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AMORES DE ESTUDANTE

Ficção



Por FERNANDO SABINO


O demônio também já foi um anjo. Podia não ser o caso de Dona Selma, mas, pelo sim, pelo não, preferi moderar o entusiasmo do estudante:


— Um anjo, não digo. Mas não deixa de ser uma boa mulher.


— Uns anjo de criatura, podes crer — insistiu o jovem.


Estávamos no bar da esquina, e eram 10 horas da noite. Eu chegara cansado da cidade e, como ainda não havia jantado, resolvi comer alguma coisa ali mesmo, perto de casa, onde não me incomodassem conhecidos eventuais. A entrada quase simultânea do estudante contrariou meus planos: ele viera para uma cerveja e, ao dar comigo sozinho no bar meio vazio, tinha que acabar se sentando à minha mesa.


Embora morássemos em quartos alugados no mesmo apartamento, nunca havíamos trocado uma palavra, senão cumprimentos de passagem. Eu ficava o dia inteiro mergulhado na papelada do cartório, como mal remunerado escrevente (é verdade que isso foi há muitos anos). Ele viera do interior para estudar no Rio, devia receber mesada de casa — era tudo o que eu sabia. Agora, à falta de outro assunto, a conversa acabava se fixando em Dona Selma, nossa senhoria.


— Gente fina, vai por mim — continuava ele. — Merece mais do que o marido que tem.


Concordando em relação à mulher, esquivei-me quanto ao marido. Mal o conhecia, e em nossos encontros no elevador ou no corredor do apartamento eu mantinha cautelosa reserva, semelhante à que dispensava ao próprio estudante. Sabia ser um major reformado, dava tudo por um joguinho — o que parecia já estar ameaçando a estabilidade do casal. Pelo menos era o que sugeriam, durante suas longas ausências, as alusões discretas da mulher, seus mudos olhares. Estes, não posso dizer que fossem expressivos a ponto de dar segundas intenções à mudez dos meus. Mas eram mansos como os de uma vaca e lhe acrescentavam um ar nostálgico de quem já tivera melhores dias. No mais, vestia-se com esmero, punha ritmo no andar, era simpática e estúpida como só os maridos merecem.


Aqueles peitos provocantes e atrevidos, verdadeira bundinha extra sobressaindo do decote...

Não se podia afirmar, como fazia o estudante, que o seu não a merecesse. Para dizer a verdade, me impressionava nela algo menos sutil: aqueles peitos provocantes e atrevidos, verdadeira bundinha extra sobressaindo do decote. Podes crer — a idéia me fez rir.


— Em que você está achando graça? — o estudante quis saber, agastado.


— Nada não — respondi, evasivo. — É que eu não conheço bem o marido dela.


— Um péssimo caráter, vai por mim. Passa a vida jogando por aí nuns antros clandestinos, e a mulher que se arranje. Não dá um tostão em casa. Sujeitá-la a essa humilhação de ter que alugar quartos a qualquer um para poder se manter!


— Não somos qualquer um — protestei.


— Não digo nós. Felizmente para ela, nós ainda somos bons inquilinos, não damos trabalho e mal paramos em casa. Mas, e se não fosse assim? Além disso, e se ela de repente precisa de alguma coisa, um médico, por exemplo, alguma ajuda, quem vai providenciar? Não há de ser aquele marido de meia-tigela que vai tomar conhecimento. Passa dois, três dias sem aparecer! Para mim tem outra.


— Outra o quê?


— Outra mulher.


Dali por diante deixei que ele continuasse nesse tom, dispensado que eu estava de responder, a pretexto de jantar. Aproveitava a oportunidade para observá-lo. Nunca havia imaginado que sob a aparência meio circunspecta de moço tímido e retraído, com quem às vezes cruzava no corredor do apartamento, se escondesse temperamento tão expansivo:


— ...um sujeito ordinário — insistia ele, já no segundo copo. — Sei de coisas que um dia ainda hei de te contar. Dona Selma é uma santa só de aturá-lo.


Saímos juntos do bar e, antes de chegar ao nosso edifício, ele me sugeriu que encerrássemos a noite em lugar mais alegre. Quase o acompanhei, por curiosidade malsã: esperava que acabasse me contando as tais coisas que sabia. Prudentemente me abstive, e voltei para casa, pensando nos peitos de Dona Selma.


Passamos a nos encontrar com relativa freqüência, mas nem a sua loquacidade nem a cerveja anulavam certas zonas de cerimônia nas nossas relações. Podia-se prever para. futuro próximo, à falta de lastro, o declínio de uma convivência decorrente do fato de sermos ambos pensionistas de Dona Selma, nosso único assunto em comum.


Ele não se cansava de enaltecer-lhe as virtudes, as delicadezas de senhoria, os desvelos para conosco, "como nem os filhos merecem" — deu-se ao exagero de afirmar um dia. Pregara certa vez botões numa camisa sua, incentivava-o a estudar para os exames finais do curso (que eu nem sabia qual fosse). Mas, fora disso, nada de específico me adiantou a respeito da mulher. E uma tarde, para surpresa minha, apareceu no bar em companhia do marido dela.


Era sexta-feira, na hora em que eu deveria estar na cidade. Depois de uma semana exaustiva, conseguira dispensa do trabalho mais cedo e viera para o bar em busca de distração. O estudante se surpreendeu ao dar comigo, e seu companheiro ficou ligeiramente desconcertado. Ambos vinham alegres e riam, como a propósito de uma conversa que minha presença interrompera.


— Você por aqui a esta hora? — o estudante sentou-se à minha mesa, seguido a contragosto pelo outro. Nem bem pediram uma cerveja, este pretextou um compromisso, escusou-se e saiu, deixando-nos a sós. Não pude resistir:


— Vou passar a ter cuidado com você.


— Comigo? Por quê? — estranhou ele, servindo-se da cerveja com gestos estabanados.


— Imagino só o que você pode vir a falar de mim pelas costas.


— Não estou entendendo.


— Você não disse que o homem era ordinário, sem caráter, e mais isso e mais aquilo?


Tive a impressão de que por um momento o jovem pensou em negar:


— Ah, ele? — e indicou a porta por onde o homem acabara de sair. — Mas isso eu... eu... eu falo até com ele próprio! Vivo falando que... Falo com ele próprio, você ainda vai ver.


Tamanha era a sua confusão que acabei alegando também um compromisso, para poder deixá-lo.


Não tornei a ver o estudante senão uma semana mais tarde. Nossos horários não coincidiam e, levado por outros rumos, cheguei a esquecê-lo naqueles dias. Em casa eu ia direto para o meu quarto sem nem saber se ele estava no seu. No domingo, porém, um trabalho extra que eu precisava ultimar e trouxera comigo conservou-me acordado até tarde da noite e, quando vi, ele irrompia ruidosamente porta adentro, estirando-se na minha cama às gargalhadas.


Estava bêbado. Foi preciso que eu insistisse para não fazer tanto ruído, Dona Selma podia estar dormindo.


— Dormindo, ela? — e suas gargalhadas redobraram.


Como não me quisesse dizer em que achava tanta graça, embora eu insistisse em saber, acabei, aborrecido, recolhendo os meus papéis:


— Me desculpe, mas já é tarde, eu é que vou dormir.


Ele não fez a menor menção de sair. Apenas se moveu para a extremidade da cama, dando-me lugar. Estando de pijama, resolvi me deitar assim mesmo, sem fazer caso de sua presença, na esperança de que se retirasse.


— Fui a uma festa — falou, com a voz alegre e rouca. — Ele estava lá.


— Ele quem?


— Ora, ele quem — e, ainda a rir; fez um gesto de cabeça em direção ao quarto de Dona Selma.


Não chegou a me dizer em que achava tanta graça. O riso acabou morrendo num suspiro de cansaço e ele virou-se para o outro lado. Em pouco ressonava como se estivesse dormindo. Num movimento de quem se ajeita na cansa dentro do sono, chegou-se mansamente para mim, de costas, o corpo já roçando o meu. A princípio fiquei imóvel, sem saber que atitude assumir. Como ele se chegasse ainda mais, aproveitei-me do movimento para sacudi-lo pelo ombro, enquanto me erguia:


— Vamos, rapaz, senão você acaba dormindo aí.


Levei-o com dificuldade até a porta de seu quarto. No dia seguinte não toquei no incidente, que ele, por seu lado, pareceu ignorar.


Tudo levava a crer que Dona Selma era mesmo um anjo — pelo menos no que se referia ao estudante e sua nascente amizade com o marido dela. Até que uma tarde o jovem me telefonou para o cartório:


— Você podia vir aqui agora com urgência? Pelo amor de Deus, entrei numa fria, preciso de ajuda, vem rápido, por favor!


O tom de sua voz, abafada e ansiosa, me alarmou: devia ser alguma coisa bem grave. Não vacilei em largar o serviço em meio e me precipitar até um táxi, rumando para o apartamento, certo de que havia acontecido uma desgraça. As coisas ali dentro não iam bem, o triângulo estava formado — eu não sabia de que lado iria ele estourar.


Quando cheguei, lembrei-me de sua instrução ao telefone e usei a campainha. O marido de Dona Selma veio abrir:


— Perdeu a chave? — perguntou, de cara amarrada.


Não estranhei, pois viera contando com o pior:


— Esqueci no bolso ao trocar de roupa — expliquei, adiantando-me pelo corredor.


Foi quando o estudante surgiu à porta de seu quarto, lívido, e avançou para mim, barrando-me os passos:


— Vamos sair, vamos sair — sussurrou.


Cruzamos com o dono da casa ainda na sala e saímos sem nenhuma explicação. Só ao ganharmos a rua ele se arriscou a abrir a boca:


— Imagine que ela estava comigo no quarto quando ele chegou. Nunca apareceu em casa a essa hora.


Estavam na cama quando ouviram os passos do marido. Chamava a mulher, procurando-a por toda a casa

Contou-me então, aos pedaços, o que havia acontecido. À tarde Dona Selma fora para o quarto dele, "como de costume". Desde quando? — pedi detalhes, interessado, mas ele, nervoso, nem sequer me ouvia. Só fiquei sabendo que estavam na cama quando ouviram os passos do marido na sala. Chamava a mulher, procurando-a por toda a casa, na cozinha, no banheiro, no quarto dela e até no meu. Atemorizados ("Ele é capaz de me matar", ela teria balbuciado, apavorada), Os dois se vestiram às pressas e a princípio o estudante pensou em não atender quando ele veio lhe bater à porta. Aos cochichos, porém, ambos concluíram que estariam encurralados para sempre e a mulher resolveu se meter debaixo da cama enquanto ele ia ver o que desejava o marido, barrando-lhe a passagem com o corpo:


— Deseja alguma coisa?


— Gostaria de saber onde está minha mulher.


— Não sei informar. Não saí daqui a tarde toda.


Incerto em suas suspeitas, o homem não se aventurou a uma busca ali dentro. Limitou-se a montar guarda no corredor, enquanto o estudante voltava a se trancar no quarto. Ali ficou durante horas, à espera de que o inimigo lhe desse uma trégua. De vez em quando saía e se arriscava até o banheiro, para ver como iam as coisas — pronto a se refugiar no quarto se o outro fizesse o menor movimento. E a mulher debaixo da cama. E o homem firme, fingindo ler um jornal na cadeira da sala, em frente ao corredor.


A mulher debaixo da cama. E o homem firme, fingindo ler um jornal na cadeira da sala

Então o estudante teve a idéia de me pedir ajuda pelo telefone lá na copa, sem que ele visse. Seu plano consistia em desviar a atenção do marido para a porta da rua, quando eu chegasse, e a mulher pudesse ganhar rapidamente a cozinha além de meu quarto, saindo pela porta de serviço sem ser pressentida. Na realidade o estratagema deixou o campo livre por um instante, mas ela, aterrorizada, em vez de alcançar a cozinha, refugiou-se em meu quarto, que era mais próximo. À vista disso, o estudante perdera a cabeça e me arrastara para a rua.


— E agora? — exclamei, preocupado. — A estas horas ela já deve ter sido descoberta. E logo no meu quarto...


— Isso não o compromete, porque você não estava lá — comentou ele. — Eu é que estou perdido. E se esse homem resolve mesmo matar a mulher? Ou a mim... Afinal de contas, numa situação dessas, qualquer um...


Achei prudente que ele não se arriscasse a voltar tão cedo ao apartamento e fiquei de lhe informar o que havia acontecido.


Não encontrei ninguém — embora não me arriscasse a percorrer todos os cômodos, como fizera o marido. Temia encontrar a mulher morta num dos quartos, que agradeci a Deus não fosse o meu.


À noite, porém, Dona Selma apareceu. Vinha da rua e parecia cansada, tinha os olhos vermelhos e inchados, de fazer pena. E já não ostentava, pelo menos a dar na vista, os peitinhos atrevidos. Comunicou-me, embaraçada, que havia resolvido suspender o aluguel dos quartos, ia se mudar imediatamente, fechar o apartamento. Não fiz nenhuma objeção, se bem que faltassem ainda alguns dias para terminar o mês já pago. Ela falara com simplicidade, como se eu estivesse a par de suas razões. E, estando mesmo, não tardei a amimar as minhas coisas (e a pedido seu as do estudante), para no dia seguinte descobrir uma pensão nas imediações.


Não tornei a vê-la e o próprio estudante, muitos dias decorreram até que viesse à minha presença em busca de seus pertences. Comunicou-me então o desfecho do caso:


— Quando saímos, ele não perdeu tempo em vasculhar meu quarto, à procura dela. Acabou indo procurar novamente no seu, para achá-la escondida no armário, de onde foi arrancada aos pescoções. Ela própria me contou. Não estão mais vivendo juntos.


Nem fiquei sabendo onde fora viver ele próprio, esqueci-me de perguntar. O certo, todavia, é que estava findo o nosso convívio, nascido em tão excitantes circunstâncias. Perdi-o de vista e somente voltei a vê-lo tempos mais tarde, quando o acaso nos pôs lado a lado no mesmo banco de um ônibus. Como era natural, pedi-lhe notícias de Dona Selma (nosso único assunto em comum).


— Está vivendo de novo com o marido, parece — informou-me com indiferença.


Logo acrescentou, no tom vivaz do jovem estudante que me habituara a conhecer:


— Tenho pena dele: não se negou a aceitar a mulher de volta, apesar de tudo que aconteceu. É um cara legal, podes crer. Casado com uma mulher daquelas, um verdadeiro demônio. Merecia coisa melhor.


O demônio também já foi um anjo... Antes que ele se dispusesse a me explicar em que consistia a coisa melhor, preferi me despedir e deixar o ônibus.


ILUSTRAÇÃO CARLOS SCLIAR



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