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ROCK NAS ESTRELAS

Ficção



Estamos em 2967, o ano do rock nas estrelas

Preparem-se, formas viventes do espaço! Vai começar o concerto do maior conjunto da galáxia, o SLIME! Este vai ser o maior espetáculo do universo


Por J. POET


No lado de dentro da arena, guardas de rostos sombrios faziam as rondas com rifles-laser em punho. Acima, um helicóptero pairava prateado e mortal. As luzes esparramavam uma iridiscência estonteante sobre o campo minado, e as altas e negras grades dos arredores, dentro do perímetro de segurança, brotavam diante de mim, mais tenebrosas que as portas do inferno. Embora faltasse mais de uma hora para o início do concerto, a massa de adolescentes, que vinha se concentrando já há uma semana, aproximava-se mais e mais das grades. De vez em quando, um avidróide queimava-se nos cabos de alta voltagem instalados ao longo do cimo das grades, provocando uma chuva de centelhas dentro da escuridão espessa.


Abri caminho pela brutal multidão e parei antes de chegar ao primeiro posto de fiscalização, para verificar se meus documentos estavam em ordem. Enquanto minhas mãos mergulhavam na sacola a tiracolo, um guarda baixou uma das janelas e apontou um disparador para a minha barriga.


— Dez segundos para me mostrar o bilhete. Ou então caia fora!


— Tenho uma credencial de imprensa — respondi, remexendo na sacola.


— Todos dizem isso — tornou ele, falando num jeito pachorrento. — Tire-a devagarinho, se é que a tem.


Sorriu como um biônico molestador de crianças e continuou a apontar a arma contra a minha barriga com a mão direita. Com a esquerda, bolinava distraidamente o sexo. O sacana se deliciava mesmo. Tomara que na hora de gozar, pensei, o desgraçado não aperte o gatilho.


Tirei a carteira da sacola.


— j. poet, é o nome. Por que não confere com o computador?


Sem tirar os olhos de mim, dedilhou o nome do teclado. A mão que segurava o disparador não mexeu um centímetro. Senti uma coceira no estômago.


O computador deu um sinal e o guarda fez a leitura. Depois, pediu:


— Departamento de Informações.


Uma cesta de acrílico saltou da parede sob a janela. Apanhei a credencial, o brevê de piloto, a Identicart, alguns discos de crédito e coloquei tudo dentro da cesta. A parede zumbiu e silvou, e então a porta à esquerda se abriu.


De repente, o que era um aglomerado de jovens fãs do rock virou um monte de cinzas

Assim que entrei, surgiram dois guardas troncudos, um de cada lado. Cada um pegou um dos meus braços e me conduziram ao primeiro cômodo vazio. A porta se fechou atrás de mim. Sala pequena, chão, paredes e teto brancos.


Um dos guardas cruzou os braços sobre o peito maciço.


— Tire a roupa! — ordenou.


O outro guarda riu em silêncio.


Tirei as roupas e as entreguei ao segundo guarda, que as levou para análise. Fiquei sozinho com o primeiro. Os raios-Z caíram sobre mim.


Algumas pessoas desmaiam sob o efeito dos raios-Z, outras vomitam ou entram em convulsão. Não sei por que, mas fico maravilhado e sinto fascinação por eles. À medida que a pele ganhava transparência, via o sangue correndo veloz através das veias. O pequeno e intrincado mapa dos capilares pulsava com suavidade. Observava as bolas musculares branco-acinzentadas que pareciam se dissolver, e então podia ver os ossos. Flexionei os dedos das mãos e dos pés e acompanhei a dança dos dígitos. Via os balões avermelhados e flexíveis dos pulmões vibrarem e a bolsa amarelada da barriga se contrair. Os intestinos serpenteavam e se torciam, executando a lenta e triturante valsa da digestão sob a caixa toráxica. Os ossos e os tecidos internos desapareciam e tive a estranha e serena sensação de que não existia.


Eu sequer havia notado o guarda circulando ao meu redor, procurando se assegurar de que eu não trazia armas ou dispositivos destrutivos.


Depois que as luzes se normalizaram, abriu-se a porta e o segundo guarda se juntou a nós.



— As roupas dele estão limpas — disse. — A sacola também. — Jogou as coisas no chão e comecei a me vestir.


O primeiro deles arrancou um cartão de dentro do bolso do uniforme.


— Tudo certo, poet, acabou o exame. Eis o ingresso para chegar ao campo minado. Siga apenas a rota indicada para você neste cartão. A Arena Naves-telar do País das Maravilhas não se responsabiliza nem por seus membros nem por sua vida. Mexa logo esse rabo: o cartão irá se autodestruir dentro de dois minutos.


Segurou-me pelo braço e me atirou porta afora, menos delicado do que poderia ter sido, pensei. A porta fechou-se, sibilando às minhas costas.


As paredes da arena elevavam-se em rígido relevo sobre minha cabeça. Os helicópteros sustinham-se quase rente ao solo e a multidão de adolescentes lançava insultos contra eles. Dirigi-me para o campo minado.


Uma voz zuniu de sob as hélices:


— Afastem-se das grades. Vocês têm dez segundos. Depois, abriremos fogo.


Minha esperança era que eles levassem a sério o aviso, mas não tive tempo de olhar. Meu ingresso fora impresso em plástico alpanar, que se desintegra logo depois de um breve contato com o ozônio sintético da atmosfera. Assim, não havia o que fazer senão entrar no campo minado.


Notei qualquer coisa no outro lado do cartão e, enquanto continuava a correr, virei-o para verificar.


"FODA-ME ATÉ A MORTE"

o novo sucesso dos SLIME!


Grande jogada, pensei. Imagine quanta gente pisará nas minas enquanto estiver lendo isto?


O SLIME!, naturalmente, é o maior conjunto da galáxia (e do universo musical conhecido) e isso explica por que a segurança era tão rígida. Em geral, ninguém se importava se alguns adolescentes conseguissem ultrapassar as grades. Caso escapassem das minas ou dos helicópteros, o mesmo não ocorria ao chegarem ao segundo alambrado, totalmente eletrificado. Mas, nesta noite, literalmente, milhões deles tentarão pôr abaixo os portões, e se tal multidão alcançar o segundo alambrado será esmagada como se fosse espaguete. Os helicópteros não tostariam mais que no máximo um milhão, e as minas sequer os fariam diminuir o passo. Eles se lançariam, então, para dentro da arena, e ninguém poderia prever o que aconteceria. A Navestelar já estava superlotada, e a tensão de alguns milhões de corpos extras arquejando com o frenesi da loucura do rock final faria desabar as paredes sobre nossas cabeças.


Não vejo por que realizar concertos desta magnitude, mas não sou empresário. Ganho entrada gratuita e um cheque — se, e quando, os jornais tridi compram meus artigos. Claro que de vez em quando descolo algum extra, e só de mencionar na minha coluna algum conjunto de terceira categoria posso acumular loguinho uma boa grana. Mas é coisa pouca. O SLIME! tem seis músicos, e cada um deve ganhar mais ou menos oito milhões de nixons, sem contar com os lucros que virão com o disco holográfico a ser codificado esta noite. Ao todo, só pelo trabalho desta noite, cada um deverá embolsar 25 milhões líquidos. Só o organizador, cerca de 10 ou 15. Suponho que isto torna a coisa bastante vantajosa.


Acabo de dar os últimos passos para dentro da arena, após o campo minado e, logo depois de meu cartão explodir, ouço disparos atrás de mim. Entro na segunda cúpula de segurança, e dali posso observar a movimentação.


• • •


O que, até há pouco, fora um aglomerado de fás do rock, agora é um monte de cinzas. Um deles quase que conseguira ultrapassar a primeira grade. Nada resta dele, agora, a não ser um agregado de carne fumegante no chão e um sapato cujo cordão de lamê dourado se enganchou no arame farpado. Suponho que dentro ainda havia um pé, mas estava longe demais para ver. A porta da cúpula se fechou, escondendo a visão.


— Bilhete, por favor — pediram.


Pus o bilhete no orifício. O gás começou a encher a sala, fazendo um chiado. Respirei fundo e sorri. Havia um agente tranqüilizante no gás desta noite. Senti-me satisfeito e plácido.


A sala falou:


— Esta sala está registrando a dilatação dos seus olhos, a transpiração, a circulação sanguínea, as batidas do coração e a resistência elétrica de sua bioeletricidade. A recusa de responder qualquer de minhas perguntas ou ante alguma mentira será preso. Por ter violado o Artigo 2745, Parágrafo 305 do Código Penal, segundo o qual é proibido mentir a uma máquina de segurança. Entendido?


— Sim !


— Nome?


— j. poet.


— Profissão?


— Crítico de rock.


— Enquanto estiver na arena, pretende fazer qualquer coisa ilegal, ou que ponha em perigo sua vida ou a de seus semelhantes?


— Não!


Sabia que milhões de colegas fizeram tais afirmações no passado, apenas para participar dos atos estúpidos de uma histérica carnificina. Por que se preocupavam em fazer perguntas? Todas parecidas com algumas cláusulas das apólices de seguro.


Ao sair da sala, segui as instruções da máquina e me dirigi para o Posto de Drogas, daí fui pelo caminho à esquerda, rumo ao elevador que me levaria à bolha de imprensa. O lugar já estava lotado e a loucura começava a crescer. Uma loura espetacular, usando um minivestido de plástico transparente, deu uma olhada no crachá de imprensa e se esgueirou para o meu lado.


— Escuta, benzinho, se você me levar até os bastidores te faço um servicinho jóia — e, enquanto falava, escorregava a mão na direção do meu sexo.


— Não tenho autorização para chegar até os bastidores. Mas acho que, pelo mesmo preço, posso te colocar dentro da bolha de imprensa.


Seus olhos deixaram de brilhar. Recuou, como que insultada.


— Na bolha de imprensa? Com todos aqueles velhotes e esnobes, gente fina demais para se sentar entre nós, as pessoas comuns? Sai pra lá, cara!


Voltou-se sobre as plataformas e arrastou para longe de mim aquele rabo gostoso. Ahhh, tudo bem. A noite ainda é uma criança.


Registrei minha credencial e quase trombei com um baixinho moreno que estava na minha frente com os braços estendidos.


— Gil March — gritou ele, chacoalhando minha mão. — Abreviatura de Gilgamesh. Você é j. poet, não é? Ei, meu, curto tuas coisas. Aquele troço que você escreveu sobre os Hermafroditas estava do espaço! Já viu algum concerto do SLIME!? Jóia, jóia paca, falô? É uma ótima topar com um cara da tua idade ainda curtindo rock. A maioria dos caras com mais de trinta estão na de curtir a lataria eletrônica. Quer ficar numa boa? É comigo mesmo. Sem sacanagem de grana nem nada! Só na amizade ! Não esquente com a transa do preço. Podes crer, eu descolo.


March, é claro, era o empresário do SLIME! Seu falatório era um vômito gravado em baixa velocidade reproduzido de trás para a frente em megavelocidade. Fiz os sons de sim, não e ann-han, e depois deixei que me levasse por entre a multidão de adolescentes que tumultuava o guichê do Posto de Drogas. Continuou falando.


— Quer ficar por dentro? A permissividade do País das Maravilhas oferece de tudo. Tá a fim dum fuminho? Eles têm um Betacrucis Vermelho que vai fazer seu olho saltar e você pisar em cima. Que tal um pouco de haxixe Betelgeuse Azul? Quer estrelacender? Ácido urânico? Supercaína? Saliva de Cobra? Heroína? Você me parece um cara de classe. Eles têm aquela coisa legal que acabou de chegar de Alpha Centauri. Uma mistura de Mercedrina, fungo agárico de Ganimedes, autênticos cogumelos da Terra com uma pitadinha daquela essência verde de Andrômeda pra curtir a coisa toda. Vem numa pílula violeta. Tremenda experiência... tô falando sério, j. — você se importa de eu chamá-lo de j.? Qualquer coisa. Quaaalqueeercoooisa meeesmo, tô aí pra tornar teu trabalho mais transado.


Quer ficar por dentro?", perguntou Gil. "Que tal ácido urânico? Supercaina? Saliva de Cobra?"

— Obrigado, mas não costumo viajar enquanto trabalho. Tenho que ficar em cima dos caras, saca? De vez em quando, a lucidez ajuda no trabalho. Preciso arranjar um ingresso de adia-

mento, caso o concerto não aconteça.


— Claro, claro, você é que manda. Não grile se... — Meteu-se entre a multidão e, enfiando cotovelos e joelhos nos lugares certos, chegou ao balcão. Voltou se equilibrando com um punhado de pílulas e um copo de papel com fluido esverdeado cheirando a podre.


— Alucinações pra você! — gritou, engolindo as pílulas e matando a bebida numa golada. Bufou, enxugou a boca com as costas da mão, pegou no meu braço e retomou a tagarelice veloz enquanto me guiava até o elevador.


— Escute. Eu mesmo vou levá-lo até a bolha de imprensa. Te mostro tudo. Já tem o último disco? Bom. Tudo que quiser saber a respeito dos rapazes, pergunte pra mim. Tudo que quiser saber sobre o órgão, tá? O famoso órgão do ZzzYd. Quer dizer, o órgão com que ele se toca. Quer dizer, o órgão com que ele toca sua música. É isso aí ! Qualquer coisa. Já pegou o material de imprensa? Fotos? T-shirt? A gente tá com uma puta idéia — transar um vibrador francês com uma foto em relevo do conjunto. "Vá até o fim com SLIME!" Não acha uma boa?


• • •


A bolha de imprensa, de plástico transparente, se sustinha no teto do estádio a uma altura de 300 metros do palco. Havia uma fileira de telas tri-di em circuito-fechado circundando a sala na altura da cintura. Naquele momento, elas mostravam apenas as montanhas de equipamento musical, os homens apressados que prendiam fios e verificavam o som dos instrumentos. March fez sinal para que eu puxasse uma cadeira e sentou-se perto de mim. Acendeu um cigarro de maconha do tamanho de um Zepelim pequeno, soltou uma rodela de fumaça e mal começara a tagarelar de novo quando uma mulher de calças verdes se aproximou e sussurrou alguma coisa no seu ouvido. Ele fez que sim com a cabeça e parou um instante.


— Logo estou de volta — tenho um servicinho pra fazer. — Deu uma piscadela e seguiu a roupa verde através da bolha. Levantei-me para espreguiçar e dei de encontro com meu colega, Andy, um dos melhores câmeras da tri-di. Desde que me juntei a ele, minhas reportagens passaram a ser muito bem vendidas. Andy zanzava com suas lentes e microfones e sondava o lugar ao mesmo tempo, imaginando ângulos de câmera e coisas assim.


— Tenho uma idéia — disse. — Eu podia fazer uma tomada de você aqui na bolha, pegando-o em primeiro plano e, atrás dos seus ombros, no segundo plano, a audiência lá embaixo. Você faz um retrospecto do conjunto e fala da situação política relativamente ao órgão. Tem uma porção de gente por aí, nos mundos distantes, que ainda não ouviu falar do SLIME!


— Acho uma excelente idéia. Vamos começar já?


— Falou!


Instalei meu sorriso agradável e profissional, e comecei assim que Andy me fez sinal.


— Boa noite, formas viventes sensitivas de todas as partes do espaço! Este que lhes fala é j. poet, diretamente da fantástica Arena Navestelar do País das Maravilhas, agora em órbita em torno do planeta Lophus, no sistema Bellatrix, vizinho da constelação de Órion. Esta noite vamos fazer a cobertura de bastidores de um dos mais importantes concertos a ser realizado num mundo civilizado. O nome do conjunto é SLIME! Antes do concerto, porém, gostaria de lhes fazer uma síntese da gloriosa história dos "Super Seis". O SLIME! fez sua primeira grande aparição em Altair II, em Cyanus, nos Jardins Graham, conhecido por suas audiências hostis e penetras. Muitos conjuntos não sobreviveram à primeira apresentação nos jardins, mas o SLIME ! pressentiu que estava pronto para um batismo de fogo! A massa de adolescentes praticou barbaridades. As depredações ocorridas após o concerto deixaram o saldo de 739 mortos e milhares de feridos. O SLIME! foi um êxito absoluto!


"Os cinco anos seguintes testemunharam um maravilhoso número de sucessos do conjunto, entre os quais os compactos Orgia na Lama, Amor no Campo de Concentração, Assassinato em Massa, Mije em Mim, Terapia de Choque, e o mais vendido até a presente data Amar-te (É como Ser Morto). Os LPs Orgia com o SLIME!, Deformado, Quadroplegia, e Flores Marrons e Chuveiros Amarelos chegaram a centenas de planetas, atingindo a vendagem de 1 bilhão de unidades. Provavelmente se tornariam o maior conjunto de todos os tempos mesmo que não tivessem topado com ZzzYd.


"Certa noite, depois do triunfante retorno aos Jardins Graham, um estranho ser de pele azul infiltrou-se nos bastidores. Não era outro senão ZzzYd.


"ZzzYd veio de um sistema tão remoto que os seres de nossa galáxia ignoravam sua existência. Sua terra natal, que ele recusa revelar, parece ter se desenvolvido tanto que seus habitantes consideram nossa civilização comparável à dos insetos dotados de inteligência. Eles nos mantinham sob observação, segundo informa ZzzYd, mas acham que têm coisa melhor a fazer do que cuidar de um bando de moleques autodestrutivos e mimados.


"Segundo a maneira com que a descreve, a vida no mundo de origem de ZzzYd consiste em tocar música, jogar xadrez de 27 dimensões e investigar a natureza da realidade do universo. Seu povo é quase imortal, e desconhece — há já quase 36 séculos — a guerra, o dinheiro, a doença, o pessimismo, o sexo e a desgraça. Em outras palavras, um mundo chato demais. ZzzYd era um dos mais conhecidos compositores e músicos do seu planeta, mas sentia-se enfastiado e limitado, uma vez que não havia o dinheiro, a fama ou a busca do poder, num planeta em que se acreditava que ser, por si só, trazia fama suficiente. Foi assim que, certo dia, recolheu seus instrumentos e partiu.


"Pelos padrões do seu mundo natal, ZzzYd era um neurótico irrecuperável. Mas, pelos nossos, era bastante normal. Ele apenas queria estar onde as coisas acontecessem. Uma vez aqui, compreendeu, de imediato, que queria se juntar ao SLIME!


"A princípio, o conjunto ficou em dúvida. Disseram a ZzzYd que não estavam à procura de um organista, e, além disso — não que fossem preconceituosos —, simplesmente não entendiam como era possível que um ser sensitivo sem ouvidos fizesse música.


"De acordo com a biografia oficial do conjunto, ZzzYd limitou-se a sorrir e oferecer esta simples explicação: 'Embora seja verdade que não tenho ouvidos, de uma maneira bastante ampla também é verdade que meu corpo todo é uma membrana timpânica. Meu corpo é biologicamente mais complexo que o de vocês, e, em termos evolucionários, muito mais desenvolvido. Eu ouço e, numa grande proporção, vejo e farejo com toda a superfície da minha pele. O órgão que uso — e que foi projetado por mim — toca não só música, mas também emoção. Está dotado do que vocês poderiam chamar de cores estroboscópicas, que emitem sugestões emocionais que aparecem como faixas coloridas. Algo como um teclado com o qual controlo as vibrações empatéticas — um órgão neural com o qual envio ondas de emoção, combinadas com ilusões de sensação visual, sonora, olfativa e tátil. Uma escala que vai do amor e do orgasmo até o ódio, o medo e a morte. Se quiserem uma pequena demonstração...' ZzzYd preparou os instrumentos e executou um concerto que os levou numa viagem através de todo o espectro emocional da vida sensorial. Era como se tivessem sido empurrados estupidamente por um arco-íris ou como se uma maquinaria de plumas os virasse do avesso, girando num fuso de algodão doce e então sugados pelos lábios de uma mãe/amante/puta primai.


"Os concertos tomaram nova e amedrontadora direção. Agora, a audiência não apenas ouvia música — ela a vivia! Quando o SLIME! executava Servicinho de Bastidor, por exemplo, os rapazes molhavam as calças de gozo, as garotas se engasgavam e suas bocas espumavam. Quando executavam Terapia de Choque, toda a audiência se convulsionava em meio às poças de vômito, tentando arrancar de suas cabeças os eletrodos imaginários, esganiçando com espasmos de neurônios em frangalhos e uma pseudodor. A multidão se concentrava aos milhões, e os que saíram com vida consideraram o concerto o ponto mais alto de toda sua vida.


"A popularidade do conjunto aumentou duzentas mil vezes. Foi o primeiro conjunto a ter dez LPs como os dez mais vendidos ao mesmo tempo, e nos seis meses seguintes arrecadaram 36 bilhões de nixons apenas em concertos. A combinação do fantástico órgão de ZzzYd com o já legendário show do palco — que incluía o arremesso de granadas de fósforo nas primeiras fileiras de cadeiras —, juntamente com os conseqüentes atos de destruição e brutalidade da geração mais recente, tornou o SLIME! o maior acontecimento na história do show business.


"Em termos políticos, o fenômeno SLIME! não passou despercebido. Depois que os primeiros concertos deixaram patente o terrível poder do órgão neural de ZzzYd, os legisladores de centenas de planetas tentaram deter o SLIME! com leis que tornariam a posse e a utilização do instrumento ilegais. Houve petições ao Conselho Galático da Democracia Suprema, não apenas emitidas por planetas, mas também pelas Forças Armadas Espaciais Independentes. É de se imaginar o que faria o inimigo de posse do órgão se viesse a reproduzi-lo! Tal arma, orbitando um mundo habitado, seria capaz de enviar imagens de ódio, de terror e de assassinato que induziriam a um desastre generalizado de violência e suicídio.


"O Conselho Galático ainda está dividido em relação ao assunto. Os republicanos democráticos conservadores precisam de apenas dois votos para alcançar a maioria. Reivindicam a apreensão e a destruição do órgão. Os democratas republicanos liberais empenham-se em vetar o projeto, que em breve entrará novamente em votação.


"Enquanto o conselho argumenta que o órgão é uma arma, os advogados do SLIME! ressaltam que ZzzYd é o único ser suficientemente inteligente para tocá-lo. Não basta possuir o órgão. ZzzYd dispendeu 500 anos para aprender a manipulá-lo, e a maioria dos sensitivos ainda não chega a viver todo esse tempo. Quanto à possibilidade de sua duplicação, não há chance de ser bem-sucedida. Suponha que você dê um carro aéreo para uma tribo primitiva de homens-peixe, argumenta o advogado do conjunto. Eles conseguiriam pilotá-lo? Não! Eles sequer teriam o conhecimento ou a capacidade necessários para entender a máquina. Além do mais, ZzzYd adaptou uma armadilha ao órgão, de tal modo que qualquer tentativa de desmontá-lo causará uma gigantesca explosão, suficiente para devastar vinte sistemas estelares.


Certa noite, depois do concerto, um estranho ser de pele azul infiltrou-se nos bastidores

"A votação do Conselho, na tarde de hoje, resultou em empate, com uma abstenção, e acredita-se que este voto omitido deverá cair para o lado dos republicanos democráticos conservadores na sessão desta noite.


"Compreende-se, pois, que um ataque conjunto do Exército Galático, da Marinha de Guerra e dos Fuzileiros Navais já esteja arquitetado, com ordens para invadir o estádio e confiscar o órgão no exato instante da votação.


"Torna-se desnecessário dizer que esses fatos enriquecerão a noite de hoje, e que vocês não devem perdê-la. Permaneçam sintonizados."


Terminado o intervalo para o comercial, percebi que Gil March vinha em minha direção. Imediatamente agarrei-o pelo braço.


"Cá estamos novamente, formas viventes. Realmente estamos com sorte. O homem que tenho ao meu lado não é outro senão Gil March, o empresário do SLIME! Gil, você acredita que a decisão do Conselho poderá impedir o concerto desta noite?


"— Isso não tá com nada, j. Mesmo que cheguem a tal decisão claramente inconstitucional, não terão condições de colocá-la em prática!


"— Mas nós sabemos que as Forças Armadas Galáticas estão aptas para atacar tão logo se aprove o projeto.


"— Bem, eu lhes desejo sorte. O SLIME! preza bastante sua liberdade artística. Lutará por ela se for preciso. Além do mais, terão de enfrentar os 17 milhões de fãs presentes nesta noite. Não. Depois que o conjunto começar a tocar, nem mesmo um abalo cósmico poderá detê-los. Os rapazes do exército estão paranóicos. ZzzYd não quer machucar ninguém.


"— Mas suponha que ele queira? Que ZzzYd esteja mentindo?


"— Ele não pode mentir. Na sua língua não existe o verbo mentir. Ele é a criatura mais honesta que já se viu. Tudo que quer é dinheiro e mulheres, e nenhum inimigo poderá oferecer mais grana e transas que este conjunto.


"— Então não vê como esse concerto não se realize?


"— Não, j. Dentro de seis minutos exatos, o SLIME! pisará no palco. Nunca viu uma multidão tocada pelo órgão? Não? Então, vou te dizer, veja com seus próprios olhos. E também vocês, formas viventes que nos assistem, vocês quererão pegar a gente na próxima vez que descermos num planeta vizinho do seu sistema. Não se esqueçam: o nome do conjunto é SLIME !"


Dei sinal a Andy e ele desligou. March golpeou nossas costas.


— Tô me mandando, agora, mas estão convidados para a festinha na minha nave, mais tarde.


— Trabalho feito — disse Andy. — Vou descer pra ver os primeiros números. Vem também?


— Não. Vou sentar aqui e olhar.



A bolha de imprensa estava quase lotada. Encontrei um assento e concentrei meu plasma no espetáculo. Um movimento rápido à direita atraiu meus olhos, e tive tempo de ver um grupo de fãs atirar um sujeito balcão abaixo. Uma estridente ovação emergiu da multidão, sufocando qualquer grito que o corpo em queda pudesse emitir. O repórter que se sentara ao meu lado olhou para mim e piscou.


— A molecada tá pronta pra curtir. Meu nome é Henderson — ele disse, estendendo a pata coberta de pêlos esverdeados. Enquanto apertávamos as mãos, outro ruído em crescendo subiu, vindo do tablado de concerto.


Subitamente, uma onda de náusea me atingiu as tripas. Suei frio.


— É o ZzzYd tocando no órgão — explicou Henderson. — Sente?


Claro que sentia. Uma onda de fogo percorreu minha espinha, mas o rosto estava frio, como que enregelado. Então veio nova onda de náusea. Henderson ofegou, apertou o estômago e caiu no chão. Agarrei os braços da cadeira, as juntas dos dedos esbranquiçados.


De repente, a gigantesca tela de holograma se acendeu e o rosto tridimensional do mestre de cerimônias nos fitou de esguelha. Humanóide, estava precisando de uma boa barbeada e mostrava os dentes amarelos. Respirava com dificuldade, o suor escorrendo pela testa gordurosa.


— Estão preparados para receber o SLIME!? — guinchou ele.


Dezessete milhões de goelas se abriram para responder.


O mestre de cerimônias berrou:


— Muuuiiito beeemmm! Senhoras e Senhoooreeesss, vamos ouvir agora o maior conjunto do universo musical... o SLIME!


Meia dúzia de granadas de fósforo explodiram à beira do palco tão logo o SLIME! surgiu. A audiência gritou uma vez mais quando o conjunto perpetrou o primeiro número. Meus membros se repuxavam e uma ameaça inominável dominou meu corpo. Era como se me sufocassem com um cobertor embebido em clorofórmio. A multidão formava um único corpo tumultuoso alardeando aprovação. Reconheci a canção-tema do conjunto, Orgia na Lama. "Quando na Lua cheia meu corpo se contorce/ Sei que não é crime/ Dançar com as lesmas e os percevejos/ Numa orgia na lama..."


Percebi o rastro de uma fêmea. Eu a senti por todo o corpo e comecei a ondular em direção a ela

Sentia-me mal. Minha pele formigava. Suava frio, via globos oculares, pegajosos e em forma de antenas, brotando das cabeças dos repórteres. Engasguei-me com a língua inchada. Uma mulher caiu no chão da bolha de imprensa e começou a emitir sons guturais, esquisitos e repugnantes. Minhas roupas se decompunham e minha pele se salpicava de manchas úmidas, verdes e pardas. Meus braços se fundiam no corpo e um enorme peso nas costas me fez arquear. Larguei-me no chão e voltei a cabeça para ver meu envoltório espiralando em direção ao céu. A lua estava cheia e se punha contra um céu azul-gelado. Enquanto procurava enfocar um amontoado de folhas enlameadas, percebi o rastro de uma fêmea. Eu a senti por todo o corpo e comecei a ondular em direção a ela. Um grilo próximo vibrava uma elétrica canção de desejo, e a terra sob sua barriga escorregadia começou a pulsar num ritmo irresistível. Eu tinha de alcançar a fêmea.


O cérebro ficando entorpecido. Que som? Bzzz? Perigo, perigo! Giro o globo ocular. Grande inseto zumbidor com ferrão mortal pingando veneno. Agito a cabeça. Não! Chega! Ferrão rasgando a carne. Dor. Ardor violento e vivo. Não! Quem canta? Canta enquanto morro? Lágrimas de dor de lesma.


"Insetos depositam ovos no meu corpo/ A larva come meu corpo/ Bocas que sugam enquanto a vida se esvai/ Orgia... lama... morte... " Gritava. Sem som. Sem cordas vocais.


O alto riso zumbidor da vitória dos insetos me nauseava. Eu ainda estava na bolha de imprensa, deitado de costas numa escrivaninha, com o corpo encharcado de suor e as roupas rasgadas e imundas. Ao rastejar, vi os repórteres se erguendo do chão, um deles coberto de vômito. Uma fêmea antaresiana gemia e se esfregava freneticamente contra a porta de aço inoxidável. Henderson, debaixo de uma escrivaninha, masturbava-se, babando.


Fiquei de pé, mas não estava preparado para a visão que se apresentava aos meus olhos.


O auditório estava uma bagunça. Muitos sensitivos jogaram-se, caíram por acaso ou foram empurrados balcões abaixo. Pedaços de roupas engrinaldavam os tubos de luz suspensos. Alguns guardas da segurança cambaleavam estupidificados, disparando a esmo contra a multidão. Os fãs rasgaram os assentos e os arrancaram dos lugares. Corpos sem membros e membros sem corpos espalhados no solo. Em toda a parte lamentos, gemidos e gritos de dor e prazer saudavam os ouvidos. O cheiro de sangue e morte se infiltrava na bolha de imprensa. Os lagos do inferno seriam um ótimo local para piquenique, se comparado com o que vi na arena. E ainda estávamos na primeira canção!


Senti-me mal novamente quando o SLIME! dinamitou o último sucesso, Foda-me até a Morte. Uma confusão de imagens me dominou o cérebro, até que um solo de guitarra pustulento arrancou-me o tampo da cabeça.


Ao cair de joelhos, eu a vi. Era uma linda amazona de 2 metros de altura, completamente nua. Uma das mãos cobria o tufo de pêlos, a outra me procurava. Tentei fugir, mas eu envelhecera e estava exausto. Eu me sufocava com as dentaduras. Nas costas das mãos, manchas pardas, os dedos retorcidos com artrite e reumatismo. Tentei fugir novamente, mas fora surpreendido pela debilidade e pela rigidez do corpo. A fêmea lambia os lábios, e seu corpo magnífico me atraía como ímã. Um conjunto de rock tocou em algum recanto da memória da minha juventude: "Venha, benzinho, sou um velho aleijão/ Meu coração está fraco, não duro uma semana/ Venha para a cama. Ouviu o que disse/ Foda-me até a morte..."


Suas mãos entravam pelas pernas do pijama e eu estava morrendo. Meu coração bruxuleou e desapareceu, e caí de novo no chão assim que acabou a segunda canção. Os repórteres, em vários estados de nudez, estremeciam no soalho.


Alguém, atrás de mim, ligou o tri-di e pude ouvir as palavras do meu supervisor: "... e assim, apesar dos protestos da junta de advogados do SLIME !, a tropa de choque da polícia especial do conselho dirige-se neste momento para a Arena Navestelar do País das Maravilhas para confiscar o órgão de ZzzYd. E atenção ! Acabo de receber novas informações! A nave não-identificada a que nos referimos acaba de ser identificada como pertencente à organização terrorista Frente de Libertação das Bandeirantes. Neste exato instante leva-se a efeito uma batalha entre ela e as forças de segurança no lado de força da Arena do País das Maravilhas. É possível que tentem se adiantar às tropas do conselho e se apossar do órgão para utilizá-lo em favor da sua causa.


"Os adolescentes fora da arena se aproveitaram da situação para lançar uma ofensiva no principal alambrado eletrificado. Tudo indica que a nave terrorista descarregou armas pesadas em direção dos que continuam forçando a entrada, a fim de os auxiliar em seu assalto ao estádio. Acabo de receber...


Minha cabeça estava aturdida. Um vento veio urrando não sei de onde e uma nevasca cortante e pungente esfaqueou meu rosto. Endireitei-me e larguei os olhos sobre a arena. Meus ouvidos vibraram, mas não podia mais compreender as canções. Vindo do outro lado da arena, um clarão repentino, depois um tufo de fumaça, e então a porta se desintegrou. As hordas de amotinados começaram a inundar a arena, mas paravam a meio caminho sob o temporal de granizo que o órgão de ZzzYd fazia desabar enquanto o conjunto executava Bebê Cego pela Neveluz. Quando a primeira onda parou, a multidão da retaguarda a atropelou, para logo em seguida ela mesma se atropelar. Os que estavam longe do alcance do órgão, no lado de fora, trocavam fogo com a Guarda Real.


Quando faltava pouco para que minhas mãos se tornassem azuis e o gelo congelasse minhas pálpebras fechadas, ouviu-se nova explosão e do teto irrompeu uma chama alaranjada. Fui atirado contra o solo, atravessando toda a sala. Quando voltei a mim, pairavam nuvens de fumaça no estádio. Havia um grande rombo no teto, e as Bandeirantes, a Guarda Real e — pensei — a Marinha Intergalática despejavam-se através dele. Enquanto flutuavam como flocos de neve, trocavam fogo e combatiam corpo a corpo. As pistolas-laser e os disparadores crepitavam e desintegravam o ar, mas, o que era fantástico, o conjunto continuava a tocar.


Fiquei em pé e caminhei em direção ao elevador. A direita, vi a tela holográfica, que se pendurava por um só cabo, emitindo imagens intermitentes e faíscas que estalavam.


Cheguei afinal ao elevador, mas as portas estavam enguiçadas. Desesperançado, vi o plástico protetor da bolha de imprensa rachar-se estrepitosamente, como fios de uma teia de aranha.


O conjunto brandiu a Terapia de Choque, e, à medida que ZzzYd triturava as cordas assassinas do órgão neural, a bolha de imprensa continuava se desintegrando diante dos meus olhos, e os gritos de morte dolorosa subiam da arena. O cheiro de carne carbonizada, de sangue e de morte me dava ânsia de vômito. Gritei, esmurrei a porta, apertei os botões, mas a maldita porta do elevador não se fechava!


Ao cair de joelhos, eu a vi. Era uma linda amazona de 2 m de altura, completamente nua...

Vi quando o último fio que segurava a tela holográfica se rompeu, e então observei-a caindo em câmara lenta sobre a já dizimada audiência. Faíscas elétricas desenhavam arcos violentos sob o palco, e as Bandeirantes, a Marinha e alguns funcionários se misturavam, enquanto as várias facções se aproximavam de ZzzYd, que malhava no órgão, aparentemente abstraído do massacre à sua volta. O elevador continuava recusando a mover-se. Caí de joelhos e ouvi pés que marchavam. Lembrei-me das intermináveis fileiras nazistas da Velha Terra. Vêm em minha direção, para esmagar e torturar. A cadência da marcha sádica estrondava nos meus ouvidos. Lágrimas escorriam pelas bochechas cobertas de fuligem.


"Amor no Campo de Concentração, o que você quer que eu faça...?"


Um helicóptero atravessou o buraco do teto e começou a espargir gás CSDTD sobre a massa fervilhante. O salão se cobriu de milhões de moribundos e mortos. Sangue e excremento esparramados por toda parte. Rios de vísceras escorrendo pelos corredores. Finalmente, a bolha de imprensa se esfacelou como um ovo gigante e desabou sobre a multidão como um foguete.


As explosões prosseguiam, e então um trovão ensurdecedor fez o palco desaparecer. ZzzYd deve ter dito a verdade a respeito do órgão — uma massa informe e pustulenta foi tudo o que restou do palco.


À medida que a multidão tomava consciência e percebia que não estava em estado de alucinação, vieram o pânico e o terror. Os sobreviventes correram para as portas, e os lentos e desajeitados mais uma vez eram esmagados pela multidão que, em bandos gigantescos, lançava-se em direção à saída. O que sobrara da bolha de imprensa estava queimando em chamas azuladas. Olhei para o elevador e descobri que não havia nenhum quando desci os seis metros. Passando pelo buraco, caí no chão e cambaleei através das portas em busca do saguão. O oceano de seres tomados pelo pânico forçava passagem pela mesma porta em direção à qual a Guarda Local se movia em sentido contrário. Grudei-me na parede para não ser arrastado e pisoteado pela multidão, que se transformara em carrasco de si mesma.


O chão se inundava de sangue até os tornozelos. O crepitar dos lasers e as explosões de granadas continuavam vindo de dentro da arena. Os guardas, por fim, perceberam que o esforço era inútil e puseram-se de lado para permitir que a multidão paranóica e apavorada fugisse para a relativa segurança da noite.


Procurei alcançar as portas, mas a multidão se deslocava novamente e um jovem próximo de mim quase caiu. Segurei-o e ajudei-o a pôr-se de pé. Apontei a porta e gritei nos seus ouvidos. — Você pegou o caminho errado! A saída é aquela!


Sob os estrondos, ele mal me ouviu. E em meio aos berros e disparos, repeti a informação. Uma nuvem rosa de tranqüilgás circulou pela porta e a quantidade de pessoas começou a se reduzir. Eu, machucado e ensangüentado, a roupa em farrapos, com a queda do cabo do elevador, esperava estar com uma ou duas costelas quebradas. Em meio ao aglomerado, fiquei cara-a-cara com o rapaz, que olhava para mim com olhos de quem nada compreendia.


— Saída? — perguntou afinal. — Está louco? Este é o maior espetáculo que vi em toda a minha vida!


Safou-se de mim e meteu-se entre a multidão, resmungando qualquer coisa sobre um bis. Quando me voltei para a saída, uma explosão, vindo da retaguarda, quase me acertou os joelhos. Corri para dentro da noite.


ILUSTRAÇÃO SHUSEI NAGOAKA



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