão de pessoas, o assombro de Goiânia (proporcionalmente o maior de todos, pois colocou 250 mil pessoas nas ruas) e a loucura da passeata ao Anhangabaú, com 1 milhão e 700 mil pessoas. Bola de neve. De todos os cantos, as adesões. Nada de só assinar manifesto ou usar plástico. Cada partido, associação civil, organização profissional, sindicato, diretório acadêmico, escola, irmandade religiosa, conjunto habitacional, condomínio, bairro, empresa teve sua participação. Comícios, passeatas, atos públicos, plebiscitos, eleições simuladas, concursos, palestras, debates. Espontaneamente, todos aderiam, trabalhavam. A sociedade civil se descobria. Aquele receio que sempre permaneceu depois da abertura, latente em cada um, desapareceu. Já não se ouviam perguntas do tipo: E os militares? O que pensam? Qual vai ser a reação deles? Se passar a emenda, vai haver eleições? E a linha dura? Foi restabelecida a confiança geral, a autoconfiança, que geralmente é das primeiras coisas que um sistema totalitário procura minar. "Explodiu um novo Brasil", disse Ricardo Kotscho. Ricardo é o autor do livro que conta toda a trajetória: "Explode um novo Brasil", o grande documento para a história do futuro. Ele acompanhou tudo e todos. Chamado por Ulisses Guimarães de "o cronista das Diretas", foi também o autor da idéia de que a Folha de S. Paulo encampasse o movimento. Num momento em que a revista Veja provava em pesquisa que a opinião pública não acreditava na imprensa, a ação da Folha serviu para restaurar um pouco desta fé nos meios de comunicação. Outra conquista das Diretas.


Motoristas de táxi pediram um adesivo especial. 35 mil carros, rodando 200 quilômetros cada um. Público considerável. Gays de Salvador aderiram. Torcidas nos estádios erguiam cartazes. Cantores sustentavam faixas no palco, como Beth Carvalho no Palace, em São Paulo. Pedágios nas ruas levantavam fundos, todos contribuíam. Médicos do Rio Grande do Sul desenharam carimbo para toda correspondência da entidade de classe. O bairro do Botafogo, no Rio, organizou um festival de chope; São Paulo respondeu com o Sambão das Diretas, com a Escola de Samba Camisa Verde, no São Paulo Chic. Na praça Ramos, em São Paulo, ergueu-se uma tribuna livre das Diretas, versão cabocla de um Hyde Park. Forrós e peças de teatro (Diretas Volver, pelo Grupo Forja, de São Bernardo), painéis em todas as cidades para abrigar os deputados diretistas e indiretistas, concursos de fotos, murais, concentração de bóias-frias, quinze caminhantes que partindo de São Paulo se dirigiram a pé até Brasília, chuvas de papel.


Caiu por terra o pessimismo. No início, a questão: Qual o limite de tolerância do Planalto? provocava tensão. Numa fase posterior, gerou apenas expectativa, mudando para: Como pode o Planalto conter tudo isto? Na Espanha, distante do Brasil (mas os governantes estão acostumados ao distanciamento, vivem em Brasília, são astronautas em cápsula espacial), o general Ludwig declarou que a baderna se instalava no país. Nem houve baderna, nem violência. A ordem geral foi a calma. A polícia passeou, ganhou o salário na moleza. A polícia federal ficou desconcertada, não prendeu ninguém, fichou ninguém. Vi, na Sé, em São Paulo, no dia 25 de janeiro: crianças, mulheres e velhos participando da concentração. Há quantos anos eles estavam impedidos, pelo medo da prisão, esmagamento, tumulto? Um homem provocou briga, foi dominado pela própria multidão. Em dois minutos, tranqüilidade total. Trombadinhas e trombadões desapareceram do centro, durante a passeata de 1 milhão e 700 mil. Tarso de Castro foi testemunha em Belo Horizonte. Um ladrão meteu a mão no bolso de um manifestante, foi impedido por outro ladrão, que gritou: "Aqui, não. Hoje tem de ter respeito". Ladrão fiscal de ladrão.


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Uma faixa gigante pelas Diretas surgiu no morro da Babilônia, no Rio de Janeiro. Como foi colocada lá, um ponto inacessível? Os alpinistas cariocas esclareceram: também estamos no movimento.


No morro da Babilônia, uma faixa. Como foi colocada naquele ponto inacessível? Os alpinistas do Rio esclarecem: "Nós também estamos com as diretas"

Einstein teria delirado ao comprovar a sua teoria da relatividade. Nunca se fez tantos cálculos matemáticos a respeito do número de participantes nas concentrações. Havia a cifra dos comitês pró-Diretas. A dos jornais. A da polícia federal (não houve a das polícias estaduais, porque estas estavam com a mobilização). A da Globo, na primeira fase, quando ignorou o assunto. A do PDS. A do SNI. A dos puxa-sacos do Planalto. A de alguns ministros. A melhor coisa para se saber o número exato seria fazer como o homem que calculava de Malba Tahan: contar as pernas e dividir por dois.


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Abi Ackel garantiu que o povo ia ver os artistas pagos para isso. Como é então que no show realizado a 2 de junho na praça da apoteose do sambódromo, que contou com pelo menos quinze artistas do nível de Milton e Simone, não estiveram mais que 70 mil pessoas? Este era apenas um show de música, nada mais.


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"Olhei no olho das pessoas e senti que o Brasil estava mudado": Fafá de Belém. A cantora das Diretas. Subiu e desceu por este país. Era dela um dos momentos mais comoventes dos comícios. Quando soltava uma pomba branca e cantava O menestrel das Alagoas, homenagem a Teotônio Vilela, um dos inspiradores do movimento. Quando começou tudo isso para Fafá, e por quê?


— Fui ao enterro de Teotônio, seguido por umas cinqüenta mil pessoas. No final, chegou em mim um homem de uns 27 anos, cara sofrida, corpo judiado, com três dentes na boca. Me olhou muito firme e disse:


— O Teotônio morreu e você tem que continuar. Você tem de olhar pela gente.


"Estremeci, me apavorei. O que significava isso? Logo entendi, embarquei. Era uma viagem sem retorno. No comício de Olinda vi as pessoas se misturarem nas ruas: povo e políticos, secretários de estado, vereadores, prefeitos, e a gente comum. Tinha qualquer coisa no ar, os políticos não pediam votos. Era algo maior que isso. E deu no que deu.


"Tenho experiência de lidar com palco e platéia. Os comícios eram diferentes dos shows. Quando acaba o show, o artista some, vai para o hotel, embarca em seguida. As pessoas esquecem. Os comícios eram somente ponto de partida, ali se deflagrava um espírito, chama. Com as Diretas, a platéia estava no palco, cada um era tão importante como eu, Ulisses, Lula, todos. Cada brasileiro foi ator e personagem.


"A mobilização fez o povo respirar. Fez pensar naqueles que não diziam NÃO por medo ou por proibição. Os jovens souberam das coisas e passaram a exigir. Ganharam, em quatro meses, a consciência e conhecimento que não tiveram em anos de escola e vivência. As Diretas desalienaram".


— E como foi sua relação com o grupo? Te aceitaram logo? Como é essa história de artista e política?


"No começo, eu disse ao Ulisses que ia, porque acreditava nas Diretas, mas não gostava muito dele. Depois, tudo mudou, ficamos grandes amigos. Os correligionários, os puxa-sacos ficavam incomodados, porque eu o chamava de Tio Lili. A mineirada também ficava desgostosa, porque o Tancredo era Tancredinho. Fomos nos tornando uma família, mas tive que enfrentar problemas tontos. O decote foi um, no começo. "Não pode", me diziam. "Corta essa, política não aceita estas coisas." Eu argumentava: "Mas é a minha imagem, os seios quase de fora. Por que mudar?" Que o quê! Me queriam de camisa fechada, mangas compridas, como uma devota. Em São Paulo, cortei a camiseta e entrei a minha maneira. Certa parte da imprensa e os políticos ortodoxos me condenaram, demoraram a entrar na minha.


— E o 25 de abril?


— Um horror.


— O que mais te marcou?


— Dante de Oliveira e Ulisses Guimarães completamente arrasados.


— O que te espantou?


— Ver alguns oposicionistas sorridentes.


— Um choque.


— O deputado Fernando de Magalhães declarando sarcástico: "Nem uma lágrima dessas aí coloca um só voto no meu bolso".


— O que machucou?


— Quando me dirigi a um grupo, dizendo que eles deveriam ocupar espaço nos meios de comunicação, para uma satisfação ao povo, recebi tapinhas nas costas. E um conselho: "Não seja infantil. Agora, menina, os amadores se retiram de cena e deixam os profissionais sentarem à mesa".


— Acha que p movimento continua?


— Está vivo. Vejo por onde ando, nos mínimos gestos. Outro dia, num restaurante, o garçom, conhecido malufista, veio me dizer que tinha pensado, estudado, e abandonado seu ídolo. Que o negócio são as diretas mesmo. Está todo mundo com isso bem no fundo, não se tira mais.


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A novilíngua ganhou o verbo Franciscatar = dizer, e depois dizer que não disse. É mais do que desmentir, mais do que mentir, mais do que voltar atrás. E desdizer com a cara de quem foi obrigado a isso. A expressão no momento de desdizer deve ser assim: Desminto, mas não acreditem no meu desmentido.


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A mobilização do Brasil inteiro funcionou como o liquidificador que desestruturou situações estabelecidas, mexeu com as cabeças, determinou reavaliações morais e políticas, modificou o comportamento da classe média, desmistificou valores, trouxe coragem. De um momento para outro, burguesia e classe média, cada setor atingido em seus privilégios, terminaram por reconhecer o velho aforismo com que criticavam e desmoralizavam as mudanças de esquerda: a revolução engole seus filhos. Esses setores que tinham feito 1964 viram que o golpe engoliu os filhos, netos e bisnetos. Não é pouco significativo o fato do Movimento de Arregimentação Feminino, MAF, locomotiva das marchadeiras com Deus pela liberdade, engrossar as fileiras da Diretas-Já.


Os meios de comunicação, sempre acusados de massificar (e massificam, num certo sentido), de repente se viram conduzidos. Foi a atitude do povo, a mobilização total, que determinou a mudança nas orientações de alguns jornais e, o mais importante, dos canais de televisão, essencialmente a Rede Globo, a princípio completamente ausente, avessa ao movimento, para empeitá-lo decisivamente na fase final. Esta força o povo descobriu em si. E daí o cair por terra dos mitos de que o brasileiro é apático, pacífico e conformista. Conceitos preconcebidos por uma classe, para poder dominar. Daí o cunho fundamental das Diretas-Já. Uma mais do que redescoberta, segunda e verdadeira descoberta do Brasil.


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Ganhando as ruas, o povo teve a sensação de liberdade. Vivi uma situação curiosa: a PM de São Paulo, nos dias de concentração, conversando sorridente com as pessoas, dando informações, um clima de cordialidade. Todo mundo sabe como é a relação da gente com a polícia, depois destes anos todos. Havia tranqüilidade e alegria. Foi Chico Buarque que disse: é preciso reinventar a alegria? Pois ela já foi. Fluidos de alto astral entre as pessoas. Mãos dadas, gente abraçada, gente se tocando. Recuperamos o toque, o carinho na ponta dos dedos. Os comícios eram o grande encontro, a irmandade, o afeto. Estou aqui, com você, meu irmão, amigo. Estamos juntos nesta. Entendimento, comunicação.


Acima de tudo, foi sensualidade.


Desenvolvida em seu mais alto grau. Um clima erótico auxiliado pelo enorme verão, pelo sol, noites quentes.


"Foi o grande verão dos últimos anos. Um verão só, para o Brasil inteiro. Uma festa, gigantesco embalo", disse Ziraldo, apresentador do comício de Belo Horizonte. "As ruas entupidas de gente, o contacto, as peles queimadas, o cheiro das pessoas, a excitação, o grande tesão. Podia-se sentir: as cidades com cheiro de porra. Descontração, ligação, paqueras, frisson. Conversei com um americano que me disse ter assistido a uma demonstração pró-diretas pelos brasileiros de Nova York. Ao ver aquele grupo com faixas e cartazes, gritando, indagou o que era. Informado de que era um protesto contra o governo brasileiro, admirou-se: 'Protesto? Não vejo ninguém de cara zangada'. Essa contestação brasileira foi marcada pela alegria, clima sensual. Porque o brasileiro é um povo que está muito mais para Eros que para Tânatos. Eu pergunto: em que lugar do mundo você junta dois milhões de pessoas, sem que uma só morra, saia ferida? Sem uma só briga, tumulto?"


Diretas-Já reativou o hábito do encontro, da conversação, despertou a curiosidade dos jovens, a solidariedade, união. Devolveu o otimismo e abriu os olhos para, a tendenciosidade de certos meios de comunicação. Frustrou os serviços de informação oficiais e garantiu a possibilidade de expressão. Fafá teve uma observação curiosa: "O movimento dos bóias-frias no interior do Estado de São Paulo, pedindo registro profissional, melhores condições de trabalho e salário, só foi possível por causa da lição das Diretas".


"O movimento dos bóias-frias em São Paulo, pedindo melhores condições de trabalho, só foi possível por causa da lição das diretas"

Os mais velhos certamente hão de se lembrar. As noites dos comícios não pareciam os tempos em que havia o footing nas cidades? Aquela instituição desaparecida, em que os jovens ficavam andando na praça ou rua central. Ponto de encontro, setor de comunicação, intercâmbio social, relações mais humanas, emotivas.


Um amigo me fez uma pergunta: ,será que o efeito destes quatro meses se fará sentir no futuro? Ou seja, geralmente, nove meses depois do carnaval, há um aumento na natalidade. Certamente vai se dar o mesmo no final deste ano, o clima foi propício. Encontro, contacto, alegria, humor, sensualidade geram amor. "Foi amor que o Brasil viveu", garante Christiane Torloni, outra que botou o pé na estrada.


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Parece mesmo que Maria de Fátima Figueiredo vai conseguir entrar em Brasília. Desceu do avião, encaminha-se para o ponto onde soldados revistam as pessoas, conferem documentos.


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Novilíngua. O cuidado que temos de tomar com as expressões. A conscientização mudou conceitos, aliás, preconceitos. Ziraldo foi vítima de uma destas camas-de-gato da língua. Em Goiânia discursava: "E se esse governo que está aí pensa que isto é uma terra de índios..." Silêncio na multidão, gelo no ar. Juruna se retirou do palanque. Goiás é "terra de índios", no bom sentido da palavra. Ou no verdadeiro sentido, porque o pejorativo foi termo imposto pelo colonizador, pela elite do poder.


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Na véspera do comício da Candelária, Tarso de Castro procurou Brizola:


— Denise Goulart, filha do Jango, está no Rio, você precisa levá-la ao comício. É uma homenagem ao pai, desagravo.


— Vamos ver, vamos ver. Manda a menina aí.


Denise foi ao palácio, teve a maior dificuldade de entrar, esperou um tempão e finalmente foi recebida, combinou-se sua presença no palanque. No dia seguinte, comício comendo e nada de Brizola apresentar a Denise ao povo. Então, Tarso virou-se para o Lula e disse: "A filha do Jango está aí, apresenta você". Foi uma das grandes cartadas do Lula. Denise, aplaudidíssima. Das mais aplaudidas. Depois, também seria em Porto Alegre. Dia seguinte, Brizola de cara fechada para o Tarso.


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Todos os governadores levaram vaias, com exceção de dois, recebidos com o maior carinho pelo seu povo: Wilson. Martins, de Mato Grosso do Sul, um verdadeiro ídolo, e Iris Rezende, de Goiás.


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Decepção do país com os seus capitães nas copas do mundo. Bellini tirou da seringa, disse que nada sabia de política. Mauro declarou-se indiretista, apoiando o PDS, assim como Carlos Alberto Torres que chutou: "O povo não está preparado para votar". E o Pelé acabou participando da mobilização, fechou com as Diretas, esquecendo antiga afirmação, hoje repetida por Carlos Alberto.


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No avião, a caminho do Rio, para entrevistar Christiane Torloni, encontro Mauro Sales, comunicador, homem de publicidade, jornal, televisão, atento aos fenômenos deste Brasil. Proponho quatro questões, rápidas:


— Reação do povo. Transformação das cabeças. Mudanças. Rejeição.


— Houve o velho e o novo. Velho, quase esquecido, era o grande comício em praça pública, normalmente organizado para abrir ou fechar campanhas. Tinha caído em desuso. Mesmo as diretas estaduais de 82 não tinham sido marcadas por nenhum comício dos antigos. Nova foi a recauchutagem da antiga idéia. Os grandes comícios tinham desaparecido por causa da televisão, dos debates, das' entrevistas ao vivo que estimularam "a participação passiva" (se é que isso existe) do eleitor, que não precisa sair de casa para conhecer os candidatos. Nas Diretas, o novo foi se dar ao povo a sensação (e a certeza) de que ele (e não os oradores) é que era o comício. A festa estava de pé no chão. No palanque, só a regência. Novo foi o sentido de ordem e tranqüilidade, da falta de atropelo, da necessidade de dar o bom exemplo que contagiou o povo. Empurra-empurra e desorganização só houve em alguns palanques, jamais no asfalto. Novo foi o sentido "do contra" que contagiou os comícios, e que, a meu ver, foi maior do que o "a favor". A emenda Dante de Oliveira e a própria tese das Diretas acabaram se transformando no grande pretexto "a favor" que deram ao povo ou o povo escolheu.


Isto todo mundo sabia. Mas o que se viu na rua foi a força muito maior de uma atitude contra. O povo contra os governos (e não apenas o federal), contra a inflação, os juros altos, as mordomias, a corrupção, os escândalos. Contra, contra, contra. Umas vaias inesperadas, e outras esperadíssimas, provaram isso muito bem. A mistura das teses, declaradas e subjacentes, deixou claro que o movimento Diretas-Já foi na verdade movimento pelas Mudanças-Já. É por isto que a derrota da Dante de Oliveira não significou frustração tão grande quanto previam os analistas. Porque a Mudanças-Já não foi derrotada. A emenda Figueiredo foi recebida (no fundo) como a vitória da tese. As negociações são uma vitória da tese. A desarticulação do PDS (e de parte do PMDB) são vitórias da tese. E a possível união de candidatos contra o nome que o PDS vai escolher na convenção, também. Só se as mudanças saírem da ordem do dia é que a campanha Diretas-Já terá fracassado. Aí, serão outros quinhentos...


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A novilíngua trouxe para a política um termo da ciência. Pseudópodes = seguidores do governo. Pseudópodes são os prolongamentos de que se servem as amebas para se locomover. Na semana da votação, a censura voltou a agir. Duas palavras mudaram o sentido. Texto analisado = texto liberado. Texto devolvido = proibido.


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— Tarso, e depois da rejeição da emenda? Você sentiu o povo frustrado, desanimado? Brochada geral?


— O que houve foi, é claro, ressentimento. Mas o processo continua. No fundo apenas uma minoria sabe totalmente da rejeição. A grande explosão virá com a nomeação do novo presidente, com o sucessor indicado pelo colégio eleitoral. Esse vai ser o momento da suprema informação. Esse o instante da rejeição verdadeira. Quando a massa ganhará consciência de que foi enganada.


— Acha que vai haver o quê, então?


— O Tancredo Neves fez uma observação agudíssima, parece que não percebida pela maioria: "Não houve agitação, nem quebra. Mas tudo isso ficou guardado em algum lugar dentro do povo. Pode esperar que a explosão virá".


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A filha do indiretista Adail Vetorazo, merecedor com justiça do prêmio Silvério dos Reis, instituído por José Yunes para os traidores, estuda no Colégio Anglo, em São José do Rio Preto. Nos dias seguintes à votação, havia imenso constrangimento entre alunos, colegas da menina. Até que certa manhã, os muros do Anglo amanheceram pichados: "Sílvia, nós te amamos, apesar do teu pai". Era o Brasil de braços dados.


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Em Jacobina, Bahia, choveu torrencialmente no dia do comício. Fazia cinco anos que não chovia na região. Até chover? As Diretas foram demais.


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Nunca imaginei que fosse vero que vi, no Largo de São Francisco, diante da Secretaria de Cultura, onde se aglomerava pequena multidão. Três governadores desceram de um microônibus, atravessaram entre o povo, foram puxados pelo braço por repórteres, cumprimentados pelas pessoas. Tancredo Neves, Brizola e Montoro no meio da massa. Descontraídos. Sem um único segurança, sem um brutamontes em torno, sem aqueles policiais que se disfarçam de policiais. Expostos, e sossegados. O povo estava com eles.


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Novilíngua. Tampão, entendimento, negociação, consenso, vigília cívica, modelo, emendão, crucificar (é o que o Cruz faz).


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Me ocorreu que o Mauro Sales se esqueceu de dizer que além de cindir o PDS as Diretas derrubaram um ministro, o da Marinha, Maximiliano da Fonseca. Quanto ao novo ministro, Alfredo Karam, o racha foi na família. Porque um dos filhos é diretista e até cantou música que compôs para o comício de Campo Grande.


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Ninguém vai se esquecer daquelas mulheres que freqüentaram todos os palanques, que mal dormiram, ativistas, combativas. Ruth Escobar, Bete Mendes, Christiane Torloni. Ou as que invadiram Brasília e "assustaram" o sistema.


Christiane, sobrinha de um vice-governador de São Paulo, o Hilário, homem que foi deputado progressista. Na política desde 1982, quando participou da campanha eleitoral, ao lado do marido, Eduardo Mascarenhas, Christiane hoje está tarimbada, escolada. Mas profundamente ferida com o episódio da rejeição. Ela batalhou muito para superar tabus, dar a volta por cima dos preconceitos.


"A passagem é difícil, quando queremos sair de nosso gueto e alargar. Os donos não deixam. Nossos intelectuais, pavões neolíticos, são terríveis. Possuem a arrogância do saber. Acho que consegui chegar ao povo, depois de ultrapassar a barreira dos intelectuais e políticos. No meio do povo, não fui discriminada. Ao passo que entre as elites, sim. As elites é que fizeram de mim 'objeto sexual'. Do povo só recebi carinho, afeição, nunca fui desrespeitada.


"Um dia, estava no avião, quando um escritor e jornalista do Rio olhou para mim. Cumprimentei, ele fez cara surpresa, depois riu: 'Puxa, com esse monte de roupa em cima, nem tinha te reconhecido'. Quer dizer, é preciso passar por cima de tudo isso, para poder avançar.


"E avancei. Igual ao Brasil que vive o divórcio entre o povo e a elite. Este é um casamento não realizado, mas em vias de. A campanha das Diretas proporcionou a oportunidade de um namoro. Evidente que um casamento não é a solução, casamento não soluciona nada. Mas pessoas que vivem juntas podem se conhecer melhor, trocar idéias, se ajudar nos problemas. E fazer amor.


"O coração do brasileiro pede isso, este casamento. Porque este é um povo massacrado. Somos uma pátria sem pai. Abandonada. Mal-amada. Carente de afeto. A gente pode até passar fome. Mas se tem algum carinho, atenua. Agora, passar fome, ser mal-amada e ainda suportar os acessos de mau humor de quem governa, é demais!


"Quando a mobilização começou, havia certa esperança, mas incredulidade. Depois, até os pais da idéia ficaram surpresos. Porque acabaram a reboque do movimento que tinham começado. O povo conduziu a final.


"Andando por este Brasil, descobri o povo. A hospitalidade, a generosidade, o desassombro. Todo mundo abraçado, indo, lutando. Teve comícios em que não suportei, chorei. Ao ver o olhar transparente das pessoas. A crença, a ingenuidade, o se entregar. Chorei na noite de 25 de abril em Brasília e não podia compreender a frieza de certos políticos, depois que tudo acabou. Admirava a capacidade de "recuperação". De repente, entendi. Política exige fortaleza. Porém, as pessoas precisam aprender a transar a delicadeza, o gesto de carinho, o amor. Porque este é um país de amor. Que viveu vinte anos com o sentimento de abandono, rejeição, com a idéia de separação e solidão. Vinte anos de falta de afetividade.


"O que senti no 25 de abril foi a violência da injustiça. Aqueles homens que estavam lá por nossa causa tinham sido eleitos por nós, que são pagos por nós, traindo, abandonando. Decidiam um destino, sem se importar com o fato de que a nação já tinha decidido o próprio destino. Foi um casamento separado no ato, acabou no civil. Fui, naquela noite, testemunha de um assassinato, genocídio.


"A sessão do congresso, com os ausentes e os que gritaram não, transformou-se na missa negra da História do Brasil. E o silêncio que caiu depois sobre tudo é um insulto.


"Ah, como me sinto impotente! Eu, que tinha acreditado tanto. Como todo esse povo."


— De onde veio essa força, Christiane? Essa esperança?


— Da paixão. Quando a paixão inunda a pessoa, tudo se transforma. Você transmite essa paixão a tudo. Ri da comida queimada, do atraso, da empregada desajeitada, da batida do carro, acha o pior trabalho uma maravilha. Tudo fica bom. Acontece que o brasileiro se apaixonou pelo Brasil. Passamos a nos beijar, nos abraçar, nos afagar com um ardor de quem nunca tinha se beijado antes. Fomos para as ruas, recuperar o amor perdido, ou malfeito. Ou nunca feito.


— E aí aconteceu.


— A cópula interrompida. Estávamos excitadíssimos e não nos deixaram gozar. Mas esse gozo reprimido há de vir, é impossível segurar. Ninguém suporta reter por muito tempo. Dói.


"Foi uma cópula coletiva. Estávamos excitadíssimos e não nos deixaram gozar. , Mas esse gozo há de vir. E impossível segurar, Dói!" (Christiane Torloni)

O orgasmo contido. Mas guardado. Virá, Christiane.


A explosão tornada implosão dentro de cada um, Tancredo.


E o futuro?


Sim, sim. Maria de Fátima Figueiredo entrou em Brasília. Não com seu nome verdadeiro, o dos documentos. Mas o que ela usa e que todo mundo conhece: Fafá de Belém.


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E o refrão das Diretas continua a ser visto em muros, a ser cantado em atos públicos, assembléias, ou mesmo solitariamente por alguém que caminha ao léu:


Chora Figueiredo, Figueiredo chora, que chegou a tua hora.


E está chegando a nossa vez.


ILUSTRAÇÃO HERMES URSINI



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