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O DIA EM QUE NÃO DEU ÁGUIA NA CABEÇA

Ficção



Era um golpe perfeito nos chefões do bicho. Mas, se falhasse, o prêmio seria a morte


Por VALÉRIO MEINEL


O Opala branco, de quatro portas, com vidros fumê e vidraça traseira guarnecida por persiana, conduzido por motorista particular, trafegava pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana, na altura do Posto Seis, numa manhã ensolarada.


Havia intenso movimento de veículos e o Opala, trafegando em marcha lenta, passou diante da 13.ª Delegacia Policial e parou pouco adiante, na esquina da Rua Sousa Lima. Os motoristas dos carros que vinham atrás do Opala buzinaram, protestando contra a interrupção do trânsito. Sem dar importância, o motorista do Opala, um mulato alto e magro, elegante no terno azul-marinho, desceu e abriu a porta traseira.


Uma linda perna de mulher, a pele dourada de sol, surgiu pelo vão da porta. Depois, a outra perna juntou-se à primeira e uma morena exuberante acabava de desembarcar, chamando atenção com sua incomum beleza. Ela usava um vestido decotado, de corpete justo e saia rodada na altura dos joelhos. Magra da cintura para cima, tinha quadris generosos. A tonalidade da pele realçava no vestido branco. O rosto era fino, os cabelos negros e soltos alcançavam os ombros e ela usava enormes óculos escuros com lentes degradê.


Na esquina havia um ponto de bicho e dois escreventes, sentados sobre caixotes, munidos de talões e esferográficas, recebiam as apostas.


Caminhando com desembaraço, a morena dirigiu-se a um dos bicheiros. Abriu a grande bolsa a tiracolo que trazia e dela tirou um papelzinho com um número, que passou para o bicheiro, segurando-o com as pontas dos dedos, num gesto de total afetação.


— Pois não, madame? — disse o bicheiro, levantando-se do caixote.


— Na cabeça! — respondeu, passando-lhe o papelzinho.


— Bonito milhar, madame — disse o bicheiro, sorridente, copiando no bloco de apostas o número indicado: 1316. — Não vai cercar?


— Ah! eu não entendo nadinha disso... — falou com voz tão afetada quanto seus trejeitos, que faziam balançar no braço uma dezena de argolas de ouro formando um jogo de pulseiras, que combinavam com os enormes brincos também de ouro.


— E quanto vai ser, madame?


Da bolsa, os dedos de tinhas pintadas de vermelho e muitos anéis retiraram um maço de dinheiro:


— Cinco mil cruzeiros.


O escrevente tomou um susto. Chamou o caixa:


— Maçaroca, a madame está apostando cinco mil no milhar.


— Cercado? — indagou Maçaroca cheio de pose. O blusão aberto de cima a baixo, e por fora das calças, revelava a barriga derramada sobre o cinto. Calçados com tênis surrados, os pés abertos serviam para equilibrar o corpo.


— Na cabeça... — informou o escrevente com olhar maroto.


Maçaroca ficou desconcertado, e outro não era o motivo senão os valores dos prêmios em relação às importâncias apostadas. Naquele ano de 1971, os banqueiros pagavam quatro mil cruzeiros por cada cruzeiro apostado no milhar no primeiro prêmio (e dezoito por um para a aposta no grupo — quatro dezenas — de um bicho no primeiro prêmio). Significava que, se aquele milhar desse no primeiro prêmio, a morena ganharia vinte milhões de cruzeiros. Por essa razão, Maçaroca tentou convencê-la a fazer a aposta cercada. Neste caso, se o milhar saísse do primeiro ao quinto prêmio, o valor do prêmio seria reduzido em cinco vezes. A mulher ganharia apenas quatro milhões de cruzeiros.


A gata morena coberta de ouro deu o bolo de notas ao bicheiro na calçada e sapecou: na cabeça!

Olhou para a morena embevecido, sentindo no ar o perfume maravilhoso da água-de-colônia com que ela praticamente se banhara.


— Tem certeza de que não quer fazer Um joguinho cercado, senhora? —. caprichou na delicadeza. Antes que a mulher respondesse, acrescentou:


— Vou lhe explicar, madame. A senhora está jogando este milhar da borboleta na cabeça.


— Borboleta?! — fez ela, assustadíssima, levando a mão à boca, como se tivesse visto uma de verdade.


— É, minha senhora! — Maçaroca tornou-se impaciente. — O final 16 é do grupo da borboleta, mas não vai dar para explicar agora. Na cabeça, a senhora só ganha se der no primeiro prêmio. Agora, se a senhora jogar cercado, se der do primeiro ao quinto prêmio, a senhora estará premiada!


— Olha, moço, não entendi nada do que o senhor explicou... — devolveu a morena, mostrando impaciência. — Eu não jogo no bicho, foi uma amiga que me pediu, o senhor, pelo amor de Deus, se apresse, que estou atrasadíssima.


— Então vai na cabeça, Migalha! — ordenou Maçaroca.


Migalha, o escrevente, obedeceu.


— Agradecida... — disse a morena, guardando na bolsa a cópia que o bicheiro lhe deu. Girou sobre as sandálias e afastou-se em passos miúdos e rápidos. Embarcou no Opala e o carro partiu.


• • •


Naquele dia não havia extração das Loterias Federal e Estadual. O bicho ia correr pela Paratodos. A cúpula reuniu-se em um dos escritórios do banqueiro Coréia, e o detetive Osmar, da polícia do Rio de Janeiro, homem de confiança do todo-poderoso Adamastor, foi mais uma vez convidado a proceder o sorteio, como já vinha acontecendo havia pelo menos dois meses.


Segurando o saco de pano com a mão esquerda, Osmar introduziu nele a mão direita, agitou-a em seu interior e retirou duas esferas de macieira numeradas. As dezenas sorteadas para o primeiro prêmio formaram o milhar 1316.


— Ahn! — o velho Donald engasgou-se.


Os demais banqueiros voltaram-se para ele.


— Acabo de perder vinte milhões... — disse desolado. — Alguém apostou cinco mil cruzeiros neste milhar, na cabeça, hoje de manhã, em um de meus pontos, em Copacabana — explicou com voz sumida.


• • •


O vestido branco decotado e de alcinhas fora cuidadosamente colocado sobre uma poltrona. As sandálias brancas de salto estavam jogadas no chão atapetado. Pacotes de dinheiro encontravam-se espalhados sobre o tampo de mármore da mesa na suíte do motel. Ela seguira as instruções de Osmar e antes de ir ao seu encontro passou no ponto-de-bicho e recebeu o prêmio de vinte milhões de cruzeiros.


Deitada como estava, de bruços, a perna direita estendida e a esquerda encolhida, de modo que a coxa repousava sobre as pernas dele, os quadris de Selva revelavam-se ainda mais proeminentes. Eram quadris cheios, que se formavam a partir da cinturinha fina, nádegas arredondadas e voluptuosas, onde a tentadora marca branca deixada pelo minúsculo biquíni parecia uma segunda pele sobre o corpo dourado.


Selva montou no amante e logo teve certeza: com o ex-marido industrial nunca fora daquele jeito.

Ela se pôs de joelhos, passou uma perna sobre o amante e montou-o. Louca de prazer, agarrou-se nos cabelos dele, jogou a cabeça para trás e começou a soltar gritinhos, até se desfazer em gozo.


O coração estava disparado, e dá sentia arrepios, como se o prazer ainda teimasse em lhe percorrer cada parte cio corpo, aflorando à pele. Pensou, então, que jamais o ex-marido, rico industrial, Ariosto Dunquerne, fora capaz de proporcionar-lhe algo de parecido nos cinco anos em que estiveram casados. Ela estava com 25 anos, era uma mulher madura e, graças aos bens que lhe couberam e à pensão que recebia de Ariosto, Vivia bens.


Selva e Osmar caíram juntos na piscina da suíte, enxugaram-se e agora tomavam uísque de volta à cama.


— Como você sabia que ia dar aquele milhar? — perguntou Selva.


— Palpite... — respondeu rindo.


— Você sonhou?


— Pode ser. — Acendeu um cigarro.


— E na semana que vem vamos acertar de novo.


— Como é que você sabe? — perguntou espantada.


— Inspiração, meu amor... Eu tenho inspiração. — Riu e bateu-lhe carinhosamente no rosto.


• • •


Na semana seguinte, outra vez em um dia de sorteio da Paratodos, Selva cumpriu o mesmo ritual. Voltou ao ponto de apostas e entregou ao escrevente Migalha o papelzinho com o número que Osmar escrevera: 6601.


— São cinco mil cruzeiros na cabeça — disse Selva de forma altiva.


Maçaroca e Migalha a reconheceram e brincaram com Selva a respeito da sorte que ela tivera na semana anterior.


— Acho que vou arriscar uma grana no seu palpite, madame! — disse Maçaroca animado. E acrescentou: — Faz tempo que não dá o avestruz.


• • •


Aqueles foram dias trabalhosos e difíceis para o poderoso banqueiro de bicho Adamastor. Ele fez valer todo o seu prestígio e poder financeiro para conseguir que a Justiça abafasse o caso do desaparecimento do processo contra o banqueiro Paulinho Pacaembu, acusado de homicídio. O processo fora roubado do Tribunal do Júri e queimado em uma bandeja de prata, durante uma reunião festiva promovida pela cúpula da contravenção em um bar na praia do Recreio dos Bandeirantes. Outra preocupação de Adamastor era a segurança de Durango, ex-Homem de Ouro da polícia carioca, acusado de crimes do Esquadrão da Morte. Adamastor promovera a fuga de Durango do presídio da Ilha Grande. A lancha do contraventor levara o policial para uma praia do Nordeste, onde ele permanecia escondido.


O detetive Osmar era, naqueles dias, de uma dedicação sem igual para com Adamastor. Revelava-se cada vez mais prestimoso, beirava mesmo o servilismo, propositadamente colocava-se em discreto segundo plano e, misto de anjo-da-guarda e secretário, solidificava a admiração de Adamastor, que o tinha, cada vez mais, na conta de indispensável, considerando-o seu homem de maior confiança.


Adamastor tinha uma dívida de gratidão para com Osmar. Jamais esqueceria que nos tempos incertos, quando os banqueiros de bicho foram presos na Ilha Grande, após o Ato Institucional número 5, em 1968, o leal detetive assumira, por conta e risco, o comando de seus pontos de apostas e da fortaleza, para lhe restituir o negócio, em ordem e com lucros, quando foi libertado.


Naquela tarde Osmar chegou mais cedo ao escritório de Coréia, onde seria feito o sorteio da Paratodos. Os seguranças de Coréia estranharam. Osmar justificou-se com um sorriso:


— O calor na rua está de matar... Aqui, pelo menos, tem ar refrigerado.


Osmar estava oficializado conto o homem que procedia ao sorteio. Ele retirou do bolso unta chave e abriu a gaveta cia mesa, onde estavam trancadas as esferas de madeira numeradas e o saco de pano utilizados na extração cia Paratodos. Retirou o material, conferiu as bolas e colocou-as no saco. Os homens que faziam a segurança de Coréia não se preocupavam com .a sua presença.


— Toma-se uma geladinha? — perguntou Osmar, simpático.


— Sirva-se à vontade — disse um dos seguranças.


Osmar foi à geladeira, abriu o congelador e retirou a cerveja mais gelada.


O tempo passou depressa. Faltavam, então, pouco mais de quinze minutos para a hora do sorteio, e logo os chefões chegariam. Osmar levantou-se da poltrona onde se instalara, foi novamente à geladeira e retirou mais uma cerveja do congelador.


Pouco depois os banqueiros de bicho começaram a chegar e, quando estavam todos presentes, Osmar recebeu ordem de proceder ao sorteio da Paratodos. Segurou o saco de pano com a mão esquerda e com a direita, bem à vista da assistência, foi apanhando as esferas numeradas de macieira sobre a mesa e introduzindo-as no saco. Ao terminar, segurou o saco pela boca com as duas mãos, agitou-o bem, fazendo chocalhar as esferas de madeira e finalmente enfiou a !não direita no recipiente, iniciando o sorteio.


O milhar sorteado no primeiro prêmio foi 6601.


Desta vez Donald deu um salto da cadeira.


— Não é possível! — gemeu o velho banqueiro.


— O que foi? — perguntou Adamastor.


Ele explicou que mais uma vez perdera vinte milhões de cruzeiros. Como acontecera no sorteio da semana anterior, alguém havia apostado cinco mil cruzeiros naquele milhar, na cabeça, em um de seus pontos, em Copacabana.


Naquela noite Donald reuniu-se com seu sócio Gringo, na sala de carteado, em sua mansão no bairro da Tijuca.


— Você acha que os sorteios foram fraudados? — perguntou Gringo.


— Não sei.


— Desconfia de Osmar?


Donald encarou-o de maneira sombria, sem responder.


— Prestei atenção em cada movimente de Osmar no sorteio desta tarde — disse Gringo com expressão atônita.


— Você sabe, justamente pelo que aconteceu na semana passada. — Abriu as mãos sobre a mesa. — Honestamente, não percebi nenhum gesto suspeito, nada de anormal.


Donald tinha agora os olhos perdidos em um ponto imaginário e distante. Repassava na memória os lances da extração. Tudo fora feito às claras.


— Precisamos agir, Gringo! Estão nos fazendo de palhaços! — sentenciou Donald com voz grave.


Donald mandou chamar à sua casa, naquela mesma noite, o gerente do ponto onde foram feitas as apostas. Tinoco, 50 anos, trabalhava para Donald desde os 20 anos e era homem de sua confiança. O gerente disse ao banqueiro que soubera, por Maçaroca, que as apostas haviam sido feitas por uma linda mulher, que chegava ao ponto em um Opala branco.


Donald mudou subitamente de expressão. Os olhos brilhavam e o rosto começava a desanuviar. Aproximou-se de Tinoco, passou o braço pelo ombro do gerente e passeou com ele pela sala de jogo, dando-lhe precisas instruções sobre o que devia fazer.


• • •


Três semanas se passaram sem que Selva aparecesse para jogar no ponto da Rua Sousa Lima. Os sorteios da Paratodos transcorriam sem anormalidades. No ponto de bicho o gerente Tinoco estava prestes a pedir autorização ao banqueiro Donald para suspender a vigília.


Em uma véspera de sorteio da Paratodos Osmar e Selva passaram a tarde no motel de sempre. Selva desconhecia as ligações de Osmar com a contravenção. Para ela, Osmar era detetive e gostava de samba, razão por que costumavam encontrar-te nos ensaios da escola de samba financiada por Adamastor.


Naquela tarde, depois de saciar e ser saciada por Osmar, deitada nua na cama da suíte, Selva perguntou, carinhosa:


— O que você tem, amorzinho? Parece preocupado...


— Eu?! Preocupado?! — Riu. —Com quarenta milhões no banco, depositados em seu nome, conto prova de amor, e com você na minha cama? — Sentou-se e acendeu um cigarro: — Estou pensando no golpe de amanhã.


— Vamos jogar de novo?! — Selva estava surpresa.


— A primeira vez deu borboleta, em homenagem a você... Depois foi a vez do avestruz. — Deu uma gargalhada. —Tem muito filho-da-puta com o corpo de fora e a cabeça enterrada... Fingem-se de leões, você vai ver, é tudo onça-pintada... Uns avestruzes, com a cabeça metida nos próprios problemas e a bunda de fora. Merecem ser enrabados... Agora será a vez da águia!


— Vai dar águia?!


— Só de sacanagem. Para simbolizar o vôo que vamos dar. E nunca mais vão saber de nós. Vamos sumir com sessenta milhões, gatinha!


Selva olhava-o, sorrindo, mas intrigada:


— Olha pra mim.


Ele obedeceu. O sorriso que exibia era de excitação.


— Conto você adivinha o bicho que vai dar?


— Faz diferença? — ele desconversou.


Osmar escreveu em um papelzinho o milhar da águia em que ela deveria jogar: 3308. E deu-lhe instruções para que não fosse mais ao ponto de bicho da Rua Souza Lima. A aposta devia ser feita em um ponto no centro da cidade. Ele temia que os homens de Donald estivessem de olho em Selva. A vítima seria, agora, o mal-humorado General.


A garota decidiu fazer a aposta no lugar de sempre. Bem onde a armadilha fatal estava preparada

Na manhã seguinte Selva achou uma tolice ir à cidade para fazer a aposta. Contrariando as ordens de Osmar, dirigiu-se ao ponto da Rua Souza Lima, e repetiu a rotina das vezes anteriores.


O gerente Tinoco anotou o número da placa do Opala e passou-o por telefone para Donald. O banqueiro descobriu com um telefonema para o Departamento de Trânsito que o carro pertencia a Selva Dunquerne, moradora em um prédio de apartamentos na Avenida Vieira Souto, junto à praia de Ipanema.


Naquela tarde Osmar agiu rigorosamente conto vinha fazendo nas últimas semanas. Chegou cedo ao escritório de Coréia, onde se procederia ao sorteio da Paratodos, conversou animadamente com os homens da segurança, verificou, cuidadoso, as esferas de madeira numeradas do sorteio, bebeu, como de hábito, duas cervejas geladas, que retirava do congelador, e, no momento da extração do bicho, diante dos banqueiros que integravam a cúpula da contravenção, portou-se com absoluta calma e discrição. Retirou do saco de pano a milhar do primeiro prêmio: 3308.


Olhou, discretamente, para General. O banqueiro estava impassível. Osmar não pôde conter um ligeiro estremecimento quando ouviu, do outro lado da sala, o riso de Donald, que comentou:


— Águia! Que belo milhar!


Donald levantou-se, dirigiu-se à sala ao lado, retirou o fone do gancho e discou o número de um telefone.


• • •


No começo da noite Selva desembarcou do Opala no ponto de bicho para receber o prêmio de vinte milhões de cruzeiros. Estranhou que Maçaroca e Migalha não estivessem. Na esquina havia três tipos mal-encarados. Dois deles agarraram Selva, um dos homens encostou o cano de um revólver 38 em sua barriga, e o terceiro rendeu o motorista Tibério. Selva foi levada de volta ao Opala. O que comandava o grupo ordenou a Tibério:


— Para a casa da madame! — Apontou-lhe o revólver para o rosto. — E sem truques. Sabemos o endereço na Avenida Vieira Souto.


Aterrorizada, Selva julgou que se tratasse de um seqüestro. Deu graças a Deus por não ter depositado os prêmios. Ela teve medo de chamar atenção, depositando todo aquele dinheiro em ' sua conta bancária, como Osmar determinara. Os quarenta milhões estavam guardados em uma frasqueira cor-de-rosa, escondida em seu apartamento, e ela poderia usá-los para pagar o resgate. Depois imaginou um milagre: Osmar poderia estar à sua espera no seu apartamento e, como detetive, saberia como lidar com aqueles brutamontes.


Naquele momento, no entanto, Osmar estava retido no escritório de Coréia. Logo após o sorteio da Paratodos os banqueiros reuniram-se no gabinete de Coréia e Adamastor ordenara a Osmar que aguardasse na sala ao lado.


• • •


O telefone tocou sobre a escrivaninha de Coréia. Ele atendeu. Era para Donald, a quem foi passado o fone.


— Alô? — disse o velho banqueiro.


— Pegamos a dona e fiz ela abrir o bico, chefe — anunciou um dos seqüestradores de Selva. O pistoleiro contou animado que conseguira recuperar os quarenta milhões de cruzeiros pagos em prêmios. Explicou que Osmar era quem mandava a amante fazer as apostas e que a mulher não passava de inocente útil.


Os banqueiros reunidos no escritório acompanhavam ansiosos as reações de Donald. Ele exultou ao saber que o dinheiro fora recuperado. Depois ficou sério e perguntou:


— Como o filho-da-puta tirava os números certos?


— Isto a dona não sabe, chefe.


— Tem certeza?


O pistoleiro arrancara dois dentes de Selva com uma pancada com o cano do revólver e fora assim que conseguira a confissão de que Osmar mandava-a fazer as apostas. Fora assim que fizera Selva entregar-lhe a frasqueira com o dinheiro dos prêmios.


— Ela está com a boca arrebentada, seu Donald. Garanto que está por fora.


— É, mas eu vou saber... — disse ameaçador.


— Ainda estou aqui com os homens. Que que se faz agora?


— Leva esta puta para a beira da estrada!


— Mas seu Donald — baixou a voz, apreensivo. — A mulher não está só. Aqui no apartamento tem o motorista dela e dois empregados.


— Acaba com a piranha e o motorista. Os empregados não devem estar sabendo que eles iam ao ponto de bicho.


— Sim senhor, seu Donald.


— Quando acabar o serviço, leva o dinheiro para minha casa.


— Claro, seu Donald. Tudo combinado.


Donald desligou o telefone.


— E então? — perguntou o sócio Gringo.


Os outros banqueiros aguardavam ansiosos pelas notícias.


— Lamento muito, Adamastor — disse Donald com a voz pausada. — Seu afilhado, Osmar, tem que morrer.


— O quê?! — Adamastor ficou surpreso.


— Este canalha mandava apostar propositadamente no meu ponto e sabia antecipadamente o milhar que ia dar no primeiro prêmio.


— Mas como?! — Adamastor ficou indignado. — Os sorteios são feitos na nossa presença, com a maior lisura. — Olhou para os demais. — Nenhum de nós suspeitou jamais de um gesto que fosse de Osmar. Eu não aceito isto!


Donald explicou o trabalho feito por seus homens, a confissão de Selva. Todos ouviram em silêncio e, ao final, votaram pela eliminação de Osmar.


— Vocês não podem me pedir uma coisa dessas. — Adamastor quase chorava, arrasado por imensa amargura. — Osmar é como um filho. Leal, correto...


— Mas agora ele não pode mais merecer sua confiança! — interrompeu Donald irado. Estava decidido a fazer valer a sua vontade e disposto, para isto, a desafiar Adamastor, o mais poderoso do grupo.


Adamastor resistiu. Coréia fez, então, uma proposta conciliadora. O próprio Adamastor conversaria com o detetive e o grupo acataria a conclusão a que ele chegasse.


— Mas tem uma coisa, Adamastor — acrescentou Coréia.


Adamastor levantou os olhos avermelhados.


— Se ele fraudou o sorteio, voto com a maioria. Osmar será morto!


O grupo retirou-se para a sala ao lado e Osmar foi chamado para conversar a sós com Adamastor.


— Sente-se — ordenou Adamastor.


O detetive obedeceu.


Adamastor caminhou até a janela, olhou a cidade com as luzes acesas. Dali dava para ver um trecho da baía. da Guanabara, a iluminação distante da cidade de Niterói. Falou olhando a paisagem, uma forma de não encarar o empregado que sempre lhe fora fiel:


— Você está sendo acusado de fraudar o sorteio da Paratodos.


— Eu?! — Osmar gemeu às suas costas.


— Os homens de Donald agarraram esta tarde uma mulher de nome Selva Dunquerne. Você a conhece? — Adamastor ouviu apenas o choro de Osmar. — Ela confessou que você lhe dava os números do milhar para serem apostados e que eram sorteados no primeiro prêmio. É verdade?


— Meu pai! — exclamou Osmar.


Adamastor voltou-se e encontrou Osmar de joelhos. Arrastou-se pelo chão do escritório e agarrou-lhe as mãos. Beijou-as:


— Me perdoa, meu pai! Pelo amo, de Deus, me perdoa! — chorava como uma criança, sem largar as mãos de Adamastor.


O contraventor puxou-as com violência e ordenou, ríspido:


— Levante-se!


Osmar continuou de joelhos. Chorava, as mãos escondendo o rosto, ó peso do corpo cedera e ele estar sentado sobre os calcanhares.


— Não me mate, paizinho! Não deixe que me matem, meu pai! Sempre fui honesto com o senhor!


De joelhos, chorando, Osmar implorou ao chefão: "Não me mate, paizinho! Não deixe que me matem!"

Adamastor abaixou-se, segurou Osmar carinhosamente pelos cotovelos e fez com que se erguesse.


— Não precisa ter medo. Eles quiseram lhe matar, mas eu não deixei. Você não precisa de uma coisa dessas, Osmar! Francamente! — A voz era macia, inspirava estar decepcionado, mas ainda disposto a ajudar. — Dificuldades financeiras? Perdeu a cabeça com a tal mulherzinha? Por que não falou comigo, meu filho? — Soava pior que bofetada. — Agora me diz. Como conseguiu fraudar o sorteio na frente de todos nós, sem que ninguém percebesse?


Na sala contígua os banqueiros estavam impacientes. De repente a porta se abriu e Osmar saiu abatido. Atravessou a sala e foi embora.


Donald, Gringo, Coréia, General, Capitão Magalhães e Gustavo da Tijuca encaminharam-se para o escritório onde estava Adamastor. Donald estava agitado:


— E então? O que ele disse?


— Osmar chegava cedo aqui no escritório — começou Adamastor em voz baixa, os olhos na mesa. — Separava as esferas de madeira com os números do milhar que mandara a mulherzinha jogar e guardava-as na geladeira. Pouco antes do sorteio ele as retirava do congelador e as colocava com as outras esferas no saco. Na hora do sorteio, metia a mão e já sabia que as bolas geladas é que eram as quentes. — Ergueu os olhos para Donald com o rosto sombrio: — O homem é todo seu.


 

Este texto é um capítulo de Avestruz, Águia e Cocaína, romance-reportagem de Valério Meinel que a editora Espaço-Tempo lança este mês.


ILUSTRAÇÃO AGI STRAUS



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