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PORNOGRAFIA DE COVARDE

Reportagem


Revenge porn

Projetos de lei, o Marco Civil da Internet e, principalmente, ONGs têm ajudado a abrandar o inferno de ter imagens íntimas viralizadas sem consentimento – ou ao menos a trazer o assunto à tona


POR MIRELA MAZZOLA


Aos 14 anos, a paraense Janalice chega para mais um dia de aula em Belém. Nota que os colegas assistem a um vídeo seu. Nenhum problema, em tempos de internet – e se a mídia tivesse sido postada por ela. No entanto, o conteúdo e o transmissor da mensagem são outros: nas imagens, ela aparece fazendo sexo com o namorado, responsável por espalhar o vídeo para o resto da escola.


A partir daí, o drama escoa como sangria desatada: achincalhe dos colegas, falta de acolhimento da direção e em casa (a garota é expulsa e vai morar com uma tia) e o culminante sequestro para ser escrava sexual na Guiana Francesa. Apesar das consequências superlativas, a história soa verossímil. Mas é ficção. A menina Janalice protagoniza o romance noir Pssica (2015, Boitempo Editorial), do jornalista paraense Edyr Augusto, eleito na França o melhor romance estrangeiro de 2015 pelo Prêmio Camaleón. A história gira em torno do tráfico de mulheres e dos piratas da Amazônia, mas tem como ponto de partida um caso de pornografia de vingança (revenge porn, em inglês), a divulgação de material íntimo sem o consentimento do retratado. Em geral, retratada. De acordo com a ONG SaferNet Brasil, referência no combate à violação dos direitos humanos na internet, 75% das vítimas são mulheres. “Escolhi o revenge porn para desencadear a história pois é um motivo real para deixar uma jovem totalmente vulnerável e tirá-la da segurança de casa”, conta o escritor.


DE ACORDO COM A ONG SAFERNET BRASIL, REFERÊNCIA NO COMBATE À VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NA INTERNET, 75% DAS VÍTIMAS SÃO MULHERES

De fato, a vulnerabilidade trazida pela exposição é uma das consequências mais devastadoras de ter imagens íntimas vazadas. Em muitas esferas – psicológica, profissional e social –, todo o apoio parece não ser suficiente, já que a lei (ou a ausência dela), o machismo e a própria velocidade da internet acabam contendo pequenos avanços para que a vítima possa se reerguer.


Um dos primeiros casos a levantar a questão da pornografia de vingança em nível nacional foi o de Francielly Santos, que ficou conhecida como Fran, de Goiânia. Em 2013, um vídeo íntimo dela foi divulgado pelo parceiro, compartilhado milhares de vezes e chegou a se tornar meme. Na época com 19 anos, ela deixou o emprego e a faculdade e teve que mudar a aparência. “A vida dela virou um inferno. Era gente de outras turmas entrando na sala de aula, tirando selfie sem que ela deixasse e até abrindo carrinho de cachorro-quente com seu nome”, conta a advogada Darlene Liberato, que chegou a acompanhar Francielly na faculdade até que ela desistisse do curso de design. Depois que a poeira baixou, a jovem tentou trabalhar em um consultório médico e em uma loja de sapatos, mas entrava em pânico ao imaginar que havia sido reconhecida.


A LEI CAMINHA


Embora ainda não haja uma lei específica para punir o vazamento de imagens íntimas, a vítima de revenge porn tem suporte legal: conforme as denúncias ficaram mais frequentes, principalmente na última década, o Judiciário passou a acolhê-las sob o crime de difamação, o artigo 139 do Código Penal, com pena de detenção (ou seja, sem regime fechado) de três meses a um ano e multa. Se a vítima for menor de 18 anos, há um crime mais específico, o artigo 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que trata da exposição de imagens pornográficas envolvendo menores. A pena é de quatro a oito anos de reclusão e multa. No primeiro caso, aplicável a vítimas maiores de idade, a sensação de impunidade acaba levando muitas mulheres a desistir de levar a denúncia adiante. “O ritmo do Judiciário e o da internet são desproporcionais. Antes de fazer a denúncia, a mulher passa por um julgamento interior, alimentado pela nossa cultura, depois precisa se abrir para a família e juntar as provas. Esse processo é doloroso e, enquanto isso, suas imagens estão sendo compartilhadas”, diz Gisele Truzzi, advogada especialista em direito digital. Ao final, mesmo que seja declarado culpado, o réu não será preso – a não ser que haja vínculo afetivo. Nesse caso, o crime pode se enquadrar na Lei Maria da Penha. O acusado de divulgar as imagens de Fran, por exemplo, fez um acordo com o Ministério Público do Estado de Goiás para prestar serviços comunitários durante cinco meses. O processo acabou sendo arquivado por conflito de competência e ele não cumpriu nem essa pena. “Depois disso, a Fran diz que não quer mais lidar com a Justiça. Hoje ela vive encarcerada em casa e ele, como se nada tivesse acontecido”, conta Darlene.


Já existe uma movimentação para tipificar a pornografia de vingança como crime. Uma delas é o PL 6630/2013, do senador Romário Faria (PSB-RJ), que prevê pena de até três anos de detenção e a indenização da vítima com quaisquer despesas decorrentes do trauma, como mudança de endereço e gastos com psicólogo. A pena aumenta em um ano e meio se a vítima for menor de 18 anos, deficiente física ou mantiver um relacionamento afetivo com o acusado. Para Christiano Jorge Santos, professor doutor e chefe do Departamento de Direito Penal da Faculdade de Direito da PUC-SP, a lei deveria conter a obrigatoriedade de notificação da vítima, para que ela pudesse levar à audiência os comprovantes das despesas, já que o juiz precisará deles para decidir o valor da indenização e o réu poderá contestá-los. Ademais, por ser mais recente, a lei se sobreporia ao ECA, que prevê pena mais dura. “Entretanto, sou a favor de um projeto que criminalize esse comportamento. O dano psicológico que recai sobre a mulher é enorme”, afirma Santos. O PL 5555/2013, de autoria do deputado federal João Arruda (PMDB-PR), propõe uma alteração na Lei Maria da Penha para criar mecanismos de defesa da mulher vítima de condutas praticadas na internet. O projeto foi apensado ao de Romário, ou seja, como as propostas são semelhantes, a tramitação acontece em conjunto. Hoje, elas estão na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e aguardam votação. Por e-mail, Romário justifica a espera. “Não há previsão para que o projeto vá a plenário, pois o parlamento brasileiro não consegue acompanhar as mudanças sociais.”

Consultora jurídica da ONG Think Olga, dedicada ao empoderamento feminino, Gisele Truzzi toca em outro ponto a se pensar. Ela faz ressalvas quanto ao uso do termo “pornografia de vingança” e ao agravamento da pena quando há vínculo afetivo, já que dão a entender que os efeitos para a vítima podem ser maiores ou menores, dependendo da motivação do vazamento. “Nem sempre as imagens são compartilhadas por retaliação, e a vida da vítima pode ser destruída independentemente do relacionamento que ela mantinha”, defende. Por isso, para Gisele, a expressão – e o delito – deveriam ser “compartilhamento não autorizado de conteúdo íntimo”. “Falar em vingança ou rompimento descaracteriza o crime. Nada justifica esse comportamento”, completa. Darlene Liberato, a advogada de Fran, por exemplo, afirma que não houve motivo para que o vídeo da cliente fosse divulgado. “O empresário com quem ela tinha relações quis se exibir para um amigo, que enviou as imagens para mais 50 pessoas, até que a história tomou uma proporção assustadora.”


Em tempo: algumas atitudes facilitam a ação da Justiça, tanto para processar os culpados quanto para agir junto a sites e buscadores para a remoção das imagens. Não apagar o conteúdo, tirar o máximo possível de prints (inclusive se o conteúdo for recebido por amigos, por exemplo) e registrar um boletim de ocorrência são os primeiros passos. Procurar um cartório com o conteúdo em mãos (ainda que em CD ou pen drive) e registrar uma ata notarial também serve como prova do processo.


O GÊNERO PESA


Em Manda_nudes.jpg, reportagem sobre exibicionismo na internet publicada na edição de agosto/setembro da PLAYBOY, a sexóloga e terapeuta Carla Cecarello foi taxativa quanto à diferença de tratamento entre homens e mulheres no ambiente digital (e fora dele) se houver a divulgação de imagens. “A corda sempre estoura do lado delas”, disse. De acordo com a SaferNet Brasil, o compartilhamento não autorizado de nudes é responsável pelo maior número de denúncias recebidas pela ONG. Em nove anos, foram 836 casos – para se ter uma ideia, em 2007 foram cinco ocorrências, contra 322 em 2015. Em 11 anos atuando em direito digital, Gisele Truzzi se deparou com apenas dois casos em que um homem foi exposto. “Quando é assim, as consequências tendem a ser vexatórias no círculo social da vítima ou se ela tiver um emprego conservador, por exemplo. Por isso, eles superam com mais facilidade. No caso da mulher, a pressão entre desconhecidos é muito maior.”


Historicamente, as mulheres passam por mais julgamentos sociais e religiosos, principalmente no que diz respeito à sexualidade – qualquer expressão nesse âmbito, mesmo pós- -revolução sexual e feminismo, ainda soa negativa. “Isso acaba sendo internalizado na mulher, que primeiro faz um autojulgamento e até se culpa por ter se deixado filmar”, diz Gisele Truzzi. Na outra ponta, um Judiciário machista, feito por e para homens, é agravante. “Houve um caso em que os desembargadores entenderam que se a garota se deixou filmar, assumiu o risco de ter imagens vazadas. É compreensível muitas desistirem de denunciar”, completa. Para o senador Romário Faria, a ampliação do debate tem contribuído para que as pessoas revejam sua opinião. “Inclusive entre as mulheres, que muitas vezes acabam reproduzindo um discurso machista.”


DAVI E GOLIAS


Catalisadora de causas do nosso tempo, a internet é mais que um mero rastilho de pólvora, que tem começo e fim delineados. A partir do momento em que uma imagem ou vídeo é vazado, fica a cada minuto mais difícil descobrir sua origem e quantificar o número de destinatários que vai receber o material. De acordo com a SaferNet Brasil, WhatsApp e Facebook são os meios mais usados para vazar imagens íntimas, somando 42% das denúncias. Ao primeiro disparo, o interesse do público se retroalimenta: a partir do momento em que o conteúdo é indexado nos buscadores, como o Google, à medida que ele é procurado (muitas vezes, o nome verdadeiro da vítima e suas redes sociais são divulgados pelo agressor), fica mais relevante entre os resultados.


WHATSAPP E FACEBOOK SÃO OS MEIOS MAIS USADOS PARA VAZAR IMAGENS ÍNTIMAS, SOMANDO 42% DAS DENÚNCIAS

Com o Marco Civil da Internet, sancionado em 2014 e que regulamenta o uso da rede no país, parte da responsabilidade com o vazamento de nudes passou a recair sobre sites e buscadores, que devem apagar conteúdo não autorizado – ou desindexar o termo de busca – de nudez ou sexo. Apesar de a lei não especificar o prazo da retirada, não é preciso ordem judicial para que isso seja feito. Basta que a vítima preencha um formulário (nem sempre fácil de ser encontrado nos sites) com a URL que contém as imagens. Desde julho de 2015, o Google disponibiliza o documento para sua ferramenta de busca, Google Play, Google Plus, Blogger e YouTube. Por meio da assessoria de imprensa, a empresa se diz ciente da gravidade do problema, mas não especificou em quanto tempo os pedidos são atendidos. Anteriores à medida, as imagens de Francielly Santos foram removidas cerca de quatro meses depois, com a intervenção de sua advogada. Vale lembrar que não relacionar um termo de busca a determinado conteúdo ou pedir sua retirada de um site não garante que ele desapareça. “São vitórias pontuais, mas, depois que a imagem viraliza, fica quase impossível controlar o estrago a tempo”, diz Christiano Jorge Santos, chefe do Departamento de Direito Penal da PUC-SP.


Diante dessa guerra, atacar a raiz do problema – o machismo e o ímpeto de compartilhar mesmo sem ser o autor – pode surtir efeitos positivos. Afinal, quando não há interesse, não há viralização. A Secretaria da Mulher da Prefeitura de Curitiba, por exemplo, promoveu no ano passado a campanha “Mulheres Incompartilháveis” nas redes sociais. Sob o mote “Se não é pra você, é melhor nem ver”, jogava luz sobre quem, ao receber esse tipo de conteúdo, sai por aí compartilhando. “Algumas pessoas acham que se o vídeo chegou até elas é porque é de domínio público, e não é”, disse na época do lançamento o diretor de criação da campanha, Felippe Motta. No Piauí, diante do aumento de casos, a Secretaria de Segurança do Estado criou o aplicativo Vazow (por enquanto, disponível só para Android), com o passo a passo sobre como proceder em caso de vazamento indesejado de imagens. Em 24 horas, foram 1.200 downloads. “A primeira coisa que a vítima quer é recuperar a intimidade. Para isso, é preciso começar a barrar a difusão do conteúdo”, diz Alessandro Barreto, um dos delegados que idealizaram o Vazow.


Como não custa lembrar que fazer e mandar nudes não é (e nem deve ser) crime, o papel de quem recebeu é bem claro. Na dúvida se o material é autorizado? Não abra, muito menos compartilhe. Pensando em enviar pra geral um vídeo feito só para você? Há boas chances de você ser um otário.


ILUSTRAÇÕES LOVATTO


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