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DUAS VEZES CUBA

Ficção



Pai e circo

A escritora cubana Wendy Guerra em dose dupla: em um conto erótico quentíssimo emoldurado por um ensaio estrelado por ela própria


Por WENDY GUERRA

Em 2010, a cubana Wendy Guerra, autora de belos romances como Posar Nua em Havana, Todos se Vão e Nunca Fui Primeira-Dama, tornou-se a primeira e mais badalada "Musa da Flip", a festa literária que sacode novamente Paraty neste mês de julho. Não foi só o fato de ser censurada em Cuba, onde seus livros não são publicados, sua irreverência e a qualidade de sua obra que chamaram atenção. A cubana que foi criada em um orfanato do Estado e se tornou uma das expoentes da literatura de seu país é uma musa também por conta da beleza.


Wendy está de volta ao Brasil no mês da Flip, desta vez do jeito que todo mundo — ou, pelo menos, o leitor masculino — quis vê-la em sua primeira passagem. Provocadora, ousada, experimentalista, ela escreveu um quentíssimo conto erótico, que você vai lera seguir, e mais: acompanhado por um ensaio não menos arrebatador, inspirado em seu próprio texto, tendo a autora como protagonista. Não é sempre que se mistura refinada literatura com uma bela mulher — muito menos assim. A Musa da Flip continua a nos encantar.



Escola de arte, lugar onde é permitido ser diferente; ma non troppo.


Minha irmã chegará à noite para ocupara parte de baixo de meu beliche.


Poderá instalar-se a despeito de mim? Tudo depende do relato.


Olhando de cima dos colchões eu espero, adivinho o resultado da inquisição escolar, minhas pernas balançam no vazio, sou a guardiã do albergue, controlo o movimento da reunião, vejo os professores gesticularem como peixes histéricos, debatendo-se contra o vidro.


O que aqui é incorreto, para mim foi regra de família.


Estudantes de Variedades e Arte Circense, saltimbancos condenados a morrer na fogueira da vida civilizada?


Sou da costa norte do Leste. Em meu povoado se chega à iniciação sexual com o pai. Ninguém melhor do que ele para instruir-nos. Não há homem que possa te ensinar, te orientar melhor, lá é o pai quem, durante a adolescência, te descortina as leis do corpo, os perigos do corpo, os prazeres do corpo, suas dores, seus prazeres exaltados.


Quando cheguei a esta escola, soube que ninguém era como eu, fiz silêncio e permaneci tranquila, esperando o ano todo que aparecesse minha irmã. Brincávamos de madrugada, com frascos de cristal repletos de vaga-lumes que avivavam a escuridão de nossos lençóis. Garotas de néon, festim adormecido que começava à meia-noite, quando o sonho no campo é mais profundo e a lua se enreda entre as palmeiras e a mangueira filipina. Um espasmo, um beliscão, e já estávamos abraçadas.


Às quatro da madrugada saímos para ordenhar, para limpar com cinza o piso de terra, alimentamos com cocos os porcos, fervemos a roupa branca com anil e lascas de sabão, coamos café em saco fino; e às cinco e meia já estamos, todos os irmãos, sentados no portal para o café da manhã como leite fresco e morno da ordenha.


De sexo não se fala, é coisa sadia, natural, vai fluindo. As crianças menores vão caminhando para a escola, e os grandes para o campo, para trabalhar... Nos fins de semana, alegramos as festas da garotada nas aldeias da redondeza, meu pai é palhaço empírico e um mágico de primeira.


Eu fui a primeira a receber "a beca" para estudar Circo e Variedades. Viajar a Havana e realizar um sonho da família. Eles te livram da lama e do carvão, porém em troca te escravizam com normas que você não entende.


A verdade é que não completei o ano de vida ascética prometido.


Apareceu aquela loura com nariz de palhaço e desgraçou minha disciplina, caí de boca na lona, despencando de desejo e prazer por ela. Ninguém me distraiu em todos esses meses de curso na escola.


Manchete: duas trapezistas amanhecem acariciando-se no picadeiro da Escola de Arte.


Senti seu desejo e seu perfume me desequilibrou, encontrei uma resistência elástica que eu devia romper com a língua até abrir caminho no intricado resorte de seu hímen novo em folha.


Ela era virgem, me detive ao dar-me conta de que não havia escape possível, passagem untada de essências para seguir até o interior de seu corpo, eu não tinha outro remédio senão abri-lo sozinha; fiz da forma que a imaginação me ditou; clareava e, àquela altura, já éramos dois caracóis enlaçados, não havia outro rumo que não fosse continuar gozando uma contra a outra, para ver quem separava quem.


Monna. Loura e translúcida, leite branco derramado sobre meus ombros escuros. Seus cabelos vermelhos se iluminavam ante as insólitas faíscas do amanhecer; a Escola de Arte sofria de ressaca, os flamboyants, os jacarandás, o salgueiro e as amendoeiras dormitavam, nem mesmo meu copo-de-leite se erguia com a brisa, nem com o espalhafatoso gorjeio dos pássaros. Último chamado! De árvore em árvore, coxa e sexo destampavam a caldeira de odores que encarnavam em mim como velhos mortos, como velhas recordações, como saborosas febres pendentes, evaporações que Monna me ofereceu no alto da escola, a ponto de sentir-me a mulher mais suculenta, a negra mais desejada, era toda poção e suores, era sua, umedecida de cima a baixo.


LÁBIO COM LÁBIO, ELA RESISTIA A MEUS DEDOS, SEDOSA E RISONHA PREFERIA O CONTATO DE NOSSOS CLITÓRIS

Minha língua se rendia no clitóris firme de Monna, esfregava-a lasciva, só agora eu sei, atropelada e aturdida. Como jambos maduros, sentia nossas vulvas rebentarem de desejos, ela estava por um toque, eu acreditava que penetrar era o verdadeiro disparo que a deixaria sem consciência. Lábio com lábio, a loura resistia a meus dedos, sedosa e risonha. Preferia o contato de nossos clitóris:


— Monna, friccione-me — gritava enquanto ela me mordia os ombros. Cócegas ou embriaguez, transporte denso ou trânsito desesperado que a fazia sofrer. Minha torpeza interrompia os espasmos de Monna, meu lábio tocava o seu quase por casualidade, quase por capricho.


Uma se satisfazia só com o contato externo das pontas e das beiradas, a saliva e a língua em misturas, a outra necessitava morrer penetrada por um golpe final: a estocada a fundo.


Intumescidas de medo e frio, com olhos incertos, queimadas de rubor e perdidas, renunciamos ao choro, e se não choramos foi por raiva. Houve minutos em que nos perdemos juntas, queríamos saber mais do que já tínhamos, mais do lugar para encontrá-lo, o único caminho então era o trânsito por nossos sentidos. A grande viagem, que terminaria ante os olhos atônitos de uma professora de Marxismo. Mandaram-nos para o chuveiro, a água não tirou os males da madrugada, mas os do susto, o jorro frio às sete da manhã cortou-me a respiração. Tive um ataque de asma e decidiram deixar-me no albergue.


Monna foi declarando o que pôde, o que a vergonha permitia diante dos professores e do diretor. Em minutos descerei dos colchões para dizer o que me permitam dizer. Por que não esperei firme por minha irmã? Aqui se trabalha com algo que não entendem: o corpo.


Por fim me chamaram, senti que o beliche criava um fio condutor invisível e firme, corda bamba que me transportou em equilíbrio até a diretoria.


Não há nada mais triste do que ver um palhaço chorar, e Monna é especialista em clown, ninguém como ela para fazer rir a criançada, agora parece uma menininha espantada com seu próprio show. A lourinha saiu da sala tremendo, nos cruzamos sem nos olhar. Sim, ela estava perdoada, e a negra?


Eles me perguntaram o que vim estudar na Escola de Variedades. E me perguntaram duas vezes, até que maquinalmente recitei o aprendido. "Os equilíbrios corpo a corpo da acrobacia, os malabarismos, a arte do clown."


Também me interrogaram sobre o que havia acontecido durante a madrugada. Eu disse toda a verdade, descrevi exatamente o vivido, não costumo mentir quando se trata do corpo, minha alma é outra coisa, a ela eu engano quando quero; porém não conheço uma só pessoa que tenha enganado o desejo.


A meu favor tinha as qualificações de todo um curso, fui uma boa aluna. Os melhores momentos no ar; os piores, com o pé no chão.


Em cima de monociclo, rolo, pernas de pau, bola, cabo, corda, flutuando na pirâmide humana, em exercícios corpo a corpo eu fui aqui a melhor. Equilibrista para o que der e vier, já consigo dominar a ginástica em aparatos complexos. Em um, ano aproveitei cada passo e venci cada meta. E agora? Mandaram entrar minha família.


Meu pai e minha irmã, vestidos e maquiados de palhaços, desde que minha mãe morreu assim nos levavam a passeio pela aldeia nos domingos. Começou seus malabares lançando claves e bastões para o ar, minha irmã, ginasta de nascença, seguia-o caminhando de cabeça por toda a oficina. O diretor rugiu como um leão enjaulado, pondo fim ao gran show.


Eu havia sido expulsa. Minha irmã, aceita. Pensei que meu pai fosse me repreender por haver perdido todo um ano longe da aldeia, longe de meus irmãos menores, longe dele.


Fizemos a viagem em silêncio, um palhaço triste atrai má sorte.


Ao chegar, meus irmãos não estavam em casa, era domingo e o circo tinha função.


Meu pai me banhou no quintal, ensaboando, despojando o odor que Monna deixou entre minhas coxas e meu pescoço. Eu deitada sobre a cama, ele me beijou tranquilo, percorreu cada pedaço do corpo de sua filha; eu, que não sabia bem a diferença entre o bem e o mal, o que odiar e o que gozar, soltei uma lágrima que meu pai trocou pela máscara diminuta de seu nariz vermelho.


Abriu-me as pernas e me penetrou com calma, suavemente, com seu pênis duro e perfeito passeou por meu delta aveludado; quando já não cabia nada mais em meu ventre e me afogava em sua absoluta possessão, quando a ponta de seu sexo golpeava rítmica minha infinitude, ele se deteve para morder meus ombros, respirar lentamente e recitar suavemente:


— Te fiz na minha medida. Bem-vinda, filha minha, ao circo de teu pai.


FOTOS JUAN PALACIO



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