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DANIEL OLIVEIRA

Perfil



Qual é o Cazuza verdadeiro? Acertou quem indicou o da esquerda. A foto da direita é o Daniel numa cena de Cazuza, o Tempo Não Pára


O homem que virou Cazuza

Para fazer o artista mais visceral do rock nacional, o ator Daniel Oliveira mergulhou no universo das drogas, perigos, bacanais e da busca desesperada pela felicidade. O problema agora é adiar a saída


Por THALES GUARACY


O ator Daniel Oliveira tornou-se um especialista em transgressões. Aos 26 anos, entra em cartaz este mês nos cinemas no papel de Agenor Miranda de Araújo Neto, o Cazuza. Para viver um dos maiores artistas que a música brasileira já produziu, decidiu fazer um mergulho sem paralelo no universo do cantor. Cazuza pertence àquela categoria de ídolos conturbados que viraram mito por viver e morrer exatamente como cantavam. Deixou atrás de si uma legião de adoradores e a marca de uma geração. Daniel decidiu que, para encarnar com perfeição artista tão visceral, precisaria despir-se de si mesmo e viver como seu personagem. Foi morar onde ele morou, freqüentou os mesmos bares e cometeu as mesmas loucuras, onde entravam as drogas, o bissexualismo, as bacanais. Um coquetel de tudo, misturado com uma ânsia de viver que beirava o risco de vida e terminou de maneira trágica com a Aids, num tempo em que a doença matava dois anos após o diagnóstico. Como Cazuza, Daniel foi ao céu e ao inferno. E nem ele sabe ainda o quanto essa experiência transformou sua vida.


"Vamos lá, estou pronto para tudo", diz Daniel. Ali na minha frente, cabelos levemente encaracolados, camiseta verde como seus olhos, calça jeans, tênis Ali Star como mandava o figurino nos anos 80, Daniel parece mais com o Cazuza do filme do que com o astro em franca ascensão na Globo. Trabalhou em Malhação, fez minissérie e agora é protagonista da novela das 6, Cabocla. "Você viu o filme com quem?", pergunta, curioso. Cazuza, o Tempo Não Pára, dirigido por Sandra Werneck, conta a vida do artista desde o começo da carreira no Circo Voador passando pelo sucesso com o Barão Vermelho até a carreira-solo e a luta contra a doença, perdida em 1990, aos 32 anos. Mostra Cazuza como uma pessoa livre de qualquer amarra, que falava o que pensava, experimentava drogas, sexo heterodoxo, arriscava-se de todas as formas, numa permanente revolução interior, refletida na força e contundência dos versos que compunha. Ao incorporar sua personalidade, refazer tudo o que Cazuza fazia, experimentar literalmente a "vida louca, vida breve" transcrita em seus versos, Daniel trouxe o mito à realidade. "O que mais chamava a atenção nele era esse desejo de aproveitar a vida ao máximo, não ir para a cama porque o dia ainda estava acontecendo, tomar a última dose, esperar a letra vir", diz Daniel. Cazuza era de extremos. Podia ser o sujeito suave que lia no Arpoador e passeava com o cachorro na praia ou o bêbado febril que vomitava nas boates e cantava homens e mulheres num ritmo frenético. Toda essa energia ficou registrada em sua música. Mas ser o próprio Cazuza era muito diferente. "Deixa então eu te contar do começo", diz Daniel.


Cazuza (à dir.) ensaia com os amigos em cena do filme. Daniel mudou para o Baixo Leblon para conhecer a realidade do artista

Quando soube do teste para o filme, Daniel tinha 24 anos. Passou pelo funil da seleção, onde havia 60 candidatos. "Apareceu Cazuza preto, Cazuza japonês, de tudo quanto é tipo". conta. Vencida essa etapa, começou a preparação alugando um apartamento na rua Dias Ferreira, no Baixo Leblon, para respirar o clima do personagem. Ao redor de um único quarteirão girava a vida noturna do bairro, quartel-general das diabruras do artista. Convidou para morar com ele dois amigos com quem tinha o hábito de compor canções, montou uma banda informal e circulava pela noite carioca, como Cazuza nos primeiros tempos do Barão Vermelho. "Eu sabia que ia entrar num universo que não era mais o do Cazuza, pois os anos 80 ficaram para trás, mas tinha certeza de que no Leblon respiraria um Cazuza melhor que na Barra da Tijuca", diz.


FOI SÓ O COMEÇO. "Para fazer o que fiz, você tem que admitir tudo o que tem na cabeça do personagem, sem pudores." A determinação de encarnar o personagem vinha também de um momento pessoal especial. "Eu queria experimentar", diz ele. Acordava no apartamento diante de um grande pôster de Cazuza, presente da mãe do artista, Lucinha Araújo. "Olhava dentro dos olhos dele, respirava, começava meu dia com ele." Fazia sessões de preparação com a atriz e diretora Camila Amado, cuja primeira etapa foi despir Daniel da própria personalidade, como se apaga um texto do papel para escrever outro. "Foi uma faxina na cabeça para que eu me admitisse como um nada, começasse de novo", conta. O trabalho durou um ano e meio. Daniel mergulhou no universo de Cazuza. Leu os mesmos livros [Cazuza adorava a geração beatnik, como Jack Kerouac, autor de On the Road]. Ouviu os mesmos discos [Cazuza curtia de Janis Joplin a Dalva de Oliveira, uma espécie de fusão dos poetas e roqueiros malditos com uma melancólica suavidade da música brasileira do passado]. Fazia aulas de voz com Marise Muller, a mesma professora do artista. Com Cazuza, Marise trabalhava para tirar do cantor o célebre sibilado. No caso de Daniel, foi para colocar o sibilado e algum sotaque carioca.


A transformação foi completada pelo cineasta Walter Lima Júnior, que lhe deu aulas de interpretação, ensaiou os membros do Barão Vermelho fictício e reuniu a turma que interpreta os amigos de Cazuza no filme. Daniel viu repetidas vezes os registros em que o artista aparecia aos 12 e aos 16 anos, além de todos seus shows. Repetia os trejeitos, cantava com ele, até o ponto de imitá-lo de olhos fechados. No filme, Daniel é um Cazuza um pouco mais doce, mas muito semelhante no gesto, nas atitudes e na voz.


Aos poucos, precisou experimentar a alma que havia por trás do comportamento do cantor, uma espécie de espírito livre, dedicado a experimentar tudo — tudo mesmo. Cazuza pregava uma busca absoluta da felicidade, por trás da qual havia algo de ansiedade, de gula, de desespero. Daniel teve que penetrar nas diferentes facetas do poliedro Cazuza, a começar pelo mais perigoso, o fascínio pelo risco. Numa das cenas do filme, Daniel anda perigosamente pela mureta de um viaduto, brincadeira que Cazuza fazia em noites de bebedeira. Abria os braços, como quem queria voar. Podia morrer e ria, feliz em estar vivo, diante da morte. Ali, Daniel começou a descobrir que tinha mais em comum com Cazuza do que imaginara. "Fiquei preso por um cabo de aço, mas nem precisava, porque subi em muro desde pequeno", diz ele. "Sabia que não ia caie No entanto, a sensação foi real. Ver o vazio lá embaixo, os carros pequenininhos..." Cazuza usava drogas — não era exatamente uns viciado, dependente de uma droga só. Usava a droga que tinha, a que encontrava na noite, a que caía na mão — qualquer droga. "Que é que tem as?", diz Daniel, com a entonação de Cazuza, quando pergunto qual seria a preferida do artista. Quando indago quais foram suas experiências reais, porém, torna-se reticente. "Não tomei nada."


CAZUZA NÃO FAZIA DISTINÇÃO ENTRE OS SEXOS. Hedonista, gostava do que achava bonito. No filme, Daniel fez várias cenas em bacanais ou com outros homens. Não foi a parte mais agradável do serviço. "Saliva de homem, pelo pouquinho que troquei ali, não é a minha praia, é um pouco mais grossa", diz. "Mas procurei encarar o assunto com respeito ao homossexual." A bissexualidacle de Cazuza era diversão, atração, instinto. Daniel é diferente. "Não curto não, véio, mas beijar homem não tem importância, a história é linda, isso não é nada."


Experiência mais chocante entre as muitas que viveu foi sair pelado pela rua. Certo dia, o fotógrafo Walter Carvalho, co-diretor do filme, telefonou para Daniel e disse que queria fazer uma foto dele representando Cazuza para uma exposição. A idéia era fotografá-lo nu em um cruzamento superpopulado do Rio. Na data marcada, ao meio-dia, foi para um cruzamento do Baixo Leblon. Só de bermuda, sem cueca, saltou para a rua no meio da multidão, com Carvalho a acompanhá-lo com a câmera. O semáforo fechou, Daniel tirou a bermuda, postou-se na faixa de pedestres, diante dos carros parados na primeira fila, e começou a bater no peito, com os punhos fechados e uma invocação: "Cazuza... Cazuza..." Ele explica: "Para ganhar coragem, eu chamei o cara! Acreditem ou não, essa presença dele me ajudou muito".


No último terço das filmagens, Daniel sentiu a dor de Cazuza ao receber o diagnóstico da Aids, sua luta contra a doença e o definhamento. Pergunto se já recebeu na vida uma notícia dessa gravidade. "Recebi...", diz ele, baixando a voz a cada silaba. "Nunca disse isso, não sei se digo", defende-se. Para Daniel, as experiências afetivas com Cazuza, que o levaram a desproteger-se, ainda continuam a acontecer. Num gesto repentino, ele toma o gravador de minhas mãos, desliga a tecla REC e me olha, voz estrangulada: "Foi o suicídio do meu pai". Daniel tinha 19 anos. Seu pai, taxista em Belo Horizonte, matou-se sem deixar explicações. Era um homem "alegre", apesar da batalha pela sobrevivência. Por necessidade, Daniel trabalhava desde os 14 anos. Aos 17, estava no almoxarifado de uma loja de material de informática carregando caixas para ajudar a família e pagar o curso de teatro nos fins de semana. A morte do pai, dois anos depois, acelerou o seu desejo de experimentar a vida, entrar no desconhecido, desvendar a alma humana. "Foi um momento de ruptura", diz Daniel. "Eu quis escrever minha história, ainda estou querendo." Uma motivação semelhante à de Cazuza.


Num gesto repentino, ele toma o gravador de minhas mãos, desliga a tecla REC e me olha, voz estrangulada

USOU SEU SENTIMENTO DIANTE DA PERDA DO PAI para entender o gigantesco impacto da notícia da Aids. "Essas experiências sempre servem. No começo da preparação para fazer Cazuza, eu nem ligava para a doença. E foi melhor assim, a impressão de um futuro doente não podia transparecer no meu rosto, nos meus olhos." Assim, quando chegou a hora, sofreu também um impacto repentino. Teve menos de um mês para emagrecer, afastado das filmagens. Parou de comer, tomou remédios para perder o apetite. "Eu vivi a doença. Senti que estava mesmo mal, perdi 11 quilos em três semanas. Foi muito duro. Eu jogava a minha vida naquele personagem." Por causa do tratamento com AZT, Cazuza ficou com a pele queimada, escura, acinzentada. Daniel teve que tomar sol e fazer sessões de bronzeamento artificial. "A sensação do corpo perdendo a força... A idéia de acabar a vida, tudo o que a gente gosta... Num primeiro momento, vem a revolta. E a crônica da morte anunciada, você sabe que vai morrer e não quer. Eu canto, eu me divirto, estou no auge e vou perder tudo isso?", diz. Para Cazuza, que fazia do prazer de viver uma busca apologética, a sentença de morte foi um raio divino. "Quando a fúria passa, o lado espiritual entra", diz Daniel. "Quem é positivo faz essa busca de um lugar melhor. Acho que isso passou pela cabeça do Cazuza."


Daniel interpretando Cazuza depois da Aids: bronzeamento artificial e 11 quilos perdidos em três semanas

Daniel saiu do filme com muito mais que uma revolução interna. Foi difícil entender o que sobrou de Cazuza dentro dele. A fase que vive hoje tem muito em comum com um certo Cazuza. Está no auge da juventude e da carreira, começando a brilhar como galã da TV. Mas também formou uma banda, Pedras Pra Moer, da mesma forma que Cazuza começou o Barão Vermelho. Ali, Daniel faz o mesmo papel de seu personagem: compõe e canta. Briga com os colegas, pois deseja colocar alguns covers de Cazuza, assim como Cazuza brigava com Roberto Frejat, na época em que o parceiro do Barão não suportava seus acessos nem queria tocar qualquer coisa diferente de rock'n'roll. O ator está gostando de participar de uma banda. "Vou cantar mesmo, se vai dar certo, não sei, mas é o que eu gosto no momento. Ali sou eu mesmo, no palco." Continua a morar com os amigos da banda, pretende tomar-se profissional e fazer uma turnê pelo Brasil. As semelhanças com o início da carreira de Cazuza não parecem coincidência.


PERGUNTO SE É DA NOITE. "Sou do dia e sou da noite", diz ele, em mais urna resposta que podia muito bem ter saído da boca do seu personagem. Ele conta, então, que é de sua autoria um pensamento cazuziano presente na cena do filme em que, já doente, Daniel/Cazuza está sentado à mesa de um bar rodeado pelos amigos: "Eu prefiro os desajustados da noite ao tédio das pessoas que não sabem amanhecer". "Sonhei com essa frase", diz Daniel. "Tinha que colocá-la no filme." Não sabe ao certo que caminho seguir na vida artística, de modo que faz planos na TV, no cinema, no teatro e na canção. "Sou totalmente livre para ser o que eu quiser", diz ele. "A gente é que escolhe, a gente é que traça. Faço o que quero, o que tenho vontade."


Hoje, Daniel pensa na viagem em que mergulhou para virar Cazuza como se tivesse ficado velho de repente. "Isso tudo interfere aqui dentro, traz maturidade", diz. De Cazuza, quer a experimentação, mas descarta extremos. "Também me arrisco, e gosto de adrenalina. Mas sempre tive cabeça boa e usei bom senso." A diferença é que Daniel ainda tenta manter o limite, que para Cazuza não existia. Para ele, dar rosas não era suficiente, era preciso que fossem "mil rosas roubadas", corno na letra de Exagerado. Essa vontade de gritar, de transgredir, de viver intensamente, de lutar contra o tempo, é o que torna sua obra sempre atual. Como Cazuza, Daniel sonha com essa intensidade. Com uma diferença. Está disposto a ir ao céu e ao inferno, mas quer ter como voltar.



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