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DEZ NOITES EM LAGOS

Reportagem



ENTRE O LUXO E O INFERNO EM LAGOS

COM CERCA DE 20 MILHÕES DE PESSOAS, A CAPITAL DA NIGÉRIA SOFRE COM A CORRUPÇÃO E A VIOLÊNCIA. AUTÊNTICA E VIBRANTE, A VIDA NOTURNA TORNOU-SE UMA VÁLVULA DE ESCAPE PARA OS JOVENS LOCAIS


POR ADAM SKOLNICK

FOTOS GLENNA GORDON


Meia-noite de sábado e o clube estava começando a esquentar. Homens se inclinavam sobre o bar com paletós esportivos e gravatas, deslizavam pela pista de dança com sneakers caros, cheios de correntes de ouro, olhando fixamente para mulheres de todas as formas e tons, deslumbrantes em longos de grife, minissaias ou shorts curtos, por vezes evidenciando ou revelando corpos curvilíneos, pernas longas ou um decote elegante.


Era a minha segunda noite em Lagos, na Nigéria, e mais uma vez eu estava em um ambiente lotado com a alta sociedade nigeriana dançando ao som do afropop nativo. Garrafas de champanhe Dom Pérignon em baldes de gelo seco deixavam rastros de fumaça de vapor enquanto saíam do bar, carregadas nos braços de belezas africanas esculturais que as levavam às cabines repletas de executivos do petróleo ou das telecomunicações, investidores do mercado imobiliário e seus convidados.


Muitos deles, ainda na faixa dos 20 e 30 anos, já eram milionários, mas todos corriam atrás de algo mais. Afinal, em Lagos existe uma ideia de que aqui todo mundo tem três ocupações: um magnata do petróleo também pode possuir um restaurante, enquanto financia a gravação de um rapper revelação. Nas ruas não é diferente. Nesta cidade corrupta, perigosa, dependente das exportações, se você está vivendo na tranquilidade ou no aperto, um trabalho nunca parece ser o suficiente.


Capital mundial do afropop, Lagos é dona de uma reputação de cidade violenta e tornou-se a última fronteira do jet set, um lugar de casas noturnas regadas a conhaque, apresentações de b-boys e poderosos sistemas de som. Não há raves ou festivais pop organizados, com DJs ostentando cortes de cabelo de 350 reais. Em vez disso, Lagos oferece a qualidade rara que os viajantes almejam: autenticidade, mesmo que isso signifique ter de ficar sempre atento na rua.


Em frente ao bar Sip Lounge, os frequentadores bem-vestidos, chamados de ajebotas (ou “comedores de manteiga”, jovens ricos na gíria iorubá), desciam de Range Rovers coloridos em meio aos mendigos quase invisíveis – deficientes, órfãos, refugiados. Pelo caminho, eles se mantinham atentos, mas não eram essas pessoas que os preocupavam. Todos os privilegiados que conheci tinham pelo menos uma história sobre estar na mira de um revólver ou de uma faca (os pobres são assaltados e roubados com a mesma frequência).


Lagos é uma cidade de aproximadamente 20 milhões de pessoas, onde cerca de 9 mil milionários flutuam sobre uma massa numerosa de ajepakos (“comedores de grama”, na gíria iorubá para pobres). Segundo estimativas, mais de 4 milhões estão desempregados e outros milhões ganham mal no mercado negro, o que significa que inúmeras pessoas desesperadas recorrem a roubos e sequestros em vez de implorar por trocados.


Alguns dos artistas estabelecidos na crescente indústria da música nigeriana ajudam os que têm esperança de mudar a sua situação através do afropop, uma vez que vivem cercados pela classe empresarial bem-sucedida. Nos últimos anos, músicos como Wizkid e P-Square conquistaram paradas dos Estados Unidos e da Europa e influenciaram outros artistas.


À esquerda, a noite no clube Quilox. Ao lado, um casamento no bairro de Lekki. Em festas assim é comum jogar dinheiro nos noivos.


Às 2 da manhã no Sip Lounge, Burna Boy, outro astro local, estava em sua cabine vestindo um chapéu de palha e um medalhão de ouro sobre a camiseta branca. Ele tomou um longo gole da garrafa de conhaque Hennessy que segurava com a mão direita e pegou o microfone com a esquerda. Todas as cabeças se voltaram em sua direção. DJ Obi, um ícone em Lagos, soltou uma batida, e Burna Boy deu voz ao hit Like to Party.


Enquanto os frequentadores se dirigiam em massa para a pista de dança, meu celular vibrou. Era Bizzle, o mais improvável dos poderosos artistas da indústria musical e um influenciador respeitado no universo afropop. A festa estava no auge, mas ele me disse para encontrá-lo no Club 57. Encontrei-o lá às 3 da manhã, com sua túnica africana cor de pêssego, cercado de mulheres. Nascido Abiodun Osikoya, Bizzle tem 30 anos, é manager da Mavin Records e, como tantos dos habitantes bem-sucedidos de Lagos, nasceu rico. Quando estava no colégio, uma onda de repatriados – crianças da diáspora nigeriana educadas no exterior e cansadas de bater suas cabeças contra os telhados de vidro europeus e americanos – chegou em casa em busca de oportunidades e uma chance de se livrar do estigma do racismo.


O MITO DA NOVA ÁFRICA


Naquele momento, a África que muitos dos repatriados conheciam – imersa em guerra, pobreza e corrupção – já estava ultrapassada. Telefonia móvel conectava o país, investimentos e empreendedorismo floresciam, e a Nigéria, com petróleo e sua população jovem, vivia um crescimento sem precedentes. Lagos tinha até mesmo um novo som.


“Nos últimos seis anos, a música mudou muito. As pessoas que voltaram trouxeram novas influências e um novo estilo de vida”, disse Bizzle, citando Burna Boy, Davido e Tiwa Savage como exemplos. Mas foi o poder das mídias sociais que fez da música nigeriana o som do continente e ajudou a conquistar ouvintes pelo mundo.


FORA DA FESTA, MILHARES LIDAM COM POBREZA, POLICIAIS CORRUPTOS E ELETRICIDADE INTERMITENTE

E já que estamos falando de Lagos, Bizzle também temambições. Além de seu trabalho com a Mavin, tornou-se um promoter de casas noturnas e é host de boates em três noites da semana. É bom nisso, mas quer mais. Quem é realmente rico aqui possui um iate robusto e uma mansão no bairro chique de Ikoyi. Bizzle anseia por ambos, e quer abrir suas próprias casas noturnas para chegar lá. “Owo ni koko”, disse ele. Ou “dinheiro é a coisa principal”, em iorubá.


No dia seguinte, encontrei-o em uma pool party no fim da tarde, organizada por outro parceiro de Bizzle, na boate Quilox. A piscina, em uma área privativa, era ladeada por cabanas com cortinas, e o evento atraiu nomes de peso da arte e da indústria de Lagos. Apesar da pompa, o local estava inacabado. A vista do banheiro era tomada por entulho de construção. Nós curtíamos a passos de distância de um estacionamento sujo. Em algum lugar além da festa, milhares de pessoas lidavam com pobreza, policiais corruptos e eletricidade intermitente – sem contar a insurgência islâmica no norte da Nigéria liderada pelos terroristas sanguinários do Boko Haram.


Lagos é cinematográfica, mas não bonita. A cidade mais populosa da África é um quebra-cabeça gigante de concreto desmoronando, com quase nenhuma vegetação. Embora tenha dezenas de bairros, divide-se basicamente em duas partes: a ilha e o continente. A ilha é separada do continente por uma grande lagoa salobra, e conectada a ele por três pontes. É composta por vários bairros, incluindo tanto Victoria Island, Lekki e Ikoyi, onde vida noturna e comércio de luxo acontecem, quanto locais violentos, como Lagos Island, que abriga o principal mercado da cidade e sua mais perigosa zona de prostituição.


Enquanto a ilha é cheia de arranha-céus feitos de aço e vidro, butiques luxuosas e ruas espaçosas e pavimentadas, no continente os guetos são amontoados de tetos de zinco e blocos de concreto, com teias de fios elétricos pendendo sobre as ruas sem pavimento, com esgoto a céu aberto. As crianças aprendem desde cedo que a vida no continente não vale nada, e é por isso que a maioria cresce sonhando com o dia em que conseguirá ir para a ilha reivindicar uma parcela da boa vida.


CONFLITO GERACIONAL


Mas se você buscar as raízes da música que invade as discotecas da ilha, elas sempre levam de volta ao continente. Principalmente à música de nomes como Fela Kuti, pioneiro do afrobeat, gênero derivado do jazz com muita percussão e sopros, e um ícone do mesmo nível de Bob Marley e James Brown. Seu trabalho é carregado de revolta, com letras contra a corrupção política e em favor da justiça social. Em um momento, criou sua própria comunidade no continente, a República Kalakuta, onde seu filho Seun cresceu. “Era uma comunidade de gente de todas as classes sociais”, disse Seun. “Era um lugar vibrante. Não havia privilegiados, todo mundo era igual”.


Em seu auge, Fela era tão rico quanto qualquer magnata do petróleo na cidade. Construiu a própria casa de shows, a Shrine, e promovia apresentações baratas para uma audiência cheia de excluídos. Sempre que podia, desafiava os generais, acusando-os de corrupção nas ruas, o que explica por que o governo militar o considerava um problema. Eles prenderam Fela várias vezes e queimaram a Shrine e Kalakuta até a destruição, em um ataque que matou a mãe de Fela. Graças à perseguição, ele morreu falido em 1997.


Seun agora vive em Ikeja, um bairro continental não muito longe da antiga Kalakuta e do New Afrika Shrine, que seu irmão mais velho, Femi Kuti, construiu e onde faz shows uma vez por mês. Seun aluga uma casa grande, ainda que não esteja em ótima condição, e dirige um Mercedes de oito anos. Femi ganha melhor e vive na periferia de Lagos, mas sustenta uma grande família, e ambos os artistas também mantêm suas bandas, que incluem até 16 músicos. Eles são celebridades, mas também fazem parte da classe média da Nigéria. É tão improvável que eles estourem garrafas de champanhe nas baladas quanto acreditem na ideia de uma nova África, do progresso, das oportunidades. “Não acredite em toda essa propaganda”, disse Seun. “As pessoas que eram pobres quando eu era criança ainda são pobres hoje.”


Da esquerda: Seun Kuti, filho caçula de Fela Kuti, durante um show; uma festa de rua onde músicos praticam seus sons e dançarinos testam coreografias; e o serviço de bar típico dos clubes: mulheres servem garrafas de Dom Pérignon, bebida que nessas baladas literalmente pisca.


Quando estive com Femi no estúdio de gravação, ele me disse que acha que aqueles que falam sobre uma nova África e uma economia em crescimento “venderam a alma”. “A saúde é péssima, as estradas ainda são horríveis, o nível de pobreza é muito ruim, e só porque meia dúzia está se beneficiando com dinheiro roubado, dizem que a economia está melhorando? Sim, alguns estão bem, mas, de um modo geral, a Nigéria está muito doente.”


Seun e Femi seguem os passos do pai. A música deles é política, fascinante e envolvente. Mas, como as de Fela, as canções suingadas e repetitivas podem se estender por mais de dez minutos, o que significa que eles não são autores de hits – e quando jovens nigerianos sonham em se tornar popstars, não se imaginam como Fela, eles querem ser como o fenômeno Wizkid.


Uma das maiores estrelas pop da Nigéria, Wizkid cresceu perambulando pelas esquinas de Ojuelegba – um movimentado terminal de transporte de Lagos. Ali há um mercado informal que funciona o tempo todo, um lugar de crime e prostituição. Era onde ele passava o tempo livre, rimando e dançando por horas a fio, olhando as meninas e tentando vencer as dificuldades. À noite, vagava por estúdios baratos, e acabou conseguindo gravar algumas faixas. O estrelato foi quase imediato.


CHOQUE DE REALIDADE


Ao longo dos dez dias que passei em Lagos, fui a todas as baladas que encontrei. Numa noite, caminhando por uma viela de Campos, bairro brasileiro em Lagos Island, encontrei uma festa de rua. Havia um palco improvisado, ladeado de caixas de som enormes e coberto por um resto de carpete, de frente para uma mesa de som armada contra a parede de um bar.


No fim do século 19, escravos libertos vindos do Brasil e de Cuba se instalaram nessa parte da cidade, um capítulo da longa história de repatriados de Lagos. Naquela noite, três gerações de seus descendentes se sentaram às mesas de plástico, beberam bitters Orijin, bebida alcoólica com ervas, e garrafas de cerveja Star e ficaram observando os jovens dançarem e executarem suas músicas. No final, Dreamchaser, um rapper magro de 26 anos, soltou sua voz rouca e contagiante. A poesia em iorubá e o inglês carregado foram marcados por um ritmo de afrobeat enquanto jovens de 20 e poucos anos dançavam break e requebravam sob os feixes dos holofotes.


À noite, pessoas a caminho de festas lotam até as ruas de bairros degradados, pobres e violentos como Obalende, na ilha. A música e a vida noturna são partes muito importantes da cultura da capital da Nigéria


“Falo sobre uma menina que quero amar, mas não posso porque não tenho dinheiro suficiente”, disse Dreamchaser depois. Um barman em Lagos Island tem sorte se ganhar mil reais por mês. Apesar de talentoso, ele tenta há mais de oito anos e ainda não fez um centavo com a música. Economiza trocados durante meses para poder gastar os 900 reais necessários para gravar uma faixa, mas se mantém confiante. “Ainda acredito que posso ganhar muito dinheiro com o que estou fazendo.”


Parte da vida em Lagos é uma luta para o indivíduo médio e ainda mais difícil para as meninas nigerianas em locais onde a violência sexual é lugar-comum. O crédito bancário é extremamente difícil de obter. Como resultado, a cidade se movimenta com dinheiro vivo, o que torna quase impossível transcender a pobreza. É por isso que moradores de todas as idades vendem qualquer coisa nos cruzamentos . “Coloque-se na pele daqueles que estão cometendo crimes”, disse Femi Kuti. “Eu tenho dois filhos, não tenho dinheiro, não consigo um emprego e alguém me chama para roubar um carro. Talvez um dos meus filhos esteja doente. Neste país, as pessoas morrem por causa de 15 reais, e você espera que esse cara não vá roubar?”


“É UMA ARMADILHA. SE VOLTARMOS, UM GRUPO DE HOMENS VAI NOS ROUBAR E TALVEZ NOS MATAR”

No entanto, apesar da criminalidade e da pobreza da cidade, eu me senti poucas vezes em perigo. Na verdade, me sentia seguro se estava em uma boate ou uma festa. Comecei a acreditar que as advertências que recebi ao vir para cá foram mais fundamentadas em racismo inconsciente do que na realidade.


Os cidadãos de Lagos que conheci eram quase todos trabalhadores, otimistas e receptivos, alimentados pela ingenuidade e pela crença de que as coisas podem melhorar. Para eles, o afropop é uma fonte de orgulho. É dali, uma combinação da música nigeriana de raiz com influências do hip-hop, que antes era proibido e só podia ser ouvido na cena underground. “A música simboliza esperança”, disse Nseobong Okon-Ekong, editor do ThisDay, um dos principais jornais de Lagos. “Esperança de que seja possível deixar de ser um zé-ninguém e se tornar alguém.”


Seun Kuti aprecia afropop, mas questiona de quem é o sonho que os artistas estão vendendo e para quem eles servem. “É uma pena que a maior parte da nossa arte na África esteja glorificando o consumismo barato, promovendo esse estilo de vida. Nosso sonho tem de ser o sonho africano – de libertação econômica, de controlar nossos recursos e desenvolver nossas sociedades de uma forma que nos beneficie.”


Wizkid é um dos nomes mais famosos da música nigeriana. Seu hit Ojuelegba, do segundo álbum, descreve a luta por reconhecimento musical nesse bairro movimentado de mesmo nome. Ela foi remixada em 2015 pelos rappers Drake e Skepta


Na madrugada anterior à minha despedida, no carro, voltando ao hotel, eu lamentava ter de pegar o voo. Queria mais música, mais Lagos. Então, saindo das sombras, ela veio para o carro. Uma beleza de pele negra e corpo delgado com um salto alto quebrado e usando um vestido branco apertado salpicado de sangue. Seu lábio inferior estava machucado, e ela cambaleou, batendo na janela do motorista.


“Me ajude”, sussurrou. O motorista desviou, e por pouco não a atingiu. Ela girou e caiu de joelhos no asfalto.


“Que porra é essa?”, gritei assustado.


“É uma armadilha”, disse o motorista, acelerando e deixando-a na poeira. “Eu estou dizendo, é uma armadilha. Se voltarmos, haverá um grupo de homens que vão nos roubar e talvez nos matar.” Meu motorista havia sido roubado uma vez por um grupo desses na rua e acabou sendo trancado em seu próprio porta-malas. “Esses caras podiam até ter armas automáticas.”


Olhei para trás. Além da garota, a rua estava completamente vazia. Será que ele estava certo? Ela era uma isca ou a única em perigo? Eu gostaria de dizer que voltamos para descobrir, mas, afinal, estávamos em Lagos, então continuamos dirigindo.


TRADUÇÃO LETÍCIA IPPOLITO



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