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CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

Artigo



O fim de uma civilização

Na ponta da faca, no tiro da bala e na cama: os nossos índios desaparecem


Por ÁLVARO VILLAS BÔAS


A palavra civilização tem um sentido muito amplo, não muito preciso, às vezes ambíguo... Por isso mesmo, pode dar margem às mais estranhas confusões. Se, para alguém, civilização é apenas uma série de realizações no plano material, esse alguém deverá admitir, ipso facto, que não existe e jamais existiu uma civilização indígena no Brasil. Houve em outras partes do continente. Os Incas do Peru, os Astecas do México — assim como anteriormente os Maias da América Central e sul do México — construíram grandes e poderosos impérios. Os Incas, como se sabe, possuíam cidades, canais de irrigação, vias calçadas que transpunham montanhas e desertos, templos, fortalezas e até mesmo um eficiente serviço de correio para uso exclusivo da sua eficiente administração imperial. Praticamente a mesma coisa se poderia dizer com relação aos Astecas.


Tudo, porém — do palácio asteca ao correio inca — sucumbiu à pólvora, à cobiça e ao fanatismo dos conquistadores espanhóis. E, como os ditos conquistadores eram "mensageiros" de outra civilização, fica-se em dúvida quanto ao verdadeiro sentido dessa palavra caprichosa e furta-cor.


Mas voltemos ao Brasil. Aqui, os portugueses não encontraram impérios. Isso, porém, não significa que o Brasil de 1500 era tão aborrecidamente vazio quanto o interior da Austrália ou da Groenlândia. Não. Todos nós sabemos que inúmeras tribos, apresentando padrões de cultura semelhantes, mas não inteiramente iguais, viviam espalhadas na vastidão do território e que, aos poucos, no decorrer do tempo, foram sendo conhecidas. Como parece fora de dúvida que o nosso índio sempre se mostrou mais afeito às danças, cantos, festas e cerimoniais do que à violência ou à guerra, poderíamos falar de uma "civilização indígena" em termos de Brasil, embora jamais tenha existido por aqui o brilhante aparato dos incas e astecas.


Na realidade, ontem como hoje, o nosso índio só entrava em luta, só "perdia a cabeça", quando sua liberdade, sua família, sua aldeia, estavam em jogo. Mas como isso foi rotulado de barbárie, de selvageria e de outras coisas assim, é natural que ele apareça na tradição popular — e até no currículo das escolas — com a feroz catadura que todos nós conhecemos.


A primeira tribo a ser contatada deve ter sido a que se encontrava na praia alcançada pelas caravelas do vice-almirante Cabral; a última foi a dos Kreen-Akârore, atraída por uma expedição da Funai em 1973.


Não se sabe, é claro, quantos índios existiam em 1500. Nesse ponto, as opiniões divergem. Alguns entendidos falam em três milhões, outros, em dois, em um milhão e até em quinhentos mil índios. Seja como for, houve um enorme decréscimo, visto que, nesta altura, o número de -sobreviventes" não chega a oitenta mil. É certo que a Funai — Fundação Nacional do Índio, órgão oficiai de proteção — acredita na existência de 150 mil índios. Entretanto, qualquer pessoa teria o direito de pôr em dúvida essa estimativa otimista, pois, até agora, não se fez um levantamento das tribos contatadas, nem se avaliou o contingente humano representado pelos grupos que — felizmente para eles! — permanecem isolados em Mato Grosso e na Amazônia.


NO SÉCULO 17, PEDRO DA COSTA FAVELA E SEU PESSOAL EXTERMINARAM 20 MIL ÍNDIOS

Seria muito difícil fazer um retrospecto do que tem sido as relações entre índios e não-índios nestes quase cinco séculos de história. De qualquer modo, parece que a população indígena começou a declinar no dia 22 de abril de 1500, ou na semana seguinte, ou, ainda, alguns anos mais tarde, quando portugueses, franceses e ingleses, descobrindo que a terra era muito rica em pau-de-tinta, passaram a utilizar o índio no corte e no transporte dos toros vermelhos que iam rechear o bojo das naus e caravelas.


O emprego do índio na extração do pau-de-tinta, ou pau-brasil, representa, historicamente, a primeira ingerência do civilizado na economia tribal. Representa também o primeiro abalo provocado nessa economia. Daí para cá, esse fato — por razões compreensíveis —tem sido uma espécie de conseqüência lógica, fatal e inevitável de todos os contatos entre índios e civilizados. Ainda hoje, o índio que vive nas reservas ou postos da Funai trabalha para o fazendeiro vizinho na mesma base em que trabalhavam seus antepassados nos tempos do pau-brasil, lá por 1520. E se alguém deseja conhecer a causa de tudo isso, aqui está ela: o antigo SPI (Serviço de Proteção aos Índios, extinto em 1967) e a Funai, sucessora do SPI, não conseguiram desenvolver as áreas de índios aculturados. Como não houve desenvolvimento, foi impossível livrar esse índio da exploração dos brancos que integram as chamadas "populações civilizadas envolventes".


Em resumo, não encontrando meios de subsistência, nem atrativo de espécie alguma em sua própria área, o índio aculturado vai procurá-los na fazenda vizinha e, então, quem o ajusta para o trabalho não é o homem atualizado, que viaja de avião etc., mas o duro e frio marinheiro do século 16, aquele que "errava" no cálculo de toros de pau-brasil, e comprava papagaios com punhados de contas de vidro.


Não há exagero na comparação. Afinal, ressalvadas as aparências, tudo continua como dantes. Mas também é verdade que nem todos os índios são explorados. Um certo número de tribos — vivendo em relativo isolamento — mantém a antiga cultura e permanece razoavelmente equilibrado em sua própria economia. Estão, neste caso, os índios das diversas tribos do Alto-Xingu, os Cinta-Larga de Rondônia e outros. Todos eles formam a categoria dos "não-aculturados", gente que ainda maneja o arco, pinta o corpo, usa enfeite de pena, consulta o pajé e não conhece dinheiro.


Existem, portanto, duas categorias de índios, o que torna evidente a necessidade de duas políticas, uma de caráter desenvolvimentista para os aculturados, e outra de preservação de culturas, de assistência adequada, especial, para os índios de arco e flecha. A Funai, mais que o SPI, está consciente da diferença, e tem procurado usar a política certa no lugar certo.


Todavia, por uma série de razões — inclusive excesso de planejamento — os resultados colhidos até agora não são muito significativos. De qualquer maneira, seria bem pior para o índio se não existisse a Funai.


O contexto índio—civilizado é, em suma, um rosário de problemas. O mais grave, certamente o mais irritante entre todos, já foi mencionado neste comentário: o descenso, nunca interrompido, da população indígena. Começou quando o país ainda se chamava Terra de Santa Cruz, e até o momento ainda não foi estancado.


Seja dito que em algumas áreas e por tempo limitado, a população indígena permaneceu estável ou apresentou ligeiro crescimento, porém, no conjunto, sempre esteve em declínio


Nesse particular, fracassaram: as providências do marquês de Pombal (deu liberdade e plena cidadania aos índios, além de criar um órgão para atendê-los, o Diretório dos Índios, após a expulsão dos missionários jesuítas), o trabalho persistente dos missionários, as medidas isoladas de muitos governantes do tempo da Colônia e do Império, o humanismo prático de Rondon, a dedicação quase heróica de alguns funcionários do velho SPI, as iniciativas da Funai etc... Tudo em vão. Os índios continua m desaparecendo.


Diante do fato, é possível que este ou aquele venha a pensar em massacres como os que se sucederam nos Estados Unidos, e dos quais o cinema tem apresentado imagens surpreendentemente realistas. Sim, no Brasil ocorreu algo semelhante, mas não ontem, nem na semana passada. A última chacina, conforme se sabe, foi perpetrada no Território de Rondônia, limites com o Estado de Mato Grosso, entre os Cinta-Larga, em 1963, pela qual seis homens foram acusados, mas apenas um, Ramiro Costa, condenado, em 1974, a onze anos de prisão. Não há notícia de outras mais recentes.


Entretanto, há quatro séculos, há três, há dois, no século passado, no início do atual e mesmo há poucos anos ocorreram por aqui certos fatos que teriam merecido aplausos do general Custer e de outros "caçadores de índios" da história norte-americana. No século 17 por exemplo, Pedro da Costa Favela e seus comandados, exterminaram vinte mil índios na Amazônia. Mais tarde, Antônio de Almeida Lara (é imprescindível que os nomes desses "heróis" apareçam por extenso), chefiando uma bandeira, investiu com extrema ferocidade contra os índios Guaycuru, e João de Godoy Pinto da Silveira, conduzindo outra, reduziu os Karajá do rio Araguaia a um terço do que eram. Antes disso, Manoel de Campos Bicudo, e seu filho Antônio Pires de Campos, andaram queimando aldeias e causando devastação entre os Caiapó e Pareci.


A lista das atrocidades iria longe, porque houve muitos "Favelas" e "Bicudos". Sempre os tivemos. Ainda no princípio do século 20 existia no Brasil a desprezível classe dos "bugreiros", homens pagos para exterminar índios em áreas que iam sendo abertas à colonização nos Estados de Santa Catarina, São Paulo, Espírito Santo...


Esse fator — o extermínio puro e simples -, assim como a mestiçagem, concorreu, obviamente, para o desaparecimento do índio. Com relação à mestiçagem, basta lembrar que em diversas regiões a camada primitiva foi se desagregando e dissolvendo em contato com o elemento colonizador e seus descendentes. Como na história da própria Bartira, que hoje é nome de rua e de poema, e a das inúmeras Bartiras de ontem e de anteontem. (Bartira, filha do cacique Tibiricá, era casada com o português João Ramalho, uma união que facilitou desde o sucesso da capitania de São Vicente à fundação de São Paulo e à paz com a confederação dos Tamoio.)


O resultado aí está. Qualquer um, mesmo que não seja observador arguto, poderá "enxergar o índio", meio diluído, no caboclo da Amazônia, no sertanejo do Maranhão e do interior nordestino, no gaúcho da fronteira, no brasileiro de algumas áreas de povoamento antigo de São Paulo, Minas Gerais etc.


Resta fazer uma referência, ainda que ligeira, a outro fator importante: a baixa resistência, para não dizer a vulnerabilidade do indígena às moléstias não-americanas, isto é, à gripe, à tuberculose, à varíola, ao sarampo, bem como a outros males de origem européia ou africana. Afinal de contas, se ainda hoje uma epidemia de sarampo — não havendo socorro — pode levar toda uma tribo ao desaparecimento, é fácil imaginar os desastres e horrores que as epidemias causaram no passado. Dos três fatores referidos — extermínio, mestiçagem e vulnerabilidade — somente o último continua representando uma séria ameaça para os tutelados da Funai.


O brasileiro faz do índio uma espécie de imagem que não corresponde à realidade. É muito esquemática para ser verdadeira. Segundo essa imagem, formada de retalhos e fragmentos apanhados aqui e acolá, na tradição popular, no folclore e, às vezes, na escola (!), o índio é uma criatura absolutamente selvagem, sem nenhuma idéia do que seja família, que se alimenta de raízes e frutos, perambula pela mata, adora o Sol, a Lua e as estrelas, não tem medo de onça e fala o tupi-guarani. Além disso, é cruel, indolente, vingativo e conhece uma infinidade de plantas das quais sabe extrair venenos mortíferos. Nada mais.


Não temos a menor intenção de retocar essa imagem. Seria uma tarefa cansativa. De resto, é possível que um determinado índio (não o índio, entenda-se) seja ou faça tudo quanto a imagem sugere, exceto adorar o Sol, que isso é tolice das grossas...


Em todo caso, seria interessante lembrar de passagem o que acontece no Xingu, onde existe uma grande reserva da Funai (o Parque Indígena), habitada por mais de uma dezena de tribos não-aculturadas. Pois bem, ali, no Alto-Xingu, foi observado que certos traços como o hábito de furtar, a insatisfação permanente, a cobiça, a malquerença e outros mais, só existem em determinado grupo que mantém relações muito estreitas com civilizados. Porém, nada disso existe nas tribos xinguanas que — devido à posição geográfica que ocupam na reserva — têm apenas contatos ocasionais, e um tanto frouxos, com a "nossa gente"... Chocante, mas verdadeiro.


Acontece, às vezes, que a imagem distorcida que se tem do índio nasce da impressão desfavorável causada por alguns elementos aculturados. Em tais elementos, velhos defeitos e vícios de nossa civilização ficam à mostra, boiando cruamente na superfície, sem nenhum disfarce. Neste caso, o índio aculturado simplesmente "funciona" como o espelho no qual se refletem defeitos que são nossos, não dele, mas que em nós permanecem mais ou menos ocultos sob a capa dos condicionamentos e mecanismos próprios da civilização. Este problema é complexo, delicado como uma teia de aranha, e não muito conhecido. Por isso mesmo, convém saltar para outro.


Não é muito conhecida também a participação do índio na formação geográfica do país. Nas escolas, essa questão é examinada às carreiras, acidentalmente, como se não tivesse qualquer importância. No entanto, merecem destaque os nomes de donatários de Capitanias que nem chegaram a tomar posse, ou de governantes que nada fizeram, exceto receber os proventos inerentes ao cargo.


Todos os meninos e meninas do curso primário sabem, em conseqüência, que o bispo Sardinha foi devorado pelos índios em 1556. Ignoram, porém, a multidão de índios anônimos que formavam o corpo das entradas, monções e bandeiras, sem as quais não teria existido um país que, por coincidência, é o deles, isto é, dos referidos meninos e meninas ...


SÃO 140 TRIBOS, MAS TODAS REUNIDAS NÃO OCUPAM A METADE DO MARACANÃ

A rede de dormir, a mandioca, a erva-mate e o guaraná também vieram do índio, mas pouca gente está informada a respeito. E quem já ouviu falar da estranha relação que há entre o índio da Amazônia e a indústria automobilística? Entretanto, foi ele quem descobriu a forma de converter o látex da seringueira em borracha. Daí para a frente, é verdade, a coisa escapou das suas mãos e acabou sendo transformada em pneus...


O índio pode ser visto e estudado sob diferentes aspectos e cada uni desses aspectos oferece material suficiente para ocupar muitas e muitas páginas, e até mais do que isso.


O arco de madeira preta dos índios Kamayurá — tecnicamente perfeito — exigiria um longo capítulo; a agricultura dos Kayabi, índios que cultivam onze variedades de amendoim e um tipo de cará que chega a pesar 20 quilos, contém assunto para uma interessante monografia; a magnífica arte plumária dos índios Urubu-Kaapor do Maranhão já mereceu um livro inteiro. Aliás, comparados com os enfeites de pena dos Urubu-Kaapor, os vistosos adornos dos índios norte-americanos não passam de artefatos mais ou menos grosseiros. E as pinturas? As redes ? As leves canoas feitas de casca? E a cerâmica vermelha e negra dos Waurá?


Além de tudo isso, existe também a cultura imaterial, ou espiritual, de nosso índio: aquele mundo nebuloso, lunar, onírico, fora do tempo, em que se movem heróis — criadores e entidades mitológicas.


Um dia, Mavutsinin, herói criador, juntou alguns troncos de madeira, colocou-os de pé e os pintou de branco e preto... Mas, cansado da imobilidade dos troncos, soprou em cada um deles. Um sopro mágico. No mesmo instante, os troncos ganharam vida e se transformaram em homens e mulheres... Foi assim que surgiram os índios do Alto-Xingu.


Os cavalos vieram de longe, trazidos, quem sabe, pelos colonizadores. Certa vez, os Guaycuru de Mato Grosso encontraram uma grande manada de cavalos pastando tranqüilamente. Era noite de lua, e os Guaycuru ficaram maravilhados. Não conheciam cavalos. Para que serviriam aqueles animais tão bonitos? Ninguém sabia. Então, Gonoeno, personagem mítico, autor de notáveis façanhas, tomou a tinta escura do jenipapo e desenhou um homem a cavalo na face da Lua cheia... Os Guaycuru compreenderam, saltaram imediatamente sobre os animais e logo se transformaram numa poderosa "nação" de índios cavaleiros. Tão poderosa, aliás, que a Coroa portuguesa teve que firmar com eles um Tratado de Paz e Amizade, em 1791.


A etnologia brasileira é um campo extenso, florido, e não inteiramente explorado. Mas é de se recear que em breve esse campo deixe de existir. Como já vimos, restam poucos índios. Segundo os registros da Funai, temos ainda umas 140 tribos indígenas, aproximadamente; entretanto, todas elas reunidas não ocupariam a metade do estádio do Maracanã. Em número, correspondem a 0,001%, da população atual do pais. Não mais que isso.


Temos ouvido dizer que, no mundo de hoje — cada vez mais uniforme e nivelado — não há lugar para o índio, assim como não o há para o cigano, o polinésio, o esquimó, o lapão, o pigmeu etc. Por serem diferentes, essas pequenas etnias, minúsculos fragmentos da humanidade, devem sucumbir. São como pedrinhas de gelo que estão se dissolvendo ao calor do progresso. E, se o progresso for apenas um mito (alguém ainda duvida?), será necessário admitir que é um mito incômodo, caro e decididamente inferior aos da cultura de nossos indígenas.


Afinal, Gonoeno, Mavutsinin e outros não destruíam, não matavam e faziam suas mágicas de graça...


ÁLVARO VILLAS BÔAS

Álvaro Villas Bôas, 50 anos, paulista da capital, o mais moço dos quatro irmãos Villas Bôas, é chefe da Ajudância da Funai para o Estado de São Paulo, subordinada à 4.ª Delegacia de Curitiba, dirigindo três áreas indígenas — lcatu, 56 índios Kaingang; Vanuire, 164 Kaingang; e Araribá, 282 índios, entre Terena (a maioria) e Guarani. Funcionário da prefeitura de São Paulo por catorze anos, Álvaro só começou a lidar com índios em 1958, quando participou do Serviço de Unidades Sanitárias, chefiado pelo médico e sertanista Noel Nutels.


Chefiou o posto de Aragarças, GO, da Fundação Brasil-Central (hoje Sudeco, Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste) e em 1962 foi trabalhar no Parque Nacional do Xingu. Com a transformação do SPI em Funai, o parque do Xingu deixou de ser independente, e Álvaro foi incorporado à recém-criada fundação.


Autodidata em seus estudos de etnologia — "Leio tudo o que me cai nas mãos sobre isso" —, Álvaro, segundo o próprio Orlando, "é o melhor de nós todos nessas coisas teóricas".


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