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PLAYBOY VS. CENSURA

Reportagem


PLAYBOY, nem pensar!

Como viramos A REVISTA DO HOMEM

Fotos e documentos inéditos mostram como a PLAYBOY enfrentou a ditatura militar para que a revista mais gostosa do país chegasse às suas mãos


POR MANOEL RISÉRIO

"Dois peitos de fora e com bico! Vocês sabem que isto não passa!" A bronca do então todo-poderoso diretor da Divisão de Censura de Diversões Públicas, Rogério Nunes, não deixava margem para discussão. Era "não" e pronto: a foto não podia ser publicada. O Brasil vivia sob o regime militar instalado em 31 de março de 1964, que, especialmente entre os anos de 1969 e 1980, manteve a imprensa sob censura prévia. Isso significava que as publicações tinham de ter o conteúdo aprovado por um censor antes de ser impressas e distribuídas. A PLAYBOY não escapou. A começar pelo nome, proibido pelo ministro da Justiça Armando Falcão (1974-1979). Entendendo que o nome havia sido vetado, mas o conteúdo não, a PLAYBOY passou a se chamar A REVISTA DO HOMEM e chegou às bancas em agosto de 1975.

Muito antes da invenção do Photoshop, as fotos tinham de ser retocadas a mão para entender às determinações da censura. Acima, o mamilo da moça, presente na foto original, precisou desaparecer na revista impressa. Abaixo, as nádegas originais viraram uma só graças ao corte da imagem, que eliminou a parte de trás da bunda da garota

No entanto, por cinco anos seguidos, a Editora Abril se viu obrigada a submeter mensalmente textos, fotos e até cartuns aos censores de Brasília, que seguiam à risca um manual de conduta que restringia peitos e nádegas (apenas uma por página e de perfil) e vetava categoricamente bicos, mamilos e pelos pubianos. Tudo em defesa da segurança nacional contra um suposto plano de invasão comunista que planejaria solapar as instituições brasileiras por meio de revistas críticas. Sim, isso mesmo: para a ditadura, as mulheres peladas estavam a serviço de Moscou. Nem um vilão de 007 imaginaria trama mais delirante.


A edição de setembro de 1977, que foi devolvida "canetada" pelos censores, e o profético bilhete de Roberto Civita sugerindo a documentação da luta contra a censura

Neste mês, quando orgulhosamente completamos 35 anos, um minucioso trabalho de pesquisa reconstituiu, por meio de entrevistas, documentos e fotografias até agora inéditas, a batalha que se travou entre os profissionais da Abril e os censores para que a revista chegasse de forma ininterrupta às bancas. É essa história que você finalmente vai conhecer.


Na foto original, produzida pela PLAYBOY americana, Hugh Hefner aparece ao lado de urna coelhinha sem calcinha e com os pelos pubianos à mostra. A marca a caneta mostra como a foto deveria sair no Brasil
A REVISTA PODIA, O NOME NÃO

Responsável pelo lançamento da PLAYBOY no Brasil, o editor Roberto Civita fala sobre o nascimento da revista, a negociação com os censores e um mirabolante plano financiado pelos comunistas soviéticos para inundar o país com revistas pornográficas


Quando o senhor percebeu que era o momento de lançar a PLAYBOY no Brasil? Nos Estados Unidos, eu soube que a revista começava ase expandir pelo mundo. Falei com a direção da PLAYBOY, acertei tudo e procurei meu pai [Victor Civita]. Ele a conhecia e recomendou que devíamos escolher: ou pedir permissão ao cardeal ou ao ministro da Justiça. [Risos.]


Para adequar a foto aos padrões dos censores, os mamilos foram apagados e a imagem foi cortada bem acima dos pelos pubianos

E o que o senhor fez? Preferi ir até o ministro, pois naquela época falar com um cardeal sobre uma revista com mulher pelada, como se dizia, era impossível, e meu pai não queria encrenca. Fizemos um boneco lindo do primeiro número, com o nome PLAYBOY, e nos preparamos para falar como Armando Falcão. Criamos uma pauta na qual afirmávamos que a revista traria entrevistas e textos de grandes escritores. Explicamos ainda que não teria mulher pelada, mas garotas sensuais, bem comportadinhas. Era muito mais intelectual e sofisticada que qualquer revista que circulava no país. Tudo para que a PLAYBOY fosse aceita pelos generais moralistas. Ele disse que olharia e daria notícias em breve.


Vocês estavam otimistas de que conseguiriam? Sem dúvida, pois nós cuidamos de tudo para deixá-lo impressionado. Uma semana depois, ligou para mim um coronel afirmando, de forma curta e grossa, que o ministro tinha mandado dizer que eu não poderia fazer nenhuma revista com o nome PLAYBOY no Brasil, não importava o conteúdo. E desligou.


Outro exemplo de foto cortada autorizando apenas um seio à mostra na página. Num cochilo, o censor deixou passar o bico do peito

Assim, sem maiores explicações? Sim, tudo funcionava dessa maneira: rápido e claro, em tom de ordem. Não explicou por quê, mas tinha aberto uma brecha. A revista podia, o nome não. Assim, fizemos uma revista igualzinha àquela que havíamos deixado com o ministro, só que com outro nome: A REVISTA DO HOMEM. Mas a censura não nos deu trégua, colocando nossa publicação na vala comum do que se fazia de mais vulgar.


O senhor chegou a ser chamado em Brasília para ser repreendido? Certa vez um general me chamou: "Estamos preocupados. Soubemos por um colega do serviço de inteligência dos Estados Unidos que um navio da Dinamarca está se dirigindo para cá cheio de revistas pornográficas". Enquanto ele falava, eu pensava: "E o que eu tenho a ver com isso?" E ele prosseguiu: "O senhor sabe que isso faz parte de um plano comunista para solapar as instituições brasileiras, os alicerces da família brasileira?" Eu perguntei: "Mas por que a Dinamarca quer solapar as nossas instituições?"

Para conseguir publicar a revista durante a ditadura, a Editora Abril elaborou uma defesa enfática do conteúdo editorial junto a Rogério Nunes, diretor da Divisão de Censura Federal em Brasília. O texto foi escrito pelo então diretor-responsável da Abril, Edgard de Silvo Faria

Sim, já que a Dinamarca não era comunista... Pois é. Ele então explicou que o papel das revistas tinha sido fornecido pelos soviéticos e me disse: "Você percebe o que está acontecendo? A ameaça contra o casamento? Por isso achei melhor chamá-lo para contar essa história em confiança para que o senhor se preocupe com as implicações disso para as nossas instituições". Enfim, eu estava ali por causa da PLAYBOY, que ele considerava pornográfica. Eu então respondi: "Sim, general. Muito obrigado, general". E saí dizendo a mim mesmo: "Não é possível que esses caras acreditem nisso". Mas acreditavam.


O que não podia

Em setembro de 7977, a censura apertou o cerco em torno da REVISTA DO HOMEM/PLAYBOY. Além de comentar uma edição inteira, assinalando o que podia e o que não podia ser publicado, ainda enviou um longo documento à redação com a lista dos itens vetados a partir de então.


A tática do "boi de piranha"

O jogo de sedução e chantagem com o homem da tesoura


Discutir o conteúdo da REVISTA DO HOMEM com os censores não era tarefa agradável. No início da revista e até 1977, a árdua missão coube ao diretor Waldemar Souza. "Ele levava os tapas dos censores em Brasília, enquanto a gente fazia uma ginástica tremenda para que sempre saísse um pouquinho a mais de nudez a cada edição", recorda Mauro Ivan Pereira, na época diretor-geral do Núcleo de Revistas Masculinas da Abril.


Exemplar de setembro de 1977, todo etiquetado pela censura: "Nessas condições, nenhuma foto será liberada nas próximas edições"

O diretor da Divisão de Censura de Diversões Públicas era o advogado e jornalista Rogério Nunes. Ele exigia que um boneco modelo igual à revista que seria impressa fosse submetido à sua inspeção antes de ser enviado para a gráfica. "Nunes era imprevisível e não admitia ter a autoridade questionada", lembra o editor Carlos Costa.


O diretor-responsável da Editora Abril entre 1965 e 1992, Edgard de Silvio Faria, que, por causa da censura, vivia na ponte aérea São Paulo-Brasília, conta que Nunes pouco ligava para os textos. "Em seu papel de açougueiro, munido de uma régua e uma caneta, Nunes fazia cortes e rabiscos nas fotos até se dar por satisfeito e liberar um solitário peito para publicação. Os textos raramente mereciam sua atenção. "Tenho mais o que fazer do que ler essas baboseiras", costumava dizer. Eram as fotos que faziam a diferença", conta Faria.


As visitas ao censor, que se estenderiam por cinco anos, exigiram a elaboração de uma estratégia de ação. "Eu levava sempre um 'boi de piranha', fotos 'exageradas' de nus para que eles tivessem o que cortar. Assim conseguíamos aprovar as que queríamos", recorda Carlos Costa. "Era praxe levá-lo a restaurantes luxuosos. Tratava-se de um jogo de pressão e chantagem."


Nunes, que chefiou o órgão de censura entre 1972 e 1979, gostava de ser bajulado. "Se ele tivesse um colega presente, o protocolo exigia que o convidássemos para almoçar." Numa dessas ocasiões, o censor liberou tudo, inclusive os "bois de piranha" com nu frontal. "De volta a São Paulo, nós nos reunimos com Edgar de Silvio Faria. Apesar do sinal verde do Nunes, ele aconselhou a não publicar as fotos porque a revista certamente seria apreendida."

Trechos de comunicado da censura datado de 1977 e endereçado à HOMEM e às demais revistas masculinas da época, como "Status" e "Ele & Ela", especificando regras para as fotos

A infalível tática da camiseta molhada

Mostrar sem mostrar era a maneira de driblar a censura

O uso da camiseta molhada tornou-se uma marca registrada da edição brasileira e um eficiente recurso para driblar a censura. Isso no entanto não significava liberação do nu frontal, como se vê na foto original (à esquerda) e na publicada, devidamente enquadrada.

Driblar a censura exigia, além de paciência e almoços indigestos, muita criatividade. "Tentávamos avançar a cada edição. Aos poucos fomos derrubando barreiras e ajudamos a acabar com a censura ao sexo na ditadura", lembra Carlos Grassetti, diretor de arte da REVISTA DO HOMEM na época. Uma das mais bem-sucedidas táticas de dissimulação era a camiseta molhada, que se tornaria a marca registrada da revista. Aquela história: ao mesmo tempo que mostrava, não mostrava. E passava. O sucesso da estratégia foi tamanho que até mesmo fotógrafos e modelos da matriz americana passaram a produzir ensaios especialmente para a edição brasileira.


Numa época de escassos recursos tecnológicos, a outra saída era cobrir parcialmente as garotas com véus, roupas estrategicamente acomodadas e intervenções feitas com aerógrafo (caneta de jato de tinta), que esmaeciam mamilos e suprimiam os pelos atrevidos tão temidos pelos generais. Exploravam-se também a composição e a luz no momento da realização das fotos. "Trabalhávamos com uma linguagem visual imposta pela censura, e a criação fotográfica tinha de seguir essa determinação", explica Grassetti. O fotógrafo Luís Tripoli conta que seu desafio era acatara cartilha da censura sem que isso interferisse na produção dos ensaios sensuais. "Eu não chegava a utilizar apetrechos para esconder as partes 'proibidas' das mulheres. Como sabia o que podia e o que não podia, usava o movimento do próprio corpo da modelo para atingir o objetivo desejado." E funcionava.


Balanço feito pela redação da HOMEM em outubro de 1976 com o conteúdo censurado em 13 edições, incluindo artigos e cartuns

Dez anos de cortes

A censura de 1970 durou a 1980

Durante os dez anos de vigência do nefasto Decreto-Lei n.º 1077, de 1970, que instituiu a censura a revistas e livros considerados imorais, mais de 2 mil publicações sofreram algum tipo de restrição pelas mãos dos censores federais. Nem mesmo a edição americana da PLAYBOY escapou, tendo a venda proibida no país em 6 de fevereiro de 1970. A justificativa do governo militar, nas palavras do então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid (1969-1974), era que as "revistas de mulher pelada" estimulariam a "licenciosidade, insinuariam o amor livre e ameaçariam destruir os valores morais da sociedade brasileira". Na visão do ministro, elas obedeceriam a um mirabolante "plano subversivo comunista que colocaria em risco a segurança nacional".


Ao lado, a fotografia original. Acima, a imagem que foi publicada depois de passar pela censura: pelos eram "totalmente proibidos"

A censura vigorou até fevereiro de 1980, quando foi "suspenso o exame prévio das publicações que abordam temas referentes ao sexo, à moralidade pública, aos bons costumes ou apresentam fotografias de nus, eróticas ou não". Enfim, estava tudo liberado.


"Existia muita censura moral, mas aos poucos, nas discussões internas, fomos conseguindo mostrar que não havia motivo para preocupação com a PLAYBOY, uma vez que não se tratava de uma revista pornográfica. Sabíamos que era um processo sem volta, que a censura logo iria acabar", diz o delegado federal Manoel Marcílio Nogueira, que chefiou a censura em São Paulo entre 1974 e 1979. "Eu era subordinado ao ministro da Justiça e precisava cumprir ordens", defende-se. Aos 75 anos, Nogueira lembra que havia decisões contraditórias entre as delegacias do Rio, de São Paulo e de Brasília, mas que sua função era justamente ajudara acabar com a censura no país. Também jornalista e ator nas horas vagas, ele diz que até hoje é discriminado quando seu passado vem à tona.



Chega de censura: enfim, a nudez total

Pelos pubianos finalmente aparecem na revista


O documento oficial que decretou o fim da censura prévia, em 26 de fevereiro de 1980

Demorou, mas as coisas mudaram. Para melhor. A começar pelo nome. Em julho de 1978, durante o processo de abertura política promovida pelo presidente Ernesto Geisel, a REVISTA DO HOMEM finalmente pôde assumir-se como PLAYBOY. A censura prévia, no entanto, levaria mais um tempinho para cair. Isso só viria a ocorrer em 26 de fevereiro de 1980, numa determinação de José Vieira Madeira, sucessor do irascível Rogério Nunes na direção da Divisão de Censura de Diversões Públicas. Em maio daquele ano, a PLAYBOY publicou a histórica edição com um ensaio com 19 aeromoças completamente nuas. No mesmo mês sairia também o especial As Garotas de PLAYBOY, com fotos que haviam sido retidas pela censura. Na capa, um selo emblemático celebrava os novos tempos: "Nudez total!"


Com fim da censura prévia, três meses depois, a edição número 58, com a aeromoça na capa, e o especial "As Garotas de PLAYBOY" já traziam a esperada nudez total

Mas o fim da intervenção dos censores não trouxe tranquilidade. Entre 1981 e 1982, a PLAYBOY ainda seria alvo de apreensões. "Não era uma pressão centralizada, mas alguns juízes de menores mandavam recolher, ainda que a revista só fosse vendida a maiores de 18 anos. Eles simplesmente implicavam", lembra Thomaz Souto Corrêa, na época diretor do Núcleo de Publicações Masculinas e Femininas da Abril. Em maio de 1982, o editor-chefe Mario Escobar de Andrade chegaria a ser fichado criminalmente pela polícia sob a acusação de publicar pornografia.


A PLAYBOY também seria usada como pretexto para incêndios em bancas provocados por extremistas de direita, contrários à abertura política. Foi somente com o fim da ditadura militar, em 1985, que a revista pôde enfim dedicar-se com total liberdade a fazer aquilo a que sempre se propôs: proporcionar um imenso prazer ao homem.



FOTOS GUSTAVO ARRAIS DESIGN THAÍS DOS ANJOS

ILUSTRAÇÃO TATO ARAÚJO



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