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ALINA FERNÁNDEZ

Perfil


A filha do homem

Ex-modelo cubana exilada nos Estados Unidos, ela é hoje inimiga do homem que nunca pôde chamar de pai — Fidel Castro


Por HUMBERTO WERNECK


As sobrancelhas são do pai, não há dúvida. Talvez os olhos, quem sabe o desenho do rosto. Certamente as lâminas de sua argumentação afiada, carregadas de inteligência e ironia, transparentes em cada linha dos artigos que vem publicando no jornal El Nuevo Herald, de Miami, ou nos pronunciamentos que faz, mundo afora, uns e outros para denunciar as mazelas do regime instalado no Palacio de la Revolución, em Havana, Cuba, há intermináveis 34 anos. Mas ficam por aí as semelhanças, físicas ou não, entre o destinatário dessas estocadas, Fidel Mejandro Castro Ruz, 68 anos, e sua filha, única entre sete varões, a ex-modelo Alina Fernández Revuelta, 39 recém-completados, fruto de uma breve porém caliente relação extraconjugal que ele viveu com uma jovem, bela e rica mulher casada de Havana, Natalia "Naty" Revuelta, quatro anos antes de subir a Sierra Maestra.


Ironia: Alina saiu da ilha socialista para cair em Columbus, o lugar onde foi inventada a Coca-Cola

As dessemelhanças entre os dois são tão abismais que por conta delas desde dezembro de 1993 a filha do todo-poderoso ditador de Cuba vive exilada, na cidade de Columbus, Estado da Geórgia, no sul dos Estados Unidos, a poucos metros de distância da divisa com o Alabama. Ironia das ironias, no berço mesmo da Coca-Cola, o ícone por excelência do capitalismo, a crer no que sustentam orgulhosamente os 275.000 habitantes da cidade: embora a história oficial da bebida date o seu nascimento em Atlanta, a capital da Geórgia, a 8 de maio de 1886, foi bem antes, em Columbus, nos anos em que lá viveu, que o dr. John Styth Pemberton inventou e comercializou em sua botica o "French Wine of Coca", "tônico ideal para os nervos e estimulante", beberagem em cuja fórmula se basearia a Coca-Cola.


"País grande demais para ter uma alma"


Pouca diferença faz para Mina Fernández Revuelta, que não bebe Coca-Cola e que tem, com Columbus, relações puramente acidentais. Um ano e meio atrás ela vivia em Havana e, embora sonhasse sair do país, não lhe passava pela cabeça instalar-se nos Estados Unidos, o destino óbvio dos que deixam Cuba, e menos ainda numa cidade de porte médio do interior americano. De repente lá estava ela, a filha rebelde de Fidel Castro, chegando a Columbus, cercada de câmeras e microfones, dando entrevistas num inglês vacilante, para ficar um tempo que vai se esticando. Poucos dias depois a ela se juntava a filha, Alina-María Salgado Fernández, "Mumin" (apelido tirado de uma história infantil escandinava), hoje com 17 anos.


Foi tudo tão rápido, e aconteceu há tão pouco tempo, que Alina ainda não se adaptou inteiramente à vida nova. Atrapalhou-se toda até ganhar intimidade, por exemplo, com o cartão de crédito e o talão de cheques, trivialidades capitalistas absolutamente inéditas para os cubanos da ilha. Não se acostumou ainda com os filmes na TV, invariavelmente dublados, nem com as obsessões nacionais americanas do momento. Antes de mais nada, o julgamento do ex-craque de futebol americano O.J. Simpson, acusado de matar a ex-mulher e um suposto amante dela. Ou a guerra santa contra o cigarro (Mina fuma pouco, e geralmente só à noite, quando está escrevendo, hora em que se permite também uma dose de Campari). "Não acho que vá me adaptar nunca", acha ela, sem prejuízo da gratidão que tem pelo povo que a acolheu. "Este é um país grande demais para ter uma alma", comenta, "precisa de várias". Não parece muito saudosa das coisas de Cuba, a não ser, talvez, el casino, os sensualíssimos bailes da ilha, pois, como Mumin, adora dançar. No ano passado, em Washington, gastou seis horas procurando uma pista onde sacudir os quadris — e não achou. "Não é como em Cuba", compara por sua vez Mumin, embora não fique se queixando dos contatos algo formais que tem com os colegas na high school e no Teen Advisers, grupo de estudos bíblicos que freqüenta às terças-feiras. A neta de Fidel Castro é católica — converteu-se ao 15 anos e se fez batizar; a mãe não tem religião.


Por enquanto Mina não se animou a retomar velhos hábitos como a malhação — inscreveu-se numa academia mas desgostou-se instantaneamente com o furor aeróbico das colegas, cada qual mais saltitante com seu walkman. "Gosto de lugar em que haja também homens", reivindica Mina, quatro casamentos, no momento solteira. Também não retomou o jogging, em parte porque nem sempre há calçadas nas ruas de Columbus, típica cidade do Sul americano, espraiada e coalhada de casinhas de madeira — a prioridade é do carro. "Parece que esta cidade foi desenhada por Henry Ford", observa.


"Ela poderia ter sido uma princesa"


Com a vida sedentária que leva, Mina ganhou peso — ela que, alguns anos atrás, exibia magreza de modelo, a profissão que exerceu até os 33, e que chegou a ser anoréxica. Para quem mal alcança 1,65 metro, está, de fato, precisando desembarcar alguns quilos. Pouco anda até de carro, pois ainda não conseguiu tirar carteira de motorista. É Mumin quem dirige o Pontiac Grand Am azul, 1991, da família. Presente da amiga Elena, Elena Díaz-Versón Amos, 68 anos, senhora cubana há muito estabelecida nos Estados Unidos, viúva do magnata americano John B. Amos e que se notabilizou, entre outros gestos generosos, por jogar uma bóia para compatriotas pouco à vontade na ilha — entre eles a filha do próprio Fidel Castro. "Tenho admiração por Mina", exalta-se dona Elena. "Ela poderia ter vivido como uma princesa — e não quis."


É possível que sim, caso o relacionamento com o pai não tivesse sido, desde o início, tão insatisfatório. Nunca o chamou de pai, ele foi sempre "Fidel". Criança, lembra-se dele como "um homem noturno" que fazia visitas a ela e à mãe, Naty Revuelta, bela e jovem senhora de olhos verdes e cabelos louros [veja quadro "Uma socialite socialista "]. Depois foi se tornando ausente, passou a visitá-la menos e em outras horas do dia. Mais adiante era ela quem ia vê-lo no Palacio de la Revolución — até que, aos 26, 27 anos, rompeu definitivamente com ele, num episódio sobre o qual não fala de jeito algum para não tirar o impacto do livro de memórias que está escrevendo. "Digamos apenas que o rompimento se deveu ao interesse sujo de uma pequena pessoa", concede, enigmática. Nunca mais se falaram. Mumin também não voltou a trocar palavra com o avô.


Fidelito, ou melhor, José Raúl Fernández


Houve um momento em que ele ofereceu à filha o sobrenome ilustre, em seguida à promulgação de uma lei sobre a família. Mina, que andava pelos 14, 15 anos, tampouco se entusiasmou: já tinha suficientes problemas sem carregar esse Castro, imagina com ele. "Os filhos dos dirigentes da revolução", ela explica, "sempre sofreram um rechazo tremendo por parte da população". Pequenos príncipes (ela não), andavam para baixo e para cima de Alfa Romeo com motorista. Tristes príncipes, porém: por motivo de segurança, durante anos "Fidelito", o primogênito do Comandante e o único de seus oito filhos a aparecer publicamente como tal, teve que se chamar José Raúl Fernández [veja quadro "A prole do patriarca"]. No caso de Mina, ela afirma, toda a mordomia teria se resumido ao atendimento em "Ia clinica", hospital exclusivo para dirigentes e suas famílias.


Ao contrário, teve problemas, porque um filho de dirigente sempre atrai incômodas atenções; dar emprego a um deles, por exemplo, significa ter redobrado esquema de segurança no local de trabalho, e não há quem goste de espiões. Esta foi uma das razões, inclusive, para Mina ter tido tão ralos contatos com seus sete irmãos — a ponto de por fim evitá-los: não queria cair na vigilância em que eles viviam, nem trazer-lhes mais problemas com seu comportamento pouco ortodoxo. Nem sempre lhe foi fácil conseguir emprego, e quando deixou .o trabalho de modelo, num estabelecimento chamado La Maison, em 1989, resolveu não ter mais nenhum. Passou, conta ela, a viver de suas pequenas habilidades, forrando sapatos ou fazendo anéis. "Qualquer coisa que se vendesse", lembra, "sobretudo aos estrangeiros, que têm dólares." No último ano em Cuba, conheceu um jovem clínico-geral, Uno Tomasén, que desenvolveu técnicas de curar com as mãos e, segundo diz, é capaz de fazer um diagnóstico apenas olhando o paciente. Alina, que o chama "el maestro", começou a tomar aulas com ele. Certa de que "a saúde é o primeiro direito do ser humano", seu grande sonho, hoje, é chegar a ter uma clínica onde "el maestro" possa seguir curando e ensinando a curar.


Uma socialite socialista


Naty ajuda Alina a soprar as velas de quarto aniversário, em março de 1960

Fidel Castro talvez não tivesse tido sucesso, supõe seu biógrafo Tad Szulc, o grande escritor e jornalista americano, sem a ajuda de "um extraordinário contingente de mulheres bonitas e


/ou altamente inteligentes que, na verdade, dedicaram suas vidas a ele e a sua causa". Natalia "Naty" Revuelta, a mãe de Alina, acumulava funções: bonita e altamente inteligente. E rica, ainda por cima, além de culta, educada nos Estados Unidos e na França. Loura, olhos verdes, cintilava na sociedade havanesa também por suas idéias avançadas. Casada com o cardiologista Orlando Fernández, que lhe deu uma filho — Natalie, sete anos mais velha que Alina e hoje exilada nos Estados Unidos —, levava uma vida irretocavelmente burguesa quando, em 1952, sem conhecê-lo, se encantou por aquele jovem advogado libertário, quase da sua idade (oito meses mais novo). "Ela caiu no embrujo de Fidel", confirma Mina. Passou a conspirar contra o ditador Fulgencio Batista, que a 10 de março afastara do poder o presidente Carlos Prio Socarrás. No dia do golpe Naty deu cópias da chave de um luxuoso apartamento do marido a militantes de oposição, para que se escondessem, e pediu que uma delas fosse entregue a Fidel. Mas a chave só chegou às mãos do destinatário muitos meses depois, a 27 de novembro, quando um amigo os apresentou. "Um romance nasceu naquela mesma noite", registra Tad Szulc.


Sempre casada com o dr. Fernández, Naty participou dos preparativos para o malogrado assalto ao quartel de Moncada, em Santiago de Cuba, a 26 de julho de 1953, sob o comando de Fidel. Não se limitou a dar 6 000 pesos, um bom dinheiro, para a caixinha revolucionária; cuidou também da datilografia do manifesto difundido na ocasião, além de providenciar a trilha sonora da vitória que não houve: o hino nacional, hinos da guerra da independência cubana, a Polonaise Triunfal em lá maior de Chopin e a sinfonia Eroica de Beethoven. No cárcere onde foi parar, Fidel recebia cartas da amada, que lhe serviu de canal para comunicar-se com os liderados lá fora. Foi solto a 15 de maio de 1955 e a 7 de julho seguiu para o exílio no México, de onde, balsero ao contrário, voltaria no final do ano seguinte com a lancha Granma para começar a guerrilha em Sierra Maestra. Nascida em março de 1956, ainda na vigência do casamento com o dr. Fernández (que em 1961 se exilaria nos Estados Unidos, onde morreu), Alina foi gerada, pois, naquelas breves semanas pós-cárcere. Quando a revolução triunfou, a 1' de janeiro de 1959, já estava encerrado o love affair da socialite com o socialista. O que não a impediu de ocupar postos na hierarquia castrista, tendo se aposentado no Ministério da Cultura. Naty, hoje com 68 anos, há muito não fala com Fidel, mas continua, como o seu amor de juventude, obstinadamente confiante na revolução.


A preocupação com a saúde vem de longe, e já em Cuba, terra de comida pesada e oleosa, tornou-se vegetariana. Não convém convidá-la para ir a um restaurante, pois não lhe apraz "mastigar em público". Na hora de comer, recolhe-se sozinha a seu quarto. Mumin prefere levar seu prato para a frente da televisão, de forma que a mesa da sala, em Columbus, nunca é usada para refeições. "Esta casa é um acampamento" — e Mina se multiplica em desculpas pelo desalinho, nada alarmante, de sua sala de visitas. Não tem empregada nem faxineira, e muito menos paciência para tarefas domésticas. "Não sei organizar uma casa", reconhece. Não se anima sequer a mandar remover o carpete da sala, tiro e queda para a sua alergia. Boa parte dos móveis foram pechinchas garimpadas em yard sells, mercados informais que funcionam nos fins de semana nas cidades americanas. Muito móvel com gavetas — "tenho compulsão por gavetas", admite a inquilina, traumatizada ainda pela falta que elas lhe faziam em seu espartano apartamento de dois quartos no bairro de Nuevo Vedado, em Havana, onde só dispunha de dois armários. Nessa casa geminada, com fachada de tijolos, pela qual Mina paga aluguel de 445 dólares mensais, também são dois quartos. Situada numa espécie de vila, não podia estar em lugar mais silencioso — embora não seja esta exatamente a opinião do casal de idade da casinha ao lado: recentemente mandaram uma carta amável sugerindo que Mina e Mumin subam as escadas com menos energia.


Sem muitos amigos em Columbus, onde, apesar do estrépito da chegada, ano e pouco atrás, não vem a ser uma personalidade, Mina também não costuma visitar ou ser visitada com freqüência. Mas não faz o gênero misantropo, nem se queixa de solidão. "O difícil não é aceitar a solidão", sentencia, "o difícil seria renunciar a ela." Mesmo em Havana, conta, quase não botava os pés na rua. Não havia muito o que fazer. Lia, lia, lia — a acabava encarando os mesmos livros, pois não é tão farta assim a bibliografia ao alcance de um cubano. "Li três vezes A Montanha Mágica de Thomas Mann", é capaz de dizer, divertindo-se com sua própria pedantería.


Com dois gringos numa cabana


Suas raríssimas saídas em geral a levam à casa de Elena, uma bizarra e suntuosa cobertura encarapitada no topo de um edifício garagem, à qual se chega num delirante elevador provido de um canapé e um par de colunas gregas. Não é longe, vai-se num minuto a pé. Porém mesmo essas visitas a Elena têm escasseado, pois no momento Mina está radicalmente absorvida pelo livro, ainda sem título, que vem escrevendo, por encomenda da Bertelsmann, a maior editora alemã e uma das maiores do mundo. É de antecipações sobre direitos autorais que Mina e Mumin estão vivendo. A autora, recentemente, teve o dissabor de verificar que o fisco americano pretende abocanhar nada menos de um terço do que já recebeu — mais uma novidade para quem vem de Cuba, onde não existe imposto sobre a renda. E o pior é que, com sucessivos prazos já estourados, ela não está conseguindo pingar um ponto final.


A peleja vem se arrastando desde 1992, quando, ainda em Havana, Mina começou a gravar depoimentos para Hans Huebner, um alemão que teve a idéia do livro. O editor gostou do projeto de Huebner e despachou um ghost writer para a ilha. Não funcionou: a segurança acabou desconfiando daqueles dois gringos que, em companhia da filha do homem, se fechavam numa casa alugada na Marina Hemingway, condomínio exclusivo para estrangeiros. Ou no balneário de Varadero, a 140 quilômetros da capital, onde, entre outros pesadelos, Alina se lembra de ter passado várias noites em claro numa cabana, a desfiar suas lembranças para um gravador.


A "mediocridade segura" de Cuba


Não tardou e os alemães acabaram presos, a pretexto de estarem com os vistos vencidos; um deles, recalcitrante, foi expulso três vezes de Cuba, o outro uma. O editor, por fim, decidiu dispensar o ghost writer, gostou mais do texto de Alina — mesmo porque ela não é exatamente uma estranha no ninho da literatura: sempre escreveu poesia, embora nunca tenha publicado, e inclusive se arrepende de haver queimado todos os seus versos aos 30 anos. Arrepende-se também de não ter aproveitado a oportunidade que lhe ofereceu a viúva do escritor cubano Alejo Carpentier de concluir o livro que ele deixou inacabado — uma biografia do escritor francês Paul Lafargue, genro de Karl Marx e autor de um ensaio célebre, O Direito à Preguiça. A literatura, diz a moça, sempre foi o grande sonho de sua vida, ao lado da medicina — chegou, aliás, a cursar medicina até o 3' ano, mas desistiu, horrorizada com o que presenciou nos hospitais cubanos, onde, segundo afirma, "as pessoas são usadas como cobaias".


Boa parte do livro foi escrita na Europa, no ano passado, quando Alina deixou Mumin aos cuidados de Elena e se fechou por dois meses num estúdio no Quartier Latin, em Paris, cidade onde viveu durante um ano e meio, quando tinha 8, ao tempo em que sua mãe foi primeira-secretária da embaixada cubana. De volta a Columbus, Alina vai tentando terminá-lo, debruçada sobre um lap top Epson que ainda não domina plenamente, "numa relação de amor e ódio". Trabalha à noite — "sou um ser noturno", explica, "às 8 da manhã sou incapaz de falar, não tenho energia alguma." Ela esbarrou numa dificuldade até o momento intransponível: como estruturar o texto, como casar as duas partes já escritas, uma cronologia de sua vida e uma série de "retratos", do pai, da mãe etc? Por vezes lhe dá vontade de pedir socorro ao editor, mas ele quer que ela toque o barco sozinha. "Tenho prazer em escrever, mas agora, com essa dificuldade, tomei aversão", admite.


Alina: agora a briga é com o computador

Fadado a ser um best seller internacional, o livro de Afina Certamente será pródigo em detalhes do novelesco episódio de sua saída de Cuba, do qual participaram diversas entidades e pessoas — entre elas, uma cidadã espanhola, Mari Carmen López, militante de uma associação dedicada à luta pelos direitos humanos, que num dia de dezembro de 1993 foi bater em sua casa, em Havana. O plano era tirar Afina de Cuba com um passapor-te espanhol falsificado. "Eu poderia ter continuado lá indefinidamente", afirma a filha de Fidel, explicando que desde a adolescência se sentira socialmente inadaptada. "Há uma série de coisas, em Cuba, que garantem o que chamo de mediocridade segura" — escola e saúde de graça, bem ou mal alguma comida a preços subsidiados. Mas a vontade de sair era antiga e se reacendeu quando Mumin, aos 15 anos, entrou em crise: tudo no país funcionava mal, as escolas inclusive — o jeito era ir embora. Afina combinou com o pai da menina, o bailarino Francisco Salgado, que o primeiro que pudesse escapar trataria de tirar a filha. O momento era chegado.


Um verdadeiro banho de Chanel n° 5


Suspeitando de que houvesse microfones camuflados no apartamento, Alina e Mari Carmen atravessaram a rua e foram para a casa de Naty Revuelta, a mãe de Alina, e mesmo ali trataram de conversar na varanda, a meias palavras e com o rádio ligado. Mari Carmen tinha trazido, prontinho, todo um kit fuga, que incluía roupas e uma exuberante, espanholíssima peruca. Para a foto do passaporte, voltaram à casa de Alina, que pendurou um lençol na parede e se fez fotografar, peruca posta, com a câmera xereta de Mari Carmen. Que não era, aliás, a única espanhola desembarcada em Cuba para livrar a filha de Fidel: havia mais duas, e coube a uma delas deixar o país por dois dias para providenciar, no México, a falsificação do passaporte da terceira.


Peruca, muita maquiagem, roupas espalhafatosas, e ei-la transformada numa espanhola, pronta para fugir

A saída foi marcada para 19 de dezembro, primeiro aniversário da sensacional fuga de Orestes Lorenzo, o piloto da Força Aérea Cubana que, depois de desviar um caça MIG para os Estados Unidos, voltou num aviãozinho e recolheu a família numa estrada perto de Havana. Para não despertar suspeitas, Afina foi se aprontar em outra casa. Espertamente, decidiu vestir-se com espalhafato, em vez de tentar passar despercebida pelos controles do aeroporto. "Vesti-me, pintei-me e penteei-me ultrajantemente", rememora, enfática. Camadas e mais camadas de maquiagem, um verdadeiro banho de perfume Chanel n.º 5. Jeans, botas bege (em lugar dos tênis trazidos por Mari Carmen), sobretudo marrom e, por cima da peruca, um boné "de luxo" presenteado anos antes por um amigo e ainda sem uso.


Gorjeta européia para o motorista


Convertida em semelhante marmota, carregando no sotaque espanhol, Alina Fernández Revuelta tomou o táxi chamado por sua filha e cuidou de dar ao motorista o que lhe pareceu ser uma gorjeta européia. Envolta em seu halo de perfume, passou sem qualquer problema pelos controles do aeroporto — ao contrário do fotógrafo da revista francesa Paris-Match que, conforme o plano de fuga, viajaria com ela no avião da Iberia: ele acabou despertando as suspeitas dos policiais e por pouco não conseguia embarcar.


Mas tudo acabou bem. Em Madri, onde chegou sem saber em que país poderia viver, Afina foi levada para a casa de um cubano, e ali pôde finalmente libertar-se da peruca que há doze horas a atormentava, e conhecer Elena Amos, que além de financiar parte do esquema fizera questão de viajar desde os Estados Unidos para recebê-la na Espanha. Decidiu que Afina iria com ela para Columbus, e, disposta a não passar o Natal longe dos netos, ligou para o senador Sam Nunn, da Geórgia, pedindo que ajudasse a moça a entrar em território americano. Três dias depois, na antevéspera de Natal, a filha de Fidel Castro estava dando entrevista coletiva à imprensa na cobertura de Elena.


A prole do patriarca

Em Cuba, este é um assunto proibido — a vida pessoal de Fidel Castro. Todo mundo sabe que El Comandante tem outros filhos além de Fidel Castro Díaz-Balart, o "Fidelito", o único a ser publicamente apresentado como tal. O que poucos sabem é que são pelo menos oito, tidos com três das várias mulheres que se enredaram nas suas barbas. Por conta deles, Fidel já foi avô onze vezes.


Fidel Castro Díaz-Balart é o mais velho. Tem 45 anos, três filhos e é de todos o mais parecido fisicamente com o pai. A mãe é Mirta, bela e rica estudante de Filosofia de cabelos negros com quem o aluno de Direito Fidel Alejandro Castro Ruz, de 22 anos, se casou em 1948, e de quem se divorciou em 1956. Fidel pai era colega de faculdade de um irmão de Mirta, Rafael, mais tarde vice-ministro do interior da ditadura do general Fulgencio Batista. Estava na prisão, em 1954, quando soube que sua mulher figurara na folha de pagamento do regime que ele combatia — e rompeu publicamente com ela. Mirta veio a se casar outra vez, com um político chamado Emilio Nuriez Blanco, com quem teve outros filhos, e foi viver na Espanha.


Jorge Ángel Castro tem praticamente a mesma idade de Fidelito e é fruto de uma relação meteórica com "uma mulher excelente", segundo Alina, já falecida. A irmã o descreve como um rapaz "doce e calado". Formou-se em Química e entre os quatro netos que deu a Fidel há trigêmeos — duas garotas e um garoto.


Depois de Alina Fernández Revuelta vêm os cinco filhos da professora Delia Soto deI Valle (ao que se saiba, ainda hoje mulher de Fidel), com idades variando de 30 e poucos aos 20 anos: Alex, Alejandro, Alexis, Antonio e Ángel, o "Angelito". Explicação para dois Angel na prole de Fidel: assim se chamava seu pai. Quanto a Alejandro e variantes, este é não só o seu segundo nome como também foi um codinome na clandestinidade. Os cinco filhos de Delia já deram três netos a Fidel Castro.


Nesse meio tempo, havia recusado um oferecimento de asilo político do governo espanhol e decidira não pedir o mesmo ao americano. "Asilada por quê?", ela indaga, "se não tenho segredos militares e nunca fui presa em Cuba?" Com isso, ficou sem direito a passaporte. "Tenho status de balsera", resume, referindo-se aos cubanos que chegam aos Estados Unidos ou são recolhido no mar do Caribe em improvisadas balsas. O documento que Alina tem para mostrar quando viaja não é mais que "um papel branco", como diz — uma declaração de autoridades americanas em que é apresentada como "paroled for public interes", ou seja, alguém que o governo permite estar em território americano a título precário. É também o caso de Mumin, "paroled for humanitarian puipose".


A saída de Mumin foi o segundo capítulo da novela. Ficara combinado que a fuga de Afina só seria divulgada três dias depois, tempo que a verdadeira dona de seu passaporte, uma daquelas três espanholas, precisaria para obter um novo na embaixada de seu país em Havana. Passados esses três dias, Alina ligaria para o Escritório de Interesses de Cuba, em Washington, para negociar a saída da filha em troca de um mínimo de barulho na imprensa. A menina, enquanto isso, ficaria em casa, fazendo de conta que a mãe continuava por ali, até que as espanholas lhe mandassem um sinal verde. Mas a notícia vazou, precipitando os acontecimentos. Em Havana, no dia 23, Mumin assistiu à entrevista coletiva de Alina em Columbus com imagens captadas por uma parábola, as precárias, por vezes cômicas antenas parábolicas artesanais que nos últimos anos invadiram os telhados da capital cubana. Com dezenas de jornalistas à porta, a menina refugiou-se na casa da avó, a quem informou sobre a fuga. Embora fiel ao regime, Naty Revuelta reagiu bem à novidade.


"Mais sapatos que Imelda Marcos"


Nesse ponto entrou em cena o pastor americano Jesse Jackson, que foi a Havana pedir a Fidel Castro a liberação de Mumin. El Comandante, para surpresa de muitos, disse que não havia problema: la nieta podia partir, desde que o pai e a avó estivessem de acordo. Estavam, claro, e poucos dias depois ela voava para Miami com o pai, Francisco Salgado, terceiro marido de Afina — que não desperdiçou a chance de se asilar nos Estados Unidos. Além de ter sido chamada de neta pela primeira vez, Mumin recebeu de Fidel um convite para voltar a Cuba para as férias. Ganhou passaporte e pode regressar ao país quando queira. Bondade, cavalheirismo? Mina acha que foi só mais uma manifestação da "astucia campesina" de Fidel. Seu objetivo seria criar um sentimento de antipatia por Mina entre os exilados cubanos nos Estados Unidos, como se fosse beneficiária de tratamento especial.


Ao que tudo indica, conseguiu: já estão dizendo que, privilegiada em Cuba, Afina Fernández Revuelta goza de mordomias também no exílio. O azedume dos exilados por ela tem explicação. Alina, em primeiro lugar, não era uma dissidente clássica do regime, nem anticomunista militante. Além disso, não se faz de simpática, não quer pertencer a qualquer das organizações de exilados — "não estou de acordo com nenhuma", descarta. Previsivelmente, seus modos independentes já lhe custaram narizes torcidos em Miami, cidade de "más vibrações", borbulhante de chismes (fofocas) e "manejada por Fidel". O mais notório líder da comunidade cubana no país, Jorge Mas Canosa, presidente da ativa Fundação Nacional Cubano-Americana, deu-lhe mais de um telefonema caloroso quando ela chegou aos Estados Unidos, para em seguida, sintomaticamente, emudecer. Com sua tia Juana, Juanita Castro, outra figura importante da cubanía de Miami, célebre nos anos 70 pelo seu anticomunismo e pelos ataques ao irmão, Mina chegou a conversar algumas vezes — "até nos darmos conta de que não temos nada a nos dizer". Acabou desagradando também um amigo de juventude, com decisiva participação no plano de fuga, ao constatar que ele esperava tirar proveito material de sua presença nos Estados Unidos. "Ele chegou a dizer", diverte-se Mina, "que eu ia ter mais sapatos que Imelda Marcos..."


Miami, ela diz, é uma cidade de "más vibrações", borbulhante de fofocas e "manejada por Fidel Castro"

Discursando numa conferência da ONU sobre direitos humanos, ela condenou a personalização do poder, capaz de transformar em tiranos líderes no início bem-intencionados, entre eles Fidel Castro. Foi muito mais longe num artigo para El Nuevo Herald, equiparando-o, "Mengele stalinista", a um carrasco nazista. Mina não perde uma oportunidade de chamar a atenção para o drama dos cuba-nos, em especial os milhares de balseros que, não tendo conseguido asilo nos Estados Unidos, foram recolhidos à base naval americana de Guantánamo, em território de Cuba. Mas afirma que não tem ambições políticas — "o que tenho feito é um trabalho social", distingue. Diz que nunca foi socialista. Reconhece que a revolução cubana "teve êxitos quantitativos" — "mas daí não passou".


Na chegada da filha, Mumin, a Columbus, EUA, no último dia de 1993

Ao contrário da maioria dos exilados, Mina não alimenta fantasias de uma volta à pátria, mas é evidente que não se vê morando indefinidamente nos Estados Unidos. Aonde gostaria de viver? Ela fala de uma antiga e algo desconcertante fascinação pela Irlanda, onde nunca botou os pés. Quem sabe? Supõe que nessa ilha os autores são mais bem tratados pelo imposto de renda. "Os poucos irlandeses que conheço são interessantes", acrescenta, "e além disso os ruivos me encantam..."


Se perguntada, Afina não repele a hipótese de que venha um dia a se entender com aquele homem barbudo que, menina, lhe fazia visitas noturnas e que nunca a chamou de hija. Mas para efeito externo, pelo menos, não se anima com a idéia, muda de assunto com ceticismo e não sem alguma amargura: "Estou ui muito velha para ganhar um pai."



ILUSTRAÇÕES MATANGRA



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