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O DIA EM QUE SARNEY DERRUBOU A INFLAÇÃO

Reportagem



Exclusivo: a história secreta da mais ousada reforma econômica de todos os tempos no Brasil


Por RICARDO A. SETTI


Quinta-feira, 27 de fevereiro de 1986, 7h35. Poucas pessoas notaram que havia alguma coisa diferente no rosto do presidente José Sarney quando ele embarcou no jato branco e prateado da Força Aérea Brasileira, com uma comitiva de ministros e deputados, rumo a Ribeirão Preto, na região nordeste de São Paulo. Era um dia de céu azul sem nuvens — um dia aparentemente semelhante a tantos outros, até no caráter rotineiro da, visita de Sarney para contatos, discursos e homenagens.


Aparentemente, nada no aspecto do presidente demonstrava que aquele pudesse ser um dia especial. Com um de seus invariáveis ternos jaquetão e uma gravata ligeiramente menos sóbria do que o usual — de largas listras brancas sobre fundo escuro —, o presidente parecia estar tranqüilo e mostrou-se bem-humorado ao chegar, minutos antes do embarque, à sala VIP da Base Aérea de Brasília. Enquanto um garçom servia cafezinho aos presentes, ele dirigiu-se a um dos convidados que o acompanhariam no vôo, o deputado paulista Airton Soares, da ala mais à esquerda do PMDB, e' brincou, sorrindo:


— Como vai o comandante das forças revoltosas?


Mas o presidente já exibia, ali, um sinal inequívoco de que sua aparência serena escondia uma grande tensão: seus lábios tinham uma coloração avermelhada, um tom acima do natural, resultado de uma alergia de fundo nervoso de cuja existência pouquíssimas pessoas têm conhecimento e que, para elas, funciona como uma espécie de sismógrafo da alma de Sarney. E este mesmo mecanismo de tensão que o leva a tomar regularmente não os calmantes que vez por outra se imagina fazerem parte de sua mesinha de cabeceira, mas o medicamento Seloken, à base de tartarato de metroprobol, e indicado para controle da hipertensão arterial.


Sarney exibia um sinal de tensão que só os íntimos conhecem. Ele não tinha certeza, ainda, da aceitação do Plano Cruzado pelo povo

Havia boas razões para a controlada ansiedade de Sarney: começava ali, naquela clara manhã de 27 de fevereiro de 1986, um dia especialíssimo — o dia final de elaboração da mais ousada e profunda reforma econômica da história da República, o Programa de Estabilização Econômica, e o presidente ainda não tinha elementos para prever o grau de aceitação pública que as medidas obteriam. Na manhã seguinte, o pacote mataria o cruzeiro, criaria o cruzado e mexeria profundamente no sistema financeiro, nos salários, nos preços, nos hábitos e nas esperanças da população brasileira. Enquanto o Boeing 737 presidencial troava suas turbinas na pista, em vários gabinetes de Brasília trabalhava-se freneticamente: um punhado de funcionários e colaboradores do governo, na maior parte economistas na faixa dos 30 aos 40 anos, dava os últimos retoques num trabalho árduo e complexo iniciado, sob absoluto sigilo, cinco meses antes — o Plano Alfa.


O SINAL VERDE DE SARNEY


Até tornar-se o Plano Alfa, o conjunto de idéias que o inspirou teve que percorrer caminhos tortuosos e difíceis. O que se segue é uma reconstituição detalhada e, em muitos aspectos, inédita de como se chegou lá, começando por três cenas importantes, com épocas e personagens distintos:


Cena 1: E uma abafada tarde de novembro de 1984. O escritório eleitoral do candidato à Presidência da República Tancredo Neves, um conjunto de salas na sede da representação da Fundação Getúlio Vargas em Brasília, está surpreendentemente vazio. Chegam para conversar com o candidato três visitantes muito caros: o ex-ministro da Fazenda de Juscelino Kubitschek, Lucas Lopes, velho amigo de juventude de Tancredo, e seus filhos Rodrigo, empresário e genro de JK, e Francisco, professor de economia na PUC do Rio de Janeiro. Convencido, como disse aos filhos dias antes, de que era preciso "ajudar o Tancredo", Lucas Lopes levara para o candidato um documento conciso do que haviam sido os 100 primeiros dias do New Deal — a espetacular estratégia montada pelo presidente americano Franklin D. Roosevelt a partir de 1933 para resgatar os Estados Unidos da maior depressão econômica de sua história. O ex-ministro estava convencido de que Tancredo precisaria adotar uma política algo semelhante no Brasil, onde um certo reaquecimento da economia, já observado, seria fatalmente comprometido pela explosão cada vez maior da inflação.


Tancredo estava cansado, e a conversa, entremeada de lembranças de amigos comuns desde os tempos da cidade de Cláudio (MG), onde Lucas Lopes trabalhara na estação ferroviária e Tancredo conhecera sua futura mulher, dona Risoleta, serviu para relaxar as preocupações do candidato. A certa altura, Lucas Lopes, apontando o filho mais novo, Francisco, disse:


— Tancredo, o meu filho aqui tem umas idéias sobre inflação.


Francisco Lopes, o Chico, 39 anos, voz pausada e uma calvície precoce, expôs então sucintamente suas idéias. A seu ver, o país, em si, ia bem, ao contrário do que indicava o diagnóstico tradicional, segundo o qual estava mergulhado numa profunda crise. O problema era a inflação que, a seu ver, teria que ser combatida não com a forma tradicional, ortodoxa e recessiva de corte de despesas públicas, aperto no crédito e arrocho nos salários, mas obedecendo a uma estratégia que preservasse o crescimento econômico. E havia, acrescentou, a questão do componente inercial da inflação: com a indexação generalizada da economia, criou-se um mecanismo que fazia a inflação, a partir de certos patamares, realimentar a si mesma, e que precisava ser desmantelado. Tancredo ouviu com atenção cortês, não fez perguntas e ficou com cópias de dois artigos de Chico Lopes — os mesmos que mais tarde, em abril de 1986, constituiriam os dois capítulos iniciais do livro best seller do economista, O Choque Heterodoxo.


— Eu preciso mesmo ler — disse Tancredo. — Estou precisando ser municiado. Vou até aproveitar e recarregar minhas baterias no feriado de 15 de novembro.


Apesar da cortesia de Tancredo, e a despeito de algumas das idéias ali expostas terem força suficiente para ajudar a compor, sete meses depois, o Plano Austral com que a Argentina atacou sua inflação (leia quadro abaixo), o economista saiu da conversa convencido de que o futuro presidente, se ficara impressionado com alguma coisa, talvez tivesse sido com sua pessoa, não com suas idéias.


A ARMAÇÃO DA CONEXÃO ARGENTINA

A hiperinflação que o presidente Raúl Alfonsín herdou da ditadura militar na Argentina começou a ser combatida no Rio. No mesmo e fértil laboratório de idéias da PUC-Rio em que André Lara Resende e Pérsio Arida trabalharam, também o economista Chico Lopes há anos desenvolvia suas teorias, com um interesse particular nas formas e conseqüências do congelamento de preços. Este interesse o levara à Argentina, em agosto de 1984, para informar-se de perto sobre o comportamento da economia durante o congelamento determinado pelo governo peronista, em 1973.


Um dos contatos argentinos de Chico era o economista Roberto Frenkel, que desde 1981, quando passou um semestre na PUC-Rio, freqüentava de forma bissexta a universidade e mantinha permanente intercâmbio com colegas brasileiros. Um almoço numa churrascaria no centro de Buenos Aires com o secretário de Planejamento do governo Alfonsín, Juan Sourrouille, e um de seus assessores, Adolfo Cani Trot, foi suficiente para perceber o extraordinário interesse dos argentinos nas idéias do pessoal da PUC-Rio. O dia seguinte inteiro foi passado em conversas com economistas argentinos.


No final do ano, durante um seminário da Associação Nacional dos Pós-Graduados em Economia (Anpec), em São Paulo, Chico escreveu um artigo em que retomava as bases do conceito de inflação inercial e propunha uma mistura de moeda indexada com congelamento de preços e cálculo de salários pela média dos meses passados. Este cálculo se daria conforme tabelas de conversão que ele e seu colega da PUC Eduardo Modiano, 32 anos, elaboraram. Foi a primeira vez que a hoje consagrada expressão "choque heterodoxo" — que Chico se lembra vagamente de ter utilizado meses antes, num artigo na Folha de S. Paulo — ganhou curso.


Ao seminário, estava presente José Luis Machinea, principal assessor de Sourrouille. De Buenos Aires, inteirado há tempos do namoro de economistas argentinos com aspectos do choque heterodoxo, Jorge Sábato, assessor econômico do presidente Raúl Alfonsín, pediu cópia do artigo de Chico e dos debates por ele gerados na reunião da Anpec. Chico Lopes, ao contrário do que diz a lenda, não voltou a Buenos Aires para trabalhar junto aos economistas argentinos em qualquer projeto. Mas, dois meses depois, Sourrouille, até então num cargo sem efetivo poder de decisão, transformou-se no todo-poderoso ministro da Economia da Argentina. E, em mais quatro meses — junho de 1985 —, boa parte das idéias do pessoal da PUC-Rio figuravam no Plano Austral, que afetou profundamente, e para melhor, a vida de 31 milhões de argentinos.


Cena 2: É uma tarde de fevereiro de 1985. Na Granja do Riacho Fundo, uma das residências oficiais do governo federal, a 30 quilômetros do centro de Brasília, o presidente eleito Tancredo Neves recebe para um primeiro contato operacional seu futuro ministro-chefe da Secretaria do Planejamento (Seplan), o secretário da Fazenda de São Paulo, João Sayad. A conversa é na grande e desajeitada sala principal da granja, cedida pelo governo João Figueiredo como residência provisória de Tancredo. E gira sobretudo em torno de nomes para a presidência do Banco Central. Um dos candidatos aventados pelo futuro ministro da Fazenda, Francisco Dornelles, sobrinho de Tancredo, é Affonso Celso Pastore, justamente o presidente do BC da Velha República prestes a retirar-se de cena. Tancredo, por óbvias razões de conveniência política, não se inclina por Pastore. Assim, revê outras indicações com Sayad. O futuro ministro percebe, então, que nessa tarefa o presidente eleito se utiliza de uma espécie de termômetro: qualquer possível candidato que haja, em artigos ou entrevistas, defendido a desindexação da economia é afastado de suas cogitações. Tancredo ainda faz um comentário adicional sobre uma proposta no mesmo sentido que lhe havia sido encaminhada, por escrito, pelo senador Cid Sampaio, do PMDB:


— O Cid me passou isso, com umas idéias meio metafísicas. Mas você receba ele para conversar, ele é um bom senador. Essa história de desindexação é talvez para ser feita, mas muito, muito mais tarde. Algum dia, quem sabe.


Só Aécio Neves da Cunha, neto e secretário particular do presidente, presenciou partes da conversa. Sayad confidenciaria mais tarde que foi cauteloso, pois se sentiu sendo avaliado por Tancredo ao longo do encontro. Tancredo, assim, não percebeu que tivera diante de si, e que o governo da Nova República teria a partir de então, um ardoroso defensor da desindexação da economia.


Cena 3: É uma manhã do final de abril de 1985. 0 presidente José Sarney já tem sobre os ombros a plena e pesada responsabilidade de substituir definitivamente Tancredo, morto há dias. Num despacho com o agora ministro João Sayad em seu gabinete, no 4.º andar do Palácio do Planalto, o presidente ouve argumentos de que, nos patamares em que se encontra, a inflação não vai cair com a terapia convencional. No máximo, será possível mantê-la na faixa dos 200% ou pouco mais, porque as grandes inflações — a história tem comprovado — só terminam com medidas fulminantes, da noite para o dia. É preciso, portanto, acrescenta Sayad, encarar em futuro talvez próximo a difícil decisão de acabar com a correção monetária e os demais mecanismos de indexação realimentadores da inflação. Será quase uma revolução cultural para os brasileiros.


Não sem alguma surpresa, Sayad constata que o presidente está bem informado sobre a questão técnica da desindexação. Sua reação é simples e direta:


— Sei que isso tem que ser feito. Pode mandar estudar o problema.


Acaba de ser lançada, ali, a primeira semente efetiva do Plano Alfa. Ela só germinaria, porém, muito depois — mais exatamente a partir de setembro, quando o ministro Dilson Funaro substituiu, no Ministério da Fazenda, um formidável adversário das chamadas idéias heterodoxas: o sobrinho de Tancredo, Francisco Dornelles.


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Quinta-feira, 27/2/86, 8h00. O compartimento privativo do presidente da República fica na parte dianteira do Boeing presidencial. Além de um banheiro, há um pequeno salão tendo, à direita, quatro poltronas ao redor de uma mesinha e, numa espécie de semicírculo, do lado oposto, seis poltronas laterais. Na decolagem, como de hábito, o presidente sentou-se junto à janela, tendo a seu lado apenas o chefe do Gabinete Militar, general Rubem Bayma Denys. Quando o aparelho se estabilizou, Sarney mandou que um ajudante de ordem convidasse a entrar os ministros José Hugo, da Indústria e do Comércio, íris Rezende, da Agricultura, e Almir Pazzianotto, do Trabalho, além do senador Severo Gomes, do PMDB de São Paulo. Submetidos a uma severa dieta de bordo —apenas água e cafezinho —, os ministros conversaram por 20 minutos sobre generalidades com o presidente. O férreo sigilo que os formuladores do pacote se impuseram fez com que Sarney sequer arranhasse o assunto ali, já que íris Rezende e Severo Gomes não estavam a par das reformas. Quase todo o material que em poucas horas mais começaria a mudar a vida do país, porém, estava na pasta do presidente, ao alcance da mão: um maço de xerox contendo os 44 artigos do futuro decreto-lei 2.283, praticamente na sua forma final — produto sobretudo do trabalho dos economistas do governo, dos ministros da Fazenda e do Planejamento e do consultor-geral da República, J. Saulo Ramos.


Depois de alguns momentos a sós com Pazzianotto, Sarney convidou para a cabine um grupo de deputados, todos do PMDB de São Paulo e de alguma forma com interesses políticos na área de influência de Ribeirão Preto: João Cunha, Airton Soares, Airton Sandoval, Roberto Cardoso Alves e Francisco Amaral. O grupo assistiu a um vídeo providenciado peto usineiro Maurício Biasz Filho sobre a agroindústria local. Foi então a vez de Airton Soares devolver a brincadeira do presidente na hora do embarque. Referindo-se aos bóias-frias e apontando a região focalizada, uma das mais ricas do país, o deputado perguntou a Sarney:


— Quando é que vamos fazer a reforma agrária aí, presidente?


A PROPOSTA LARIDA


Enquanto ministro, Francisco Dornelles jamais escondeu sua oposição às idéias dos economistas que, há pelo menos cinco ou seis anos, desenvolviam estudos teóricos sobre o componente inercial da inflação. Um desses estudiosos era André Lara Resende, carioca, 34 anos, professor da PUC-Rio com mestrado na Fundação Getúlio Vargas e doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT), em 1979, defendendo uma tese que já arranhava a questão. Seu colega de MIT, Pérsio Arida, 34 anos, um paulista descendente de libaneses que também se transferira para a PUC e lá adquirira reputação de "gênio", atuava em linha de pesquisa semelhante.


Depois de sucessivos artigos publicados no Brasil e nos Estados Unidos — um deles, de André, intitulado "Moeda Indexada — Projeto para Eliminação da Inflação Inercial", foi reproduzido em setembro de 1984 no jornal Gazeta Mercantil, provocando enorme polêmica entre economistas —, Pérsio e André apresentaram um trabalho conjunto num seminário do Instituto de Economia Internacional, em Washington. O trabalho "Inertial Inflation and Monetary Reform: Brazil", contendo idéias de que Dornelles iria querer distância no governo que estava prestes a integrar, foi contudo capaz de despertar a atenção de um certo economista ítalo-americano, presente aos debates. Seu nome era Franco Mondigliani, e alguns meses depois ele ganharia o Prêmio Nobel de Economia de 1985.


As idéias de Pérsio e André tinham o repúdio de Dornelles. Mas chamaram a atenção de um economista, Franco Mondigliani, que iria ganhar o Prêmio Nobel

No mesmo seminário, o ex-professor de ambos no MIT, Rudiger Dornbusch, um crítico das idéias que depois se dobraria a elas, apelidou o conjunto de sugestões dos dois amigos com uma fusão de seus sobrenomes: a Proposta Larida, como passou então a ser conhecida. Era a culminação de um processo de discussão que André iniciara junto a Pérsio e Chico Lopes em certa medida por instigação de outro personagem, o banqueiro e ex-prefeito de São Paulo Olavo Setúbal, futuro ministro das Relações Exteriores. Diante das chances cada vez maiores de Tancredo tornar-se presidente, Setúbal um dia chamou André para conversar e disse que os opositores do regime militar em liquidação teriam que ter "propostas próprias para combater a inflação".


Quinta-feira, 27/2/86, 12h30. Já em Ribeirão Preto, na sede da Câmara Municipal, Sarney pareceu perder um pouco de seu habitual autocontrole. Ao discursar assegurando a continuidade do Proálcool, tropeçou em palavras e gaguejou. Ajornada toda foi uma maratona para o presidente: manifestações de bóias-frias, aplausos de populares, assédio da imprensa, uma saraivada interminável de discursos. Quando ele entrou no ônibus da comitiva rumo a um almoço de salada, filé com legumes, sorvetes, frutas e sucos na sede da Sociedade Recreativa de Ribeirão, ouviu a pergunta de um dos deputados:


— Sobreviveu, presidente?


— Sobrevivi — disse, polegar para cima. Foi na viagem de volta a Brasília que Sarney pôde, por alguns minutos, dedicar-se ao texto do discurso que começara a alinhavar na véspera, à tarde, e que, depois de receber subsídios dos dois assessores mais graduados do ministro Funaro, ele concluiria pessoalmente de madrugada, no Palácio da Alvorada. Quando o Boeing sobrevoava o território do Distrito Federal, ele chamou à cabine a .jornalista do Comitê de Imprensa do Palácio do Planalto que, conforme hábito da Nova República, tinha sido sorteada para viajar como convidada na comitiva do presidente. Tratava-se de Memélia Moreira, do Jornal de Brasília, sobrinha do ex-deputado Neiva Moreira, cuja família tivera, no passado, íntima ligação com os Sarney, no Maranhão. Foi convocado o fotógrafo da Presidência, Gervásio Batista, para uma foto dos dois. Sarney brincou:


— É a primeira vez no vôo presidencial que dois maranhenses estão juntos. E isso, pela lei das probabilidades, não vai acontecer tão cedo de novo.


Sarney perguntou pelo irmão de Memélia, Antonio, que sofrera um enfarte em 1984. E, respondendo a uma pergunta sobre o que o preocupava mais, a crise do PMDB ou a inflação, ele disparou, apontando para os políticos no avião:


— Crise? Que crise? Olha o pessoal aí... Não tem crise, são conflitos normais numa sociedade democrática.


— E a inflação, presidente?


— E o nosso fantasma.


— E daí? — insistiu a repórter.


— Daí que nós vamos resolver isso já.


O APOIO DE SIMONSEN


Se as idéias dos economistas da PUC-Rio não comoviam o ministro Dornelles, nem por isso seus formuladores passariam ao largo das atenções do governo. Chico Lopes, por exemplo, impressionara favoravelmente a Tancredo naquele encontro de novembro. Um pouco mais tarde, fora a vez de André bater com cautela na tecla da heterodoxia junto ao presidente eleito, em jantar na casa do deputado mineiro José Aparecido, futuro ministro da Cultura e, mais tarde, governador do Distrito Federal. Da mesma forma que Chico, suas raízes mineiras certamente ajudaram a pavimentar o caminho até Tancredo. André é filho do escritor Otto Lara Resende e neto do ex-governador de Minas e construtor de Brasília, Israel Pinheiro. Como resultado, Dornelles, citando expressamente recomendação de Tancredo para "aproveitá-los" no futuro governo, convidou ambos para a Comissão de Valores Mobiliários, o órgão disciplinador das Bolsas de Valores. O convite foi polidamente recusado. "Mas eu quero uma assessoria de vocês", disse Dornelles. "A gente dá essa assessoria, ajuda o governo Tancredo, mas não precisamos de cargos para isso", respondeu Chico.


A verdade é que André, por essa época, estava, conforme admitiria em particular mais tarde, "irritadíssimo com o alto grau de incompreensão" gerado por seu artigo na Gazeta, inclusive entre técnicos próximos a Dornelles. O ex-ministro da Fazenda e do Planejamento Mário Henrique Simonsen, ex-professor de André, já declaradamente adepto dos principais contornos da Proposta Larida, procurou consolá-lo:


— Ninguém entendeu sua proposta, André. A inflação vai precisar chegar a 900% para que eles façam essa reforma. Aí, vão fazer correndo.


"A inflação vai precisar chegar a 900% para que eles façam essa reforma", disse Simonsen a André. O ex-ministro já se convertera à idéia do choque

Dornelles, coerente em rechaçar a heterodoxia, já havia devidamente engavetado as sugestões de desindexação surgidas em outra frente — na Copag, a Comissão para o Plano de Ação do Governo, o organismo coordenado pelo secretário do Planejamento de São Paulo, José Serra, que reunia propostas para o futuro governo Tancredo. No âmbito da Copag, e mais especificamente no campo do sistema financeiro, esse debate sobre desindexação tinha contado com a participação de outro elemento que mais tarde se tornaria um dos sete homens de ouro do pacote econômico: Luiz Carlos Mendonça de Barros, um engenheiro de 43 anos formado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.


Ao longo dos anos, esse inveterado fumante de cachimbos, pai de três filhos e detentor de vastos bigodes grisalhos que o fazem parecer menos jovem do que é, se especializara em finanças, cursara a Fundação Getúlio Vargas e integrara um grupo de acompanhamento de conjuntura econômica do Cebrap — o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, pólo gerador de idéias da ala progressista do PMDB de São Paulo. Luiz Carlos, por indicação do economista Luís Paulo Rosenberg, então assessor econômico do presidente Sarney, e credenciado por seu trabalho junto ao PMDB, acabou sendo designado para a diretoria de Mercado de Capitais do Banco Central. Ali, discreto desindexador, manteve-se à espera de dias melhores para a idéia. Tinha um forte aliado: André Lara Resende, que após a indicação recusada para a CVM aceitara assumir a Diretoria de Dívida Pública do Banco Central.


Os dois haviam se conhecido meses antes durante um debate promovido pelo jornal Folha de S. Paulo, e rapidamente viram que suas idéias se aproximavam. Oriundos de confortáveis posições na iniciativa privada — André era diretor do Banco Garantia; Luiz Carlos, sócio de uma empresa de consultoria, a MBE, e de uma corretora, a Planibank —, eles achavam que o ônus, inclusive financeiro, de trabalhar para o governo só compensava caso se pudesse de alguma forma promover um debate interno sobre como alterar radicalmente a política econômica que vinha sendo conduzida ao longo do regime militar. "Somos do PMDB e não podemos fazer o que já se vem fazendo", constatou Luiz Carlos. O tempo lhe daria razão.


Quinta-feira, 27/2/86, 16h20. Quando o Boeing presidencial aterrissou de volta a Brasília, embora o mercado financeiro em São Paulo e Rio já se mostrasse afetado pelos rumores sobre uma reforma econômica, a multidão de jornalistas que aguardava o presidente estava com a preocupação imediata de checar os boatos sobre a substituição do ministro Pazzianotto. Essa era uma das notícias falsas que o SNI estava ajudando a espalhar, como parte da estratégia de desviar a atenção geral para o que efetivamente estava correndo no coração do poder: o parto do pacote econômico. O êxito do pacote em boa parte dependia do sigilo até o fechamento do expediente dos bancos, às 16h30, a que se seguiria o feriado bancário do dia seguinte e, depois, o fim de semana. Contrariando o protocolo, o chefe do Gabinete Civil da Presidência, Marco Maciel, envolvido na intensa logística da reforma, não estava ao pé da escada para receber o presidente, esperado no entanto pelo chefe do SNI, general Ivan de Souza Mendes. Com o semblante levemente carregado, e sem dar decorações, Sarney embarcou no Landau presidencial, que zarpou, célere, para o Alvorada. Muito trabalho ainda esperava o presidente, deste final de tarde até a madrugada.


"VOCÊ ESTÃO MALUCOS"


Se a oposição de Dornelles à desindexação da economia perturbava os planos de jovens economistas dispostos a colaborar coma Nova República, imaginem-se as dificuldades do ministro do Planejamento, João Sayad. Em boa medida por ter herdado, no governo Sarney, uma preeminência que a proximidade com Tancredo lhe assegurara, em parte pelo conjunto de poderes decisórios que o Ministério da Fazenda institucionalmente enfeixa, o fato é que Dornelles, mesmo com Tancredo morto, era o czar inquestionável da condução da política econômica. Nem por isso, porém, Sayad deixou de lutar para assegurar um espaço às idéias que, com o Plano Cruzado, acabariam vingando.


Depois do sinal verde para estudar a questão recebido de Sarney naquele despacho em abril de 1985, Sayad começou o que, na intimidade, costuma chamar de "minha peregrinação". Não por acaso, o ministro pinçara para a Secretaria de Coordenação Econômica e Social da Seplan justamente Pérsio Arida. Ele prestara serviços de consultoria a Sayad ainda no governo de São Paulo e acabava de regressar de uma bolsa de estudos na prestigiosa Smithsonian Institution, em Washington. Essa Secretaria, na verdade, era uma forma de Sayad ter a seu lado um livre atirador intelectual, sem rotina burocrática obrigatória: além de algumas salas e telefones na sede da Seplan, tudo de que ela dispunha como quadros eram duas secretárias e um único funcionário, requisitado ao Banco Central. A Pérsio, assim, o ministro encomendou o que passou a chamar de uma "etapologia" para a desindexação: um cronograma com o que seriam as providências concretas a serem adotadas, passo a passo, até a meta final.


A peregrinação de Sayad passaria pelo ex-ministro Mário Henrique Simonsen — que, embora condestável da Velha República no passado, mantinha coerentemente seu apoio às novas idéias, com certeza porque ele próprio, quase vinte anos antes, investigara teoricamente na mesma direção. Num almoço com Simonsen no Hotel Méridien, no Rio, em maio de 1985, Sayad solicitou que o ex-ministro utilizasse sua influência junto a Dornelles, seu ex-colaborador, para que a desindexação fosse encarada como uma opção real.


— Ministro — disse Sayad durante o almoço, contrariando um pedido de Simonsen para que não mais lhe desse este tratamento —, você precisa falar lá com o seu amigo.


Dornelles, porém, estava envolvido numa estratégia ortodoxa de combate à alta dos preços. Esta incluía medidas como enxugar a demanda pela elevação da taxa de juros ou um freio nos reajustes de uma série de tarifas de empresas públicas —uma linha a que Sayad frontalmente se opunha. A conversa Simonsen-Dornelles deu em nada. Nesse contexto, não era surpresa que a temperatura da equipe econômica volta e meia se elevasse. Sayad via-se compelido a tratar metaforicamente seus pontos de vista. Certa feita, ao insistir num reajuste mais freqüente de tarifas, considerou a medida necessária como forma de "fazer a coisa lá do Simonsen". Numa reunião mais ampla em que o pessoal de Sayad tocou no tema desindexação, Dornelles perdeu a paciência:


— Vocês estão malucos. Isso não é brincadeira. Estou falando sério.


Em outra oportunidade, quando Sayad explicou a Luís Paulo Rosenberg o critério de reajuste salarial pela média, com base em tabela de conversão, recebeu como resposta:


— Isso é arrocho, Sayad.


O ministro do Planejamento não voltara a abordar o tema com o presidente da República desde o sinal verde de abril. Ele pediu então ao genro e secretário de Sarney, Jorge Murad, que o levasse para uma conversa longa com o sogro numa noite de maio, no Palácio do Jaburu, residência do vice-presidente — Sarney ainda não se mudara para o Alvorada. A conversa, de que participaram também Rosenberg, Murad e Roseana Sarney Murad, filha do presidente e mulher de Jorge, não pôde ser tão extensa como Sayad pretendia. Numa sala ao lado, esperavam para jantar com o presidente o editor do Jornal do Brasil, Marcos Sá Corrêa, e seu pai, Villas-Boas Corrêa, comentarista político do jornal. Mas Sarney terminou animando-o quanto a seus planos e sua equipe: "Gosto de trabalhar com jovens, Sayad". O ministro, por insistência de dona Marly, mulher do presidente, jantou com a família, e saiu dali com uma reconfortante certeza: Jorge Murad e Roseana tinham ficado claramente convencidos da necessidade de um Plano Cruzado.


Nos despachos seguintes com o presidente, Sarney revelou-se crescentemente interessado na questão e familiarizado com seus detalhes e até sua terminologia. Até que, um dia, ele próprio sugeriu a Sayad:


— Por que você não manda alguém de sua confiança a Israel, ver as reformas que eles fizeram por lá?


Em duas etapas, dezembro de 1984 e junho de 1985, o governo israelense fizera duas tentativas de desindexar a economia. A segunda estava dando certo. A tarefa de estudá-las caiu como uma luva no aplicado, meticuloso Pérsio, cujo ar juvenil é contrabalançado por fundas olheiras e esparsos fios grisalhos nos cabelos. Em primeiro lugar, havia a familiaridade técnica: boa parte da paternidade da estratégia de ataque à inflação inercial lhe pertencia. Além disso, Pérsio não tinha entraves burocráticos e vivia uma rotina de viagens ao exterior que afastaria eventuais suspeitas: só naqueles poucos meses de governo, ele já se licenciara da Seplan duas vezes, para conferências nos EUA e na Finlândia. Fazer o mesmo em Israel seria um pretexto perfeito. (A ida de outro homem de Sayad, Edmar Bacha, presidente da Fundação Instituto Brasileiro de. Geografia e Estatística — IBGE —, chegou também a ser cogitada. Mas considerou-se que o risco de ruptura do sigilo não recomendava a viagem.) Finalmente, Pérsio conhecia, graças a suas ligações no mundo acadêmico, diversos economistas de Israel, inclusive Michael Bruno, assessor do ministro israelense das Finanças.


Pérsio viajou sem ser percebido, passou 12 dias em Israel em junho, sobretudo em Jerusalém, sede do governo. Antes, fez uma escala de dois dias em Paris para um "banho de Israel" com um amigo e ex-aluno que lá vivera: Carlos Vinograd, argentino de origem judaica e profundo conhecedor do país. De Israel, o cidadão Pérsio voltou com o plano de um dia regressar como turista com a mulher, Suzi. Seu único dia livre no período, um sábado, foi passado entre documentos e anotações no hotel, e os poucos passeios por Jerusalém, "uma cidade impressionante", deram-se sobretudo à noite. Já o assessor Pérsio trouxe na bagagem uma valiosa experiência dos inúmeros contatos — feitos sempre em inglês, um dos seis idiomas que ele domina — com economistas, empresários, sindicalistas e assessores do governo. A primeira reforma israelense naufragara pela ausência do fator surpresa: quando empresários, empregados e o governo começaram, em novembro de 1984, a discutir um pacto social em torno de uma mesa, os empresários perceberam que seria inevitável um congelamento de preços — e, quando a reforma foi finalmente adotada, quatro semanas depois, a inflação voara de 15% para 25% ao mês.


De sua missão secreta em Israel, Pérsio trouxe uma certeza: um tratamento de choque não daria certo sem a utilização do fator surpresa

Além disso, a falta de uma ação coordenada a nível de governo levou a várias distorções. O Banco Central, por exemplo, previu para o primeiro mês depois do congelamento uma inflação de 9%, e promoveu uma correspondente desvalorização da moeda. Como a inflação na verdade chegou perto de zero, o que ocorreu foi quase uma maxidesvalorização, que encareceu grandemente as importações do país e ajudou a empurrar de novo os preços para cima. (Só na segunda reforma, em julho de 1985, é que essas distorções foram corrigidas, além de, junto ao congelamento de preços, ter sido decretada uma reforma monetária.) Essas observações seriam valiosas para o futuro Plano Cruzado.


Quinta-feira, 27/2/86, 18h00. O presidente José Sarney, mal chegou ao Alvorada, convocou para uma conversa os três ministros militares e o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. Esses ministros já haviam recebido do presidente e do ministro Dilson Funaro notícias gerais sobre o pacote no fim de semana anterior, e apoiavam as medidas sem restrições. A preocupação dos militares com a aceleração inflacionária era tanta que o ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves, havia levantado a questão na primeira reunião do novo Ministério, há exatamente uma semana. Com o Plano Alfa sob rigoroso sigilo, o ministro Funaro resumiu para Leônidas o elenco de medidas convencionais que o governo vinha adotando para conter os preços, mas deixou claro que havia um grande obstáculo no rumo da estabilidade: a indexação formal e generalizada da economia. Ponderou, contudo, que se tratava de problema extremamente complexo e delicado.


Leônidas foi o primeiro ministro a chegar ao Alvorada, um pouco antes das 19 horas. Logo se juntariam a ele o almirante José Maria do Amaral, chefe do EMFA, o brigadeiro Octavio Moreira Lima, da Aeronáutica, e o almirante Henrique Sabóia, da Marinha. Até as 20 horas, o que se analisou foram as possíveis repercussões do plano junto à opinião pública, especialmente nos grandes centros, e, mais especificamente, seus reflexos sobre os programas financeiros das Forças Armadas: a Marinha tem um programa de construção de fragatas e de início da produção de submarinos, e o Exército está às voltas com um ambicioso Plano de Reequipamento e Modernização, o chamado FT-90.


Pouco depois que os ministros militares deixaram o palácio, o presidente mandou chamar, no Planalto, o jornalista Joaquim Campelo Marques para vir trabalhar no histórico discurso que leria na manhã seguinte, às 9h30, para toda a nação. O presidentejá estava com um esboço que, a seu pedido, lhe fora trazido pelo ministro Dilson Funaro e, ao longo do dia, tinha sido produzido no 5.° andar do Ministério da Fazenda pelos seus dois principais colaboradores: Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, 43 anos, secretário especial para assuntos econômicos do Ministério, e João Manoel Cardoso de Mello, 43 anos, assessor especial. Mas Sarney queria a cooperação de Campelo, 54 anos, seu amigo de adolescência, desde a época do ginásio marista de São Luís, no Maranhão.


Um homem magro, moreno e de barba grisalha, Campeio foi durante cinco anos assistente do acadêmico Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira na elaboração do Dicionário Aurélio e era há mais de vinte anos redator do jornal do Brasil no Rio quando foi convidado por Sarney para trabalhar na Vice-Presidência, em Brasília. Com a posse de Sarney na Presidência, viu-se instalado no 2.° andar do Planalto como "adjunto de assessor". Na prática, atende pessoalmente o presidente na elaboração dos discursos. Convocado naquela noite, convidou para acompanhá-lo a datilógrafa Jocenir Maria Martins da Silva, a Jô, há 15 anos funcionária da Presidência. A mesma Jô que, no dia 21 de abril de 1985, fora chamada na casa em que mora só no bairro do Cruzeiro Novo, para datilografar, com lágrimas nos olhos, o discurso que o presidente José Sarney faria em rede nacional de rádio e TV pouco depois da morte de Tancredo Neves.


Os dois funcionários seguiram para o Alvorada em seus carros: Jô em sua Brasília bege, Campelo na raridade que conserva em sua garagem — um Aero-Willys Itamaraty 1966, cor ouro velho, com apenas 30.000 quilômetros rodados.


O GRUPO SE ENTENDE


A queda de Dornelles ocorreu em 26 de agosto de 1985, na esteira de duras críticas ao governo feitas por seu secretário-geral, Sebastião Vidal, numa reunião com empresários. Com Dornelles fora, Sarney trouxe ao seio do governo um elemento essencial para que Pérsio Arida pusesse em prática as observações feitas em Israel: o ministro Dilson Funaro. Já na sua concorrida posse em Brasília, Chico Lopes, presente, ouviu do ministro uma frase-chave:


— Esse tal de choque eu topo fazer.


Dias depois, após um debate no Clube de Engenharia, no Rio, e enquanto almoçavam, Chico e André Lara Resende chegaram à conclusão de que, tal como ocorrera na Argentina, talvez fosse útil formar um grupo de estudos para construir uma opção de choque heterodoxo quando fosse preciso usá-lo — e ambos estavam mais do que convencidos de que seria, mais cedo ou mais tarde.


ida de Funaro para o governo foi vital à reforma. Já na sua posse, o economista Chico Lopes ouviu do ministro: "Esse tal de choque eu topo fazer"

Já em Brasília, onde passa de dois a três dias por semana — a sede de sua diretoria fica num maltratado edifício na Avenida Rio Branco, no Rio —, André resolveu telefonar para Belluzzo. A conversa girou em torno da preocupação comum com o déficit público, com a inflação virtualmente fora de controle, com a ineficácia dos remédios tradicionais. Belluzzo propôs um contato pessoal, e André foi visitá-lo no 3.° andar do Ministério da Fazenda. Como o ministro Funaro já queria promover uma reforma fiscal (o "pacote" que o Congresso aprovaria em novembro), era mesmo necessário criar um grupo para estudar a mensuração do déficit público — um monstro que a indexação tornava a cada dia mais assustador.


Ali ficou combinada, portanto, uma reunião para o dia 10 de setembro de 1985, no amplo apartamento funcional do Bloco F da Superquadra Sul 312 que Belluzzo divide com seu velho amigo e colega de atividades na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), João Manoel — e que, segundo este costuma dizer, do alto de seu 1,90 metro de bom humor, tem "uma decoração típica de agência bancária". André, detentor, na avaliação de um de seus colegas de pacote econômico, de "um charme pessoal enorme", começava ali o seu papel de "produtor" do grupo informal que, do estudo do déficit público, não tardaria a evoluir para o choque heterodoxo. Foi André quem agendou o primeiro encontro, propondo inclusive os participantes: além de Belluzzo, João Manoel e ele próprio, também Pérsio Arida, Luiz Carlos Mendonça de Barros e Chico Lopes.


Com cafezinho providenciado pela empregada Cleuza, foi uma reunião informalíssima — tão informal, na verdade, que sequer se gastou dinheiro público com as passagens para Chico Lopes viajar a Brasília: ele se utilizou de bilhetes remanescentes de suas freqüentes deslocações profissionais pelo país. Nem todos os participantes se conheciam, e visivelmente o principal interesse de todos era saber a opinião dos demais. Resolveu-se ampliar o grupo, incorporando-se a ele Andrea Calabi, 39 anos, então secretário-geral da Seplan, professor de Economia na USP com doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley e amigo de infância de Sayad no bairro do Pacaembu, em São Paulo; e, sempre que possível, Edmar Bacha, 42 anos, o presidente do IBGE, também do grupo da PUC-Rio e com diversas passagens acadêmicas pelo exterior. Combinou-se, também, cercar o trabalho de absoluto sigilo.


As primeiras abordagens, ainda sem qualquer texto-base redigido, foram um tanto delicadas, pois a base teórica do projeto estava na maior parte com os economistas da PUC-Rio, e no grupo havia membros de duas outras correntes econômicas importantes no Brasil: a da Unicamp e a do Instituto de Pesquisas Econômicas da USP. Já haviam ocorrido, no passado, estocadas acadêmicas recíprocas entre membros desses grupos. Na mesma reunião da Associação Nacional dos Pós-Graduados em Economia (Anpec) em que Chico Lopes disseminara de forma mais organizada a idéia do choque heterodoxo, por exemplo, Belluzzo havia produzido, com a professora Maria da Conceição Tavares, da Unicamp e da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um paper criticando a visão de inflação inercial de André Lara Resende. Em seus trabalhos, por seu lado, André e Pérsio haviam feito críticas ao congelamento de preços, que outros do grupo achavam essencial.


Mas nas novas reuniões que se sucederam, inicialmente às terças à noite no apartamento de Belluzzo, os conceitos foram se aproximando e se harmonizando rapidamente. Havia um sólido terreno comum, conforme lembra Belluzzo: todos tinham, àquela altura, diagnóstico distante do tradicional, achando que qualquer tratamento para a inflação tinha que ser à base de medidas heróicas; e todos reconheciam o componente financeiro da inflação — ou seja, a tendência de se embutir nos preços um componente de inflação futura. "Levamos dois meses para acertar entre nós conceitos básicos", lembra Mendonça de Barros. "Ninguém teve divergências ou fez discussão a nível livresco", atesta João Manoel. "Houve uma espécie de graça", conta André. "No momento em que nós soubemos exatamente do que estávamos falando, nos identificamos plenamente."


Até então, conforme reconhece um ministro envolvido na operação, "os ministros econômicos não apareciam, para não gerar ciúmes", sendo desde o primeiro momento informados por seus assessores. Sarney, em seus despachos com Funaro e Sayad, acompanhava cada movimento. O presidente insistia no sigilo absoluto: nem os outros ministros deveriam, ainda, saber de nada.


Quinta-feira, 27/2/86, 21h15. Quando. Joaquim Campeio chegou ao Alvorada naquela noite pode ver, ainda por um dos vidros da fachada frontal do palácio, que o presidente, sozinho, trabalhava na sala da ajudância de ordens de dona Marly — uma sala com duas mesas e máquinas de escrever elétricas, uma estante e dou arquivos de aço. Extremamente cioso da solenidade que o cargo deve conter, o presidente estava no entanto se permitindo trabalhar de camisa social, sem paletó e sem gravata, e batia em silêncio, ele próprio, a uma máquina elétrica. O assessor entrou no palácio, passou por uma sala de espera e por outra saleta e, ao chegar à porta da ajudância, cumprimentou o presidente. Concentrado no trabalho, Sarney disse apenas:


— Oi, Campeio.


Roseana e dona Marly vez por outra passavam onde o presidente trabalhava, voltando em seguida para a biblioteca do palácio, contígua à ajudância. Ali, um grupo de ministros e assessores estava reunido. Roseana chegou a atender a um telefonema do senador Fernando Henrique Cardoso, do PMDB de São Paulo, que ainda na véspera concedera uma entrevista ao Jornal do Brasil criticando duramente o governo e o próprio presidente. Informado de que Sarney trabalhava, o senador ficou de telefonar mau tarde.


Eram 23h30 quando o presidente passou à biblioteca trazendo à mão o texto do pronunciamento mais importante de sua carreira política. Dirigindo-se aos presentes, convidou:


— Eu já acabei. Vamos ver o discurso?


OS SEGREDOS E O "PLANO BETA"


Em outubro de 1985, a informalidade do grupo que estudava o pacote econômico, se tinha suas vantagens, acabou trazendo um certo grau de desorganização aos trabalhos. A certa altura, Chico Lopes interveio:


— Pessoal, desse jeito não vai.


Ficou decidido, então, que Chico e André fariam um esboço de decreto-lei para servir como base para as discussões. Depois de dois dias, uma quinta e uma sexta-feira, trancados no gabinete de André no BC no Rio, o esboço ficou pronto. Em alguns pontos, aproveitava trechos do Plano Austral argentino. Era ainda bastante diferente do futuro Plano Cruzado — sendo uma proposta de reforma monetária, não continha bens fundamentais mais tarde adotados, como a escala móvel para reajustes de salários e o abono de 8% para todos os trabalhadores. Mas lá estavam a nova moeda — com o nome "cruzado", que mais tarde obteria a simpatia do presidente —, a idéia de conversão para achar a média real de salários, aluguéis e prestações do BNH, e a livre negociação de salários em base anual.


Foi a essa altura, já em novembro, que, pela primeira entre muitas vezes, um ministro se reuniu com o grupo. Pronto o trabalho, Sayad quis vê-lo e convocou uma reunião em sua residência oficial — uma ampla casa térrea com piscina e churrasqueira, vizinha à do ministro Funaro, na QI 12, conjunto 17, no Lago Sul. Já com algumas alterações propostas pelo grupo, o documento foi mostrado. Um dos economistas disse:


— Está aí um esboço, Sayad. Se o governo quiser mesmo, dá para fazer a reforma.


O governo queria. Tanto é que Funaro designou o presidente do Banco Central, o advogado Fernão Bracher, para participar das reuniões. Do apartamento de Belluzzo e João Manoel e, vez por outra, da residência oficial que André e Luiz Carlos compartilham na QI 5 do Lago Sul, os encontros passaram a ser feitos na casa brasiliense do próprio Bracher, também no Lago Sul. "Aí a coisa ficou mais oficial", lembra Pérsio. Sempre às terças-feiras, todos começavam a noite conversando na varanda de Bracher, jantavam juntos — "belos jantares", recorda Calabi — e, depois, retirada a toalha da mesa, começavam a trabalhar com o vasto estoque de material de escritório que Bracher trouxera do BC.


Mudou-se também o papel de coordenação: de André, a função passaria a Pérsio, cujo cargo na Seplan lhe permitia flexibilidade para dedicação integral. Pérsio, mesmo abalado pela leucemia que acometera seu pai, Riad (que viria a morrer em abril de 1986), atirou-se com energia à tarefa, organizando grupos de trabalho por tarefa: André e Luiz Carlos, por exemplo, discutiam principalmente questões básicas de mercado financeiro; ele próprio inclinou-se mais para o déficit público e, com Bacha, estudava o problema dos índices de preços; João Manoel voltava-se mais para abastecimento, e assim sucessivamente. Mas todos repassavam tudo: "Copiamos a fórmula de trabalho da diretoria do Bradesco, com todos em volta de uma mesma mesa", lembra Luiz Carlos.


Outra decisão que teve que ser adotada, em nome do sigilo, foi a de afastar do grupo Chico Lopes e Eduardo Modiano, colaborador eventual do grupo, que, além de colega na PUC, é sócio de Chico na empresa de consultoria Macromédia, no Rio. Os dois, mas especialmente Chico, estavam vinculados em demasia ao conceito de choque heterodoxo, sobretudo depois do sucesso do Plano Austral argentino. André, de todo modo, informou a Chico que os trabalhos continuariam e o preveniu:


— Você fica na moita que eu vou te chamar na hora mais adequada.


"Sabemos que o Chico ficou muito ressentido", reconhece um de seus colegas do governo, "mas não havia outro jeito." De fato, ele já era, àquela altura, chamado bem-humoradamente de "Chico Heterodoxo" pelos conhecidos, e chegou a ser identificado por um jornalista ao sair um dia do elevador privativo do ministro da Fazenda, em Brasília — embora, a bem da verdade, estivesse ali para uma rápida troca de palavras sobre outro assunto com João Batista de Abreu, secretário-geral do Ministério. A solução foi fingir que era um engano e fazer-se passar por outra pessoa. A preocupação com o sigilo, aliás, era tanta, que nem a mulher de Fernão Bracher, Sônia, que tantas vezes preparou a casa para as reuniões do grupo, sabia do que era tratado à mesa de jantar. Diariamente, cada integrante da força-tarefa acostumou-se a correr para os jornais com um frio na barriga, temendo algum vazamento. De seu posto no BC, Luiz Carlos mantinha um meticuloso acompanhamento nas cotações do dólar no mercado paralelo, outro sensível detector de quaisquer rumores econômicos.


O despiste levou a várias operações de contorcionismo pessoal. Belluzzo, por exemplo, conselheiro e torcedor fanático do Palmeiras a ponto de já ter abandonado sua enorme afabilidade para desferir guarda-chuvadas em torcedores rivais num estádio, teve dificuldades um certo domingo para driblar o pai e o irmão, que estranhavam sua ausência num Palmeiras x Internacional de Limeira. Enquanto o jogo se realizava no estádio do Parque Antártica, no apartamento de três dormitórios de Belluzzo na Alameda Itu, nos Jardins, em São Paulo, já se redigia o projeto de decreto-lei da reforma e a cartilha explicativa que o governo simultaneamente divulgaria. Edmar Bacha, por seu turno, numa etapa posterior do trabalho, precisou faltar a uma reunião com o próprio presidente da República numa segunda-feira para aplacar descontentamentos domésticos: ele foi ao batizado do filho caçula, Carlos Eduardo, em Belo Horizonte, e no dia seguinte levou a família de volta ao Rio de automóvel.


De outra feita, num jantar na casa de Bracher em São Paulo, Pérsio Arida chegou ao ponto de jurar que havia "renegado suas idéias" diante de três interlocutores convencidos de que já havia condições para um choque heterodoxo no país: Rudiger Dornbusch, o professor do MIT, em visita ao Brasil, Luiz Carlos Bresser Pereira, economista e, chefe da Casa Civil do governador Franco Montoro, e Daniel Dantas, diretor do Bradesco. Bracher, por sua vez, assegurava que sua "prudência de banqueiro" lhe indicava a queda da inflação por métodos gradualistas.


Pérsio protagonizou outros episódios da estratégia de despiste. Na sua tarefa de coordenador, ele elaborava as agendas das discussões do grupo, redigia memorandos, fazia simulações, sumários e atas — mas datilografava tudo pessoalmente no micro que mantém em sua casa no bairro de Cidade Jardim, em São Paulo. Quando um outro micro foi instalado próximo a seu gabinete na Seplan, passou a usá-lo — mas retirava cuidadosamente os disquetes de memória e os levava consigo. Até as cópias dos textos ele providenciava pessoalmente, não sem antes expulsar da sala de xerox os office-boys da Seplan. As cópias eram distribuídas, lidas e recolhidas novamente por Pérsio. "Nunca havia cópias flutuantes", atesta um dos economistas. "Não podíamos facilitar de jeito nenhum."


Enquanto os economistas trabalhavam no pacote — chegou a haver reuniões também nas casas de Funaro e Sayad em Brasília e nas representações do BC e da. Seplan no Rio —, Funaro, com sua inesgotável energia, tomava medidas preventivas que tanto poderiam servir para conter a inflação em patamares digeríveis como abrir caminho para algum tipo de tratamento de choque. Pouca gente sabe até hoje que essas medidas preparatórias do Plano Alfa eram conhecidas, dentro da equipe econômica, como Plano Beta. "Apesar de beta vir depois de alfa no alfabeto grego", brinca Calabi, "foi feito antes, e de forma diluída." O Plano Beta começou a ser formulado em outubro, na casa de Mendonça de Barros em São Paulo.


Foi assim que, passo a passo, aprovou-se no Congresso o pacote fiscal que virtualmente eliminou o déficit operacional do governo (a diferença entre o que o governo gasta e arrecada no dia-a-dia); constituiu-se um nível adequado de reservas em moeda forte; e unificaram-se todos os índices de medição de preços num só, o IPCA. Além disso, como parte do Plano Beta, o governo permitira um aumento mais generoso nos salários dos funcionários das estatais — quando o pacote chegasse, eles estariam num patamar mais razoável para suportar os novos critérios de reajuste. Chegou-se a pensar numa data para o pacote: 2 de janeiro.


Quinta-feira, 27/2/86, 23h30. O grupo reunido na biblioteca do Alvorada incluía dona Marly Sarney, que chegara há pouco menos de uma hora de uma viagem ao Rio e trazia ao colo a neta Rafaela — filha de Roseana —, _a própria Roseana, seu marido, Jorge Murad, o ministro dos Transportes, José Reynaldo Tavares, conterrâneo de Sarney, seu chefe de gabinete, José Roberto de Almeida Neves, o ministro Marco Maciel e, recém-chegados no mesmo automóvel, o ministro José Hugo, da Indústria e do Comércio, e o consultor-geral da República, Saulo Ramos.


O próprio presidente começou a ler para os presentes, sentado à cabeceira da mesa de reuniões da biblioteca, e anotava a lápis os apartes e sugestões — a maioria de Roseana, sentada à esquerda do presidente. Saulo Ramos, irrequieto e fumando muito, caminhava de um lado a outro. Em meio ao trabalho, tocou novamente o telefone. Roseana foi atender:


— Papai, é o Fernando Henrique — disse.


— Deixa que eu atendo — respondeu o presidente.


O senador estava preocupado com o impacto de sua entrevista criticando o governo e, soube-se depois, disse ao presidente que aquilo representava apenas "o lado amargo" de sua opinião. Naquele momento, porém, na biblioteca do Palácio, naturalmente só foi possível ouvir o que Sarney dizia, num diálogo que durou um minuto e meio:


— Nós já estamos em outra, Fernando... Esqueça... Essas coisas são assim mesmo... Eu já esqueci isso... Eu estou preocupado é com a sua saúde. [Fernando Henrique estava se submetendo a exames para detectar a origem de uma pequena hemorragia abdominal.] Você está melhor?... Um abraço pra você, então.


Voltou-se ao discurso.


"TRABALHEM DIA E NOITE"


Em dezembro de 1985, no momento em que a data de 2 de janeiro chegou a ser aventada, Funaro decidiu despachar Belluzzo para mais uma conferida em como ia o Plano Austral na Argentina. Belluzzo, em junho, mesmo antes de integrar o governo, já passara uma semana estudando o choque argentino, e tivera contatos, entre outros, com Roberto Frenkel e José Luís Machinea. Se em junho fora só, em dezembro viajaria duas vezes a Buenos Aires, a pretexto de preparar a participação de Funaro na reunião do Grupo de Cartagena*, que se realizaria a partir do dia 18 em Montevidéu, no Uruguai, na companhia do economista Paulo Nogueira Batista Júnior, secretário especial de assuntos econômicos da Seplan, e de Alvaro Alencar, assessor de assuntos internacionais do Ministério da Fazenda. Em Buenos Aires, hospedado no mesmo hotel Bizonte da primeira viagem, na esquina das ruas Paraguay e Libertad ("uma contradição em termos", ironiza Belluzzo), ele mergulhou em relatórios e documentos do Ministério da Economia, assessorado sobretudo por Mario Brotherson, seu ex-professor num curso da Cepal em São Paulo. Belluzzo voltou ao Brasil mais reforçado em suas convicções de que o governo brasileiro não deveria, como tinha feito o presidente Alfonsín, promover uma maxidesvalorização da moeda nem um reajuste geral de tarifas no serviço público junto com o pacote.


Uma série de turbulências, porém, atingiria o Plano Alfa justamente nesse fim de ano. Em primeiro lugar, a seca no Sul do país fez disparar os preços agrícolas e seria imprudente um pacote que incluía o congelamento coincidir com essa alta. Depois, um início de vazamento sobre a possibilidade de se adotar a desindexação — defendida como teoricamente necessária por Calabi, em conversa com jornalistas — obrigou o governo a acautelar-se, diante de um desassossego no mercado. Além disso, o plano foi golpeado pelas incertezas sobre a reforma ministerial — pois, se não havia qualquer dúvida sobre a permanência de Funaro, já então o mais poderoso ministro do governo, Sayad era apontado como candidato certo a sobrar em decorrência dos diversos acertos políticos em andamento.


Apesar de um desânimo momentâneo — houve quem passasse, dentro do grupo, a duvidar de que o governo promovesse a reforma, a começar de Edmar Bacha — se continuou trabalhando duro. Foi já em janeiro de 1986, por exemplo, que a equipe chegou a um consenso sobre como executar um ponto crucial do pacote: o congelamento de preços. Até então, o controle promovido pelo Conselho Interministerial de Preços (CIP) voltava-se sobretudo para os chamados preços interindustriais — ou seja, era um controle feito no meio do processo produtivo. Foi Pérsio Arida quem estudou mais detidamente o assunto e propôs o que seria depois adotado: que o congelamento, quando viesse, fosse rigorosamente feito sobre os preços finais que o consumidor paga. Isso obrigaria a indústria e o comércio a se entenderem sobre os custos financeiros embutidos em cada etapa.


De toda forma, continuava não havendo definições sobre datas. Não se chegou a um acordo, por exemplo, numa reunião ampla que Funaro convocou para sua casa em Brasília no dia 25 de janeiro, um sábado. Além do anfitrião e dos sete economistas do grupo, participaram ainda do encontro Sayad, Bracher, o chefe de gabinete de Funaro, Roberto Müller Filho, e o genro e secretário de Sarney, Jorge Murad. A imprensa chegou a documentar a reunião — que começou de forma extremamente informal, ao ar livre, com Sayad de bermudas e chinelos —, embora não suspeitasse de suas verdadeiras razões. Àquela altura, ainda havia dúvidas sobre a oportunidade do choque — tanto que, nos Ministérios econômicos,, discutia-se a possibilidade de expurgar do IPCA fatores de acidentalidade [componentes do índice que, em razão de.um acidente fortuito, como uma seca ou uma enchente, elevavam desproporcionalmente a taxa de inflação medida]. Funaro mostrava-se reticente: havia gente na área econômica que ainda acreditava em queda da inflação, passado o choque agrícola. Sayad venceu sua relutância — não queria que sua posição fosse confundida com a defesa de sua manutenção no governo — e defendeu a adoção imediata do pacote, em termos veementes. Um dos presentes à reunião chegou a comentar:


— Sayad, você está fazendo um discurso de oposição.


— Mas a tarefa de um governo é esta — respondeu o ministro, referindo-se ao combate à inflação.


Os próprios sete homens da reforma não se mostraram unânimes: André, Pérsio e Belluzzo eram pelo choque já; Bacha, Calabi, João Manoel e Mendonça de Barros não pareciam tão certos. Pelo menos um dos sete admite que as diferenças talvez tenham sido mais táticas do que efetivas: tratava-se de não dar a Jorge Murad a impressão de que se passaria um pacote pronto às mãos do presidente. Murad, de todo modo, foi capaz de manter o ânimo dos ministros econômicos, de Bracher e do grupo ao dizer, taxativo:


— O presidente da República vai fazer essa reforma. Só que não adianta levar para ele já. Temos que ter consenso.


A possibilidade até então existente de se fazer a reforma no Carnaval — 8 a 11 de fevereiro — foi afastada. Com isso, além de se ter perdido o prolongado feriado bancário, deixou-se passar a oportunidade de criar um "supercruzado": a ORTN, que começou o mês de fevereiro valendo 93 mil cruzeiros, estaria, no Carnaval, na faixa de exatos 100 mil cruzeiros, e poderia ser a nova unidade do sistema monetário.


Quando se decidiu não fazer a reforma no Carnaval, também se perdeu a chance de criar o "supercruzado", igual a exatamente uma ORTN

Funaro, contudo, impulsionou logo depois outro passo decisivo no Plano Beta — algo que nem os mais onipotentes ministros econômicos dos governos militares ousara colocar em cheque: a extinção da conta-movimento do Banco do Brasil. Tratava-se de um mecanismo pelo qual o banco cobria as despesas do Tesouro Nacional no dia-a-dia, houvesse ou não recursos, o que, na prática, significava emitir dinheiro sem controle do Banco Central. (Mais tarde, baixado o pacote, a medida seria complementada pela criação, no Ministério da Fazenda, da Secretaria do Tesouro, para a chefia da qual Calabi acabaria sendo transferido.)


Mas Murad tinha razão: Sarney queria mesmo a reforma. Resolvida a questão do Ministério, o presidente agiu com fulminante rapidez. O Ministério foi empossado na sexta-feira, 14 de fevereiro. Nesse mesmo dia, o presidente conversou com Funaro e falou-se em 28 de fevereiro. Já estava descartada outra das possíveis datas, o 30 de junho — até porque o governo já tinha sinais de que a inflação de fevereiro iria estourar de novo (acabou sendo de 14,3%). Era mesmo preciso agir. rapidamente, diante da deterioração da situação política. O PMDB, principal sustentáculo do governo no Congresso, apresentava sinais crescentes de rebelião, protestava — sem saber da gestação das reformas — por uma "inércia" do governo e via algumas de suas alas afastarem-se rumo a um flerte com o governador do Rio, Leonel Brizola.


Na segunda-feira, 17 de fevereiro, pela manhã, em reunião com Funaro, Sayad, Marco Maciel e os generais Ivan e Denys, o presidente ouviu temores de que o Congresso acabasse aprovando uma lei assegurando reajuste mensal de salários — o que levaria a inflação a alturas inimagináveis. Aí, finalmente, marcou-se a data: 28 de fevereiro. De volta ao Ministério da Fazenda, Funaro chamou Belluzzo e João Manoel e disse:


— O presidente decidiu fazer dia 28. Agora, vocês vão ter que trabalhar dia e noite nisso.


Sexta-feira, 28/2/86, 0h30. Na biblioteca do Palácio da Alvorada, terminada a leitura de seu discurso, o presidente deixou o rascunho para Roseana e Campelo incorporarem as anotações e emendas a um texto consolidado.


— Vamos fazer mais uma leitura — pediu o presidente. — Trabalhem para ver as dificuldades que ainda existem.


Leu-se também o texto final do decreto-lei, que Saulo trouxera consigo da Consultoria. Só havia a fazer pequenos acertos — um plural de "aluguel", por exemplo, que de "alugueres" passou a "aluguéis". O próprio presidente, em etapa anterior, havia cortado um "r" das ORTN fazendo nascer as OTN — sem correção monetária, argumentou ele, as Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional não mais seriam "reajustáveis". E, entre outras alterações de fundo no decreto, Sarney determinara a Saulo Ramos que o "gatilho" dos aumentos de salários fosse acionado quando a inflação atingisse 20%, fosse em que período fosse — o decreto, originalmente, falava em 20%, mas contados a partir da data-base de cada sindicato de trabalhadores. "Não é demagogia", argumentou o presidente. "Ou a reforma funciona como imaginamos, ou não funciona. E, se não funcionar, a primeira defesa tem que ser a do assalariado"**.


Uma leve refeição — sopa de ervilhas, sanduíches, água mineral, suco de laranja e café — foi a única pausa no trabalho. Todos estavam cansados, mas a jornada ainda não terminara. Examinado o decreto, Sarney rubricou todas as folhas. O histórico decreto-lei n.º 2.283 — mais tarde republicado, com modificações, como o n.º 2.284 — ainda viajaria dali, na grande pasta executiva de cromo preto de Saulo Ramos, até o Ministério da Fazenda, onde se examinavam as tabelas de conversão; seguiria depois para o Palácio do Planalto e, já quase ao amanhecer, passaria por mais uma revisão — feita por dois assessores jurídicos do Gabinete Civil — antes de finalmente aportar no Departamento de Imprensa Nacional, a 8 quilômetros de distância, para publicação no Diário Oficial. A partir daí, ele começaria a mudar a vida dos brasileiros.


"BANHO DE BICA" COM SARNEY


A partir de 17 de fevereiro, de fato, trabalhou-se dia e noite — alguns dos membros do grupo passaram a dormir de três a quatro horas a cada 24, e foi certamente nesse período que se agravou uma hérnia abdominal de Luiz Carlos e o organismo de Belluzzo ficou vulnerável à virose que o prostraria por uma semana, depois do pacote. O ritmo de trabalho tornou-se tão intenso que um certo dia Pérsio Arida chegou a seu apartamento às 3 da manhã e, depois de escovar os dentes, barbeou-se e começou a tomar banho como se tivesse acabado de acordar. Só debaixo do chuveiro deu-se conta de que, ao contrário, era hora de dormir. O episódio, é claro, foi motivo de gargalhadas entre o grupo, bem como a brincadeira de se chamar a nova moeda de "furney" — uma mistura de Funaro com Sarney.


Na mesma segunda-feira, 17 de fevereiro, na casa de Funaro, e na terça, 18, na casa de Bracher, a equipe econômica passou em minuciosa revista o que seria o plano e chegou a um completo acordo. "Todos vimos que o pacote fazia sentido", conta um dos participantes. Foi numa dessas reuniões que Sayad, elevando a voz, insistiu em que o governo deveria ter uma estratégia de relações-públicas para o Plano Cruzado.


— Esse programa não tem charme — dizia ele a Pérsio Arida. — Não pode ser coisa apenas técnica. Na Argentina, o que ganhou a opinião pública foi o discurso do Alfonsín.



O ministro achava que se deveria fazer, no dia do pacote, uma ofensiva de explicação direta do programa para economistas de fora ou em oposição ao governo:


— Vamos dizer a eles que precisamos de um mês de trégua, até ver os primeiros resultados do programa. Vamos dizer que, para eles, podemos ser filhos da puta, o que eles quiserem, mas que precisamos de um mês de trégua.


Nesse início de semana, Saulo Ramos incorporou-se à força-tarefa. Não era por acaso que era ele, e não a assessoria jurídica de um dos Ministérios econômicos, ou da Casa Civil, o jurista na operação. Titular de um grande escritório de advocacia em São Paulo, o ex-jornalista Saulo é amigo do presidente da República há 26 anos — a ponto de hospedar-se no Palácio da Alvorada quando ia a Brasília antes de integrar o governo e tomar "banho de bica" com o presidente, de calção, numa nascente do sítio de São José do Pericumã, que Sarney mantém próximo a Brasília. Ele já colaborara com o presidente em alguns casos — foi por exemplo o autor do projeto que se tornou o decreto-lei n.º 2.282, de novembro de 1985, que instituiu a correção monetária sobre os débitos das instituições financeiras em liquidação. No Carnaval, Sarney o convidou para ser o consultor-geral da República — principal assessor jurídico da Presidência —, em substituição ao ex-senador Paulo Brossard, que iria para o Ministério da Justiça.


— Vamos fazer uma revolução neste país — disse então o presidente, numa conversa no Alvorada. — Vou precisar de um embasamento jurídico sólido para as medidas que vou adotar e para as que virão depois, e também de sigilo absoluto. E eu confio em você nas duas coisas.


A primeira reunião de Saulo na terça, dia 18 de fevereiro, foi com Sayad e Pérsio Arida, em seu gabinete na Consultoria — uma grande sala bem iluminada e decorada com um retrato oficial de Sarney, um quadro do marechal Deodoro proclamando a República e um autógrafo, ampliado, de Ruy Barbosa em uma placa de latão. Para ilustrar os picos e quedas dos salários com uma inflação de 15% ao mês, Pérsio riscou a lápis gráficos improvisados. O grupo ainda não produzira um rascunho organizado para Saulo trabalhar — este pré-decreto, redigido sobretudo por João Manoel, Pérsio e André, só ficaria pronto no fim de semana seguinte, sobre a mesa de jantar do apartamento de Belluzzo em São Paulo.


Neste fim de semana de trabalho, iniciado na sexta-feira, 21 de fevereiro — o mesmo em que Belluzzo teve que renunciar a um jogo do Palmeiras —, também começaria a ser redigida por Belluzzo e Luiz Carlos a cartilha a ser divulgada junto com o pacote econômico. Quando o grupo quis consultar a cartilha adotada na Argentina, Belluzzo verificou que perdera o único exemplar que trouxera de Buenos Aires. Por precaução, André, que dispunha de uma em seu gabinete no Rio, resolveu não pedir a sua secretária, Suely, que a remetesse a São Paulo. Mas Belluzzo conservava cópias dos discursos feitos pelo presidente argentino Raúl Alfonsín e o ministro da Economia, Juan Sourrouille, no dia D do Plano Austral, e passou-as, a pedido, ao ministro Funaro.


Com a aproximação do Dia D brasileiro, a preocupação com o sigilo tornava-se obsessiva. Mesmo ao telefone, os membros do grupo falavam em código. Quando Funaro, no domingo, 23, convocou em São Paulo o grupo para a primeira reunião com o presidente em Brasília, no dia seguinte à noite, verificou-se que não havia vagas nos vôos comerciais e Pérsio Arida foi encarregado de providenciar transporte para a equipe. Belluzzo, algum tempo depois, telefonou para Pérsio:


— Como está o negócio do transporte?


Pensando tratar-se dos estudos sobre tarifas de transporte, Pérsio assustou-se:


— Ei, isso não é comigo. É com o Calabi.


O grupo todo que trabalhara em São Paulo, menos Luiz Carlos, que tinha consulta com o médico que o operaria da hérnia depois do pacote, embarcou na tarde de segunda-feira, 24 de fevereiro, no aeroporto de Guarulhos. Ali encontraram Alain Belda, o presidente da Alcoa, que poderia desconfiar vendo a equipe junta. "Tive que ficar conversando com ele sobre cultura contemporânea", lembra Belluzzo. A reunião de logo mais à noite com o presidente seria muito importante. Entre outros aspectos, havia um encarado com alguma expectativa pelo grupo, pelos ministros econômicos e pelo próprio Sarney: seria a primeira vez que o ministro do Trabalho, Almir Pazzianotto, tomaria pleno conhecimento do assunto. Ele fora informado sobre o pacote na sexta-feira anterior, por Dilson Funaro, durante o jantar oferecido pelo governador Franco Montoro no Palácio dos Bandeirantes por ocasião do casamento de seu filho Fernando. O governo encarava como vital o pleno apoio de Pazzianotto para o pacote ser aceito pelos trabalhadores e pela opinião pública.


Sexta-feira, 28/2/86, 1h10. O presidente da República ia se recolher. Esta estava sendo uma semana de muito poucas horas de sono, e às 7 horas desta sexta-feira Sarney já teria um café da manhã no Alvorada com os principais líderes do PMDB e do PFL, para explicar o pacote que seria anunciado eis 9h30. Ele agradeceu a cooperação de todos e disse a Roseana e Campelo, referindo-se ao discurso:


— Agora vocês continuem aí que eu vou deitar. Amanhã temos muita luta.


Ele se encaminhou para seus aposentos mas, antes, deteve-se em Saulo:


— E você, Saulo, o que é que vai fazer ainda hoje?


— Ainda tenho que passar no Ministério da Fazenda, Sarney. E você, vai dormir?


— Não, eu vou rezar — disse o presidente.


Saulo Ramos, naquela madrugada decisiva, perguntou a Sarney se ele ia dormir. O presidente respondeu: "Não, Saulo, eu vou rezar"

Os dois se abraçaram longamente, "daqueles abraços de rosto colado, de amigo", como Saulo definiria depois.


Quase todos saíram. Campeio, porém, continuou trabalhando depois que Roseana se recolheu, combinando que deixaria o original datilografado e uma xerox da nova versão para uma releitura final do presidente, pela manhã. Este material ficara com um ajudante de ordens para a entrega a Sarney. Uma segunda cópia foi deixada a Roseana, com um bilhete explicativo. A terceira, Campeio levou consigo, e deixou o palácio às 3h40, rumo a seu apartamento na Superquadra Sul 104. Ele foi datilografado num tipo de letra grande, especial para facilitar a leitura, e todo em maiúsculas, em laudas com apenas 10 linhas em média. A datilógrafa Jô, que deixou o palácio com Campeio, não conseguiu dormir aquele resto de noite:


— Eu estava doida para chegar no dia seguinte e ver o que ia acontecer.


SAYAD COM FARÓIS APAGADOS


Eram 20h15 de segunda-feira, 24 de fevereiro, quando começou a reunião com o presidente na sala atrás da biblioteca do Alvorada. Tratava-se, agora, de um plenário ampliado: o presidente, Funaro, Sayad, os generais Ivan e Denys, Marco Maciel, Saulo Ramos, Jorge Murad e, do grupo, João Manoel, Belluzzo, Pérsio, André e Calabi. Faltaram Bacha, às voltas com a família em Belo Horizonte, Luiz Carlos, em consulta médica, e Fernão Bracher, que não pudera desmarcar uma conferência na Associação dos Bancos Franceses, em Paris. (Num esforço logístico, Bracher viajou no sábado, chegou a Paris no domingo, fez a conferência segunda e embarcou de volta para o Brasil no mesmo dia. Seu avião, porém, teve um atraso de 12 horas, fazendo inclusive uma escala em Salvador. O presidente do BC se reincorporou ao grupo somente na terça.)


O presidente abriu a reunião pedindo uma exposição. Na verdade, Sarney estava integralmente a par de todos os detalhes, inclusive porque passara o fim de semana debatendo o pacote com Funaro, enquanto o grupo todo, mais Bracher e Sayad, trabalhavam em São Paulo. Assim, a explanação, que ficou a cargo de Pérsio e durou 15 minutos, se destinava mais aos participantes que acabavam de ingressar no processo. Claramente, Pazzianotto foi o centro da reunião. Não só ele precisava ser convencido da conveniência do pacote; o grupo também ainda não estava seguro de sua permanência no governo, diante das pressões para que o ministro integrasse a chapa de Orestes Quércia em São Paulo como candidato a vice-governador pelo PMDB. "Se o Almir saísse para ser candidato, complicava tudo", admite um membro do grupo ligado a Sayad. A certa altura, Sarney perguntou:


— Ô, Pazzianotto, o que você acha disso? Como é que os trabalhadores vão reagir?


— Acho que poderemos ter até a compreensão deles — disse o ministro. — O que me preocupa mais é se os empresários responderem com a recessão. Se os empresários puderem demitir empregados à vontade, vamos precisar agir com energia para evitar um processo de contaminação.


Quando Sarney, a certa altura, falava em cálculo de salário pela média, inclusive o do salário mínimo, Pazzianotto brincou:


— Presidente, salário mínimo não tem média. É mínimo...


Talvez o diálogo tenha influído na decisão de Sarney de puxar para cima o mínimo. Os economistas haviam sugerido a sua elevação com base na média real dos últimos seis meses — mesmo critério adotado nos demais salários. Isto daria 751 cruzados. O presidente foi quem decidiu subir para 800 — e o número final acabou sendo de 804.


Bateu-se o martelo também nessa segunda-feira sobre o nome "cruzado" para a nova moeda. O grupo chegara a examinar um punhado de alternativas que incluía "cristal" (inadequado por transmitir idéia de fragilidade), "carajá", "del rey" (alusão a São João del-Rey, terra natal de Tancredo Neves), "real", "brasão", "nacional" e até "OR", abreviatura de ORTN — mas Sarney fixou-se desde logo no cruzado, até porque, lembrou, era o nome de uma antiga moeda do Império (1834-1848).


Foi uma noite de decisões — quando o presidente amarrou firmemente o pacote. Sarney, com a apurada sensibilidade de três décadas de política, fez absoluta questão do congelamento. Belluzzo, embora também favorável, lembrou as desvantagens de se "engessar" a economia por um período longo. Sarney insistiu em que "o povo vai começar a entender a reforma por aí. Este é um ponto básico do programa". O presidente fez também questão de eliminar do decreto a expressão "correção monetária", que acabou substituída — nos casos de poupança, FGTS e PIS-PASEP — pela nova expressão "seguro contra a inflação".


— Esta é uma expressão maldita, que tem que ser extirpada — ordenou.


Ficou também feita a opção pelo seguro-desemprego. "Temos de ir no limite de tudo o que beneficiar o trabalhador já", observou João Manoel, um dos membros do grupo que, ao lado de Belluzzo, mais insistia nos aspectos sociais. "Não vamos ter um depois." Na discussão que se seguiu, acabou sendo decidido que duas outras importantíssimas medidas sociais — uma lei que penalizasse as empresas no caso de excesso de rotatividade de mão-de-obra e a redução da jornada de trabalho dos empregados — não seriam decretadas junto com o pacote, ficando para uma etapa posterior.


Muito atento a detalhes, Sarney, a certa altura, cobrou uma cópia da cartilha argentina. "O Belluzzo disse que tinha e perdeu, presidente", explicou um dos membros do grupo. Funaro ordenou: "Amanhã eu quero de qualquer forma". (No dia seguinte, a pedido de André, Chico Lopes enviou um exemplar do Rio para Brasília, em envelope lacrado.)


O presidente também fez um pequeno pronunciamento, uma espécie de declaração de princípios explicando por que decidira pelo pacote:


— Vamos ter que fazer as mudanças. Não é possível ficarmos no lero-lero. Tenho responsabilidades para com o país, e não compromissos com grupos. Sou de um Estado pequeno, cheguei ao governo por circunstâncias que todos conhecem e meu compromisso é com as transformações de que o Brasil necessita.


Mais adiante, o presidente observou, pragmático:


— Se a luta contra a inflação não der certo, vão surgir de novo as diretas-já. Daí, a responsabilidade que me caberá vai ser a de administrar esse processo.


No final, o esboço de decreto foi passado para que Saulo Ramos lhe desse a devida forma jurídica e fizesse uma avaliação dos possíveis conflitos com outras leis. Saulo viera preparado à reunião, tendo, no fim de semana, estudado a história de diversas crises econômicas refletidas na legislação — desde a moratória geral ocorrida em 1864, no Império, até os decretos econômicos feitos por ocasião da Lei Áurea, em 1888, a criação do cruzeiro novo, em 1967, e uma série de leis mais recentes. Como Pazzianotto ainda se mostrasse um tanto reticente — ele considerava, por exemplo, muito elevado o patamar de 20% de inflação para acionar o "gatilho" de aumentos salariais —, combinou-se que almoçaria com Pérsio Arida no dia seguinte, terça-feira, dia 25.


À saída, à meia-noite, enquanto o grupo se queixava de fome a Jorge Murad — "Vê se amanhã manda servir alguma coisa, Jorge", disse um deles —, houve um encontro com Roseana.


— É verdade que vocês estão discutindo a nova lei de greve? Deu na televisão — disse a filha do presidente.


Foi ótimo que assim tivesse sido, pois essa era uma das versões que o governo espalhava para desviar a atenção do pacote. Estava a pleno vapor a operação-despiste — e os cuidados eram tantos que naquela noite os participantes da reunião chegaram ao Alvorada a intervalos de 10 minutos para não chamar a atenção. Sayad exagerou: fez seu automóvel aproximar-se do palácio e passar por seus portões com os faróis apagados. Haveria mais: no dia seguinte, iria ser articulada uma agenda falsa para o presidente.


Sexta-feira, 28/2/86. O presidente José Sarney acordou por volta de 6 horas da manhã naquele que seria o grande dia de seu governo. Banhou-se e barbeou-se tão cuidadosamente que um de seus interlocutores de logo mais notaria que seu rosto estava "quase brilhando". Vestiu um jaquetão azul-escuro, camisa branca com colarinho em ponta e uma gravata de quadriculado branco sobre fundo cinza-claro. Ainda antes da chegada dos políticos para o café da manhã, releu o discurso que Campeio deixara com o ajudante de ordens. O presidente encontrou tempo e atenção para fazer cerca de 10 substituições de palavras, a lápis, trocando, por exemplo, a certa altura do texto, "vida" por "destino" ou a expressão "nos ajudem" por "nos fortaleçam". Na crucial questão dos "fiscais do presidente", novamente a sensibilidade política lhe indicou que era necessária uma ênfase especial. Assim, no trecho que dizia: "Cada brasileira ou brasileiro será um fiscal dos preços. Ninguém poderá, a partir de hoje, praticar a indústria da remarcação", o presidente inseriu uma frase de apelo direto entre as duas orações: frase está investido pelo presidente para ser um fiscal dos preços".


Com o discurso pronto, Sarney foi tomar café com os líderes da Aliança Democrática. Apesar do horário de verão — eram na verdade 6 horas da manhã — um sol forte batia no Palácio da Alvorada.


À SOMBRA DOS GENERAIS DO SNI


Na noite de terça-feira, 25 de fevereiro, a dois dias e meio da reforma, quando a equipe envolvida no pacote chegou para a última reunião com Sarney, o presidente assistia ao Jornal Nacional. E justamente no momento em que o líder do PMDB na Câmara, deputado Pimenta da Veiga, explicava numa entrevista que o partido, agora, iria manter "independência" do governo, só votando os projetos que considerasse de interesse público. Estava-se a um passo de um rompimento com o Planalto — mas Sarney limitou-se a apontar o vídeo e fazer uma expressão de surpresa.


Era a primeira vez que o ministro da Justiça, Paulo Brossard, se incorporava ao colegiado — o grupo, excetuados Belluzzo e João Manoel, que haviam trabalhado com Funaro no Ministério, passara o dia com Saulo na Consultoria, dissecando o decreto-lei. Também estreava Henry Philippe Reichstul, então titular da Secretaria Especial de Controle das Estatais, a Sest — já que os primeiros reajustes salariais após o pacote incluíam as empresas do governo.


Durante os trabalhos, ficou claro que Pazzianotto estava pacificado. No almoço com Pérsio Arida o ministro aparentemente aplacara seu temor maior — o de que o congelamento não "pegasse", enquanto os salários, regidos por contratos, seriam comidos. Pérsio ponderou que a safra agrícola prometia ser farta, que os preços deveriam cair, que havia chance de deflação — e, mais ainda, que a experiência de Argentina e Israel demonstrava uma enorme adesão popular a esse tipo de programa, sobretudo com a convocação pessoal do presidente da República.


Como o presidente precisava trabalhar em seu discurso no dia seguinte, quarta-feira, decidiu-se, por sugestão do ministro Marco Maciel, elaborar uma falsa agenda para lhe permitir a tarde livre. Todos os ministros incluídos na agenda e que supostamente deveriam despachar com o presidente — os da Aeronáutica, Marinha, Justiça, Trabalho e Seplan — colaborariam para a operação-despiste. (Esta havia prosseguido durante todo o dia com diversas explicações para a revoada de assessores rumo ao Planalto e ao Alvorada: estaria havendo divergências entre a Seplan e o Banco Central sobre o tratamento da questão da dívida externa no texto da mensagem anual que Sarney enviaria ao Congresso no dia 1.º; ou, então, as divergências eram sobre o funcionamento futuro da Secretaria do Tesouro.)


Ao se despedir do grupo na terça-feira, o presidente fez blague:


— Se o país rejeitar maciçamente a reforma, nós vamos ser banidos para Fernando de Noronha. Aí só vamos precisar daquele Tonton Macoute de lá. [Referia-se ao ex-chefe da polícia política do Haiti, coronel André Piem, na ocasião provisoriamente asilado na ilha.]


O presidente ainda convidou o grupo para jantar. "Mas nós estávamos tão angustiados com a expectativa que saímos para trabalhar", recorda um dos economistas. O presidente deu boa-noite e disse:


— Então vocês vão, que eu vou fazer uma oração.


A última grande reunião, na quarta-feira, 26 de fevereiro — já sem o presidente —, foi feita em clima de filme de mistério, e seguiu uma minuciosa agenda preparada por Marco Maciel, o general Denys e Calabi, para os dias 27 e 28. Para começar, no melhor estilo neo-republicano, foi marcada para a outrora impenetrável sala de reuniões do SNI, no 4.º andar do Palácio do Planalto — e ali, à sombra dos retratos dos cinco generais que chefiaram o serviço no passado, trabalhou uma equipe de economistas que, em outras circunstâncias, só entrariam ali para ser fichados. Pelo menos um deles sofrera, no passado, processo — finalmente arquivado por falta de provas — na Justiça Militar. Para garantir que não haveria vazamentos para a imprensa, o começo foi marcado para a meia-noite. Os economistas, que haviam trabalhado o dia todo na Consultoria, num edifício anexo ao Planalto, dirigiram-se à garagem do palácio pela porta dos fundos, e encontraram ligado o elevador privativo do presidente da República, de forma a evitar corredores e jornalistas — pelo menos meia dúzia de repórteres ainda farejavam o palácio, àquela hora.


Fundamentalmente, a reunião destinava-se a entrosar o ministro José Hugo, recém-incorporado ao esforço do pacote, e o economista Luciano Coutinho, secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia, também do grupo da Unicamp, encarregado de explicar o pacote ao PMDB e seu presidente, Ulysses Guimarães. (O dr. Ulysses, em linhas muito amplas, sabia do projeto desde o ano passado, via Sayad, embora aparentemente só o imaginasse no bojo de um pacto social. Nesta noite de quarta, foi informado formalmente por Sarney.)


Leu-se também o decreto todo, na primeira versão produzida na Consultoria — o símbolo do cruzado, ali, ainda tinha "Z" maiúsculo —, e chegou-se a discutir, novamente, o nível do "gatilho". Além disso, falou-se no abono. João Manoel defendia o maior índice possível, dizendo a Pérsio: "Professor, como é que é? Temos que ter uma estratégia distributiva muito clara nesse decreto". Pérsio, de seu lado, lembrava que, quanto mais alto o abono, maior seria a pressão de custos que se daria no início do pacote. À última hora, Sarney decidiu-se pelos 8%.


Num dado momento, o ministro José Hugo manifestou-se preocupado com a reação dos bancos. O general Ivan cortou:


— Mas, Zé Hugo, você quer fazer reforma sem ferir nenhum interesse?


Preocupado com a reação dos bancos, o ministro José Hugo foi interrompido pelo chefe do SNI: "Você quer fazer reforma sem ferir nenhum interesse?"

A cada vez que entrava o garçom — para servir sanduíches mistos frios, suco de maracujá ou café —, o general Denys, como já ocorrera no Alvorada, fazia sinal de silêncio — inutilmente — com o dedo sobre os lábios. O cigarro estava acabando, e Saulo, bem fornido, distribuía os seus.


À 1h30 da madrugada, vários participantes, entre os quais Funaro, Brossard e o general Ivan, foram assistir ao Jornal da Globo. Havia indícios de que a Globo sabia do que se passava. Seu vice-presidente (e também de O Globo), João Roberto Marinho, já telefonara horas atrás para Saulo e André, seu amigo pessoal. Foi despistado, e mais tarde diria a André: "Você foi fantástico. Conseguiu me enganar". João Roberto certamente tinha suas fontes, porque o pai, Roberto Marinho, como os demais diretores de grandes jornais, revistas e emissoras do país, fora informado das medidas por Sarney nesta mesma quarta-feira com o compromisso de não-divulgação.


"Essa reunião' foi longa, muito tensa, com gente demais e temas já resolvidos sendo levantados novamente", recorda um dos economistas ligados à Fazenda. "Começou a desandar." Mesmo assim, o ministro Brossard conseguiu dormir em sua cadeira. Pazzianotto mostrava-se irrequieto — estava há horas sem comer direito e tinha fome. Dilson Funaro acabou encerrando a reunião, interrompendo os debates e lembrando, com energia:


— A coisa está definida, está lançada. O presidente já resolveu. Não é mais o momento de retornar a tantos itens.


Todas as decisões mais importantes estavam tomadas. Mas, no dia seguinte, todos teriam que lutar contra o relógio para tudo ficar pronto a tempo.


Sexta-feira. 28/2/86, 7h. No café da manhã, o dr. Ulysses reclamou de Sarney do recurso ao "abominável instituto" do decreto-lei. Lembrou, também, que o PMDB só estava tomando oficialmente conhecimento do pacote naquele momento. Paciente, Sarney explicou a necessidade de sigilo. "Também não gosto de decreto-lei", lembrou. Passado esse primeiro momento, porém, o café transcorreu num clima de otimismo. Pimenta da Veiga, que na madrugada presidira em sua casa no Lago Sul uma reunião de vice-líderes do PMDB com Belluzzo e Luciano Coutinho, chamou a inflação de "flagelo" e disse que a bancada apoiaria o pacote. No mesmo tom foram as intervenções dos cardeais do PFL — os senadores Guilherme Palmeira e Carlos Chiarelli, e o deputado José Lourenço — e a do líder do PMDB no Senado, Humberto Lucena. Sarney, queixando-se de só ter dormido quatro horas, tomou três cápsulas de vitamina, comeu uma pinha e tomou suco de laranja. Dilson Funaro, também presente, com Sayad, falou sobre o congelamento. E o presidente foi enfático:


— Quem remarcar preços vai para a cadeia.


O presidente comeu doce de abóbora com queijo-de-minas antes de despedir-se, às 8h30. As 8h45, embarcou no Landau presidencial com Roseana até o Planalto. Falou pouco no trajeto, mas lembrou:


— Hoje é um dia decisivo para o meu governo.


"O PRÓXIMO VAI À P..."


Para esse dia decisivo, foi decisivo o trabalho da véspera, a quinta-feira, dia 27 de fevereiro. Ninguém, na força-tarefa, dormiu mais que duas ou três horas. Quando Belluzzo, às 7h30, já barbeado e de terno e gravata, foi acordar João Manoel no seu quarto, ele balbuciava:


— A poupança. É preciso cuidado com a poupança.


— O que houve com a poupança? — perguntou Belluzzo.


— Nada, eu estava sonhando — respondeu o amigo.


Ao café, os dois tiveram como convidados os economistas Carlos Lessa e Maria da Conceição Tavares. A professora, ao deixá-los para participar de uma reunião do PMDB, recém-informada do pacote, disse, séria e emocionada:


— Que Deus abençoe vocês.


Depois, João Manoel trabalharia durante 19 horas seguidas — nas listas de preços e, com Belluzzo, na elaboração do discurso de Funaro e de um esboço para a fala de Sarney. Num intervalo dessa tarefa, quando ambos explicavam o pacote ao economista Walter Barelli, do DIEESE, convidado a vir a Brasília, foram interrompidos por Adroaldo Moura da Silva, então presidente da CVM, que entrou na sala, sorrindo e de olhos arregalados:


— Puta merda, vocês estão tendo peito de fazer esse negócio!


Durante todo o dia, o grupo todo virtualmente não parou entre o Banco Central, onde se redigia a cartilha — da qual, a certa altura, por engano de alguém, o computador anexo à sala de Luiz Carlos apagou um bom trecho —, a Consultoria, a Seplan e o Ministério da Fazenda. Chico Lopes, depois de tanto tempo "na moita", fora convocado para ajudar nas tabelas de conversão e, junto com Modiano, virtualmente acampara na sala de Luiz Carlos, no 15.° andar do faraônico prédio de 21 andares e cinco subsolos que a Velha República construiu para o Banco Central.


Calabi passou boa parte do dia ao telefone. Vários bancos ligavam indagando sobre o feriado bancário. Os boatos sobre mudanças econômicas, que se refletiram de manhã nas Bolsas do Rio e São Paulo, haviam se transformado num vazamento que a Globo captou e colocou no ar às 17 horas. Antes disso, já houvera uma mini-corrida aos bancos.


Também Sayad se agarrara ao telefone. Ele ligou para o economista Francisco de Oliveira, para Lula, do PT, para Jair Meneguelli, presidente da CUT, para banqueiros e empresários. Às 17 horas, fechados os bancos, chamou José Antonio do Nascimento Brito, diretor do Jornal do Brasil, e contou sobre o pacote, desculpando-se pelo desmentido pessoal que fora obrigado a lhe dar duas horas antes.


Os jornalistas pressionavam por informações no Banco Central, no Planalto, nos Ministérios, mas só no final da tarde, depois dos flashes que a Globo colocou no ar, é que o pessoal do governo começou a liberar informações. Antes disso, o porta-voz Fernando César Mesquita disfarçou até para a estatal Empresa Brasileira de Notícias, convocada para formar uma rede nacional para a manhã seguinte. Perguntado sobre o motivo da reunião ministerial, Fernando César disse que não tinha idéia. Nem o Cerimonial do Palácio, chefiado pelo embaixador Carlos Eduardo Alves de Souza, ficou sabendo da solenidade antes da noite da véspera.


No Banco Central, o atraso na elaboração da cartilha impediu que a Globotec gravasse um comercial que seria transmitido pela televisão durante todo o dia seguinte, a partir da fala de Sarney. A tensão e o extremo cansaço dos últimos dias haviam esgotado o grupo. Belluzzo e João Manoel, amigos há mais de 30 anos, chegaram a discutir no elevador do Ministério da Fazenda — João Manoel achando que a lista de preços não ficaria pronta, Belluzzo dizendo para o amigo "não encher o saco". Calabi, ao chegar de madrugada ao Ministério da Fazenda e cruzar com Pérsio, Bacha, André e Luiz Carlos, propôs ainda retomarem a feitura da cartilha. A resposta de Luiz Carlos:


— O próximo que me falar em cartilha hoje eu vou mandar à...


Sexta-feira, 28/2/86, 9h30. Pontualmente na hora prevista, o presidente começou a anunciar à nação o pacote econômico. Com cópias do discurso na mão, Roseana e Campelo. surpresos, viram que o presidente improvisou duas dezenas de pequenas mudanças na hora de ler. E, uma vez mais, ele acentuou o apelo direto aos "fiscais do presidente". Antes da frase que incluíra a lápis — "Você está investido pelo presidente para ser um fiscal dos preços em qualquer lugar do Brasil"—, Sarney, fazendo uma pausa de segundos, incluiu na hora uma frase, mais tarde inserida na versão oficial do discurso: "E aí posso me dirigir a você, brasileiro ou brasileira"...


Depois de Funaro fazer seu pronunciamento, o locutor oficial do Palácio, Francisco Dolabella, 48 anos, primo do ator Carlos Eduardo Dolabella, já se preparava para encerrar a cerimônia quando foi avisado pelo Cerimonial de que teria que ler também o decreto, que não ensaiara. Imaginei que seria uma coisa curta, mas durou quase 40 minutos", diria ele mais tarde. Mas Dolabella agüentou firme. Não por acaso, esse jornalista, advogado e professor de História na rede secundária de Brasília havia comandado a transmissão da inauguração da capital, em 1960. "A importância do pacote me empolgou do mesmo jeito", diria ele.


PIANO DE CAUDA BRANCO


Espalhados na Seplan, no Banco Central e no Ministério da Fazenda, cumprindo ainda diversas tarefas nesta manhã de sexta-feira, os economistas formuladores do pacote acompanharam com emoção o discurso de Sarney. Mas havia muita coisa a fazer, neste dia, nos próximos e nas semanas seguintes. Não era ainda a hora de Belluzzo voltar aos jogos do Palmeiras, de João Manoel ter tempo de cuidar de seu cachorro Alfredo ou de Luiz Carlos desembolorar sua casa na magnífica praia do Lázaro, em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. Tampouco Pérsio Arida conseguiria um jeito para dependurar seus quadros na casa nova para onde se mudou no começo do ano, para voltar a tocar o esplêndido piano de cauda branco Petroff que tem na sala de visitas ou avançar além de 600 das 1 200 páginas do romance O Homem sem Qualidades, do escritor austríaco Robert Musil (1880-1942), que começou a ler no Carnaval. Praticar hipismo com a filha, Adriana, para Calabi, continuaria a ser possível só em doses homeopáticas. André, de todo modo, arranjou naquela sexta-feira um jeito de chegar ao Rio à noite para o aniversário de sua filha Mariana, de 9 anos. Seu próprio 9.° aniversário, a 24 de abril de 1960, foi passado sem os pais, que tinham ido à inauguração de Brasília, e ele ainda hoje se lembra da mágoa que sentiu.


Logo na manhã do pacote, quando surgiram as primeiras denúncias de remarcação de preços, Sarney, irritado, ordenou: "Chamem o Tuma"

Sexta-feira, 28/2/86, 11h00. Terminada a reunião ministerial no Planalto, o presidente Sarney começou a receber visitas oficiais: o dr. Ulysses, o presidente do Supremo Ti.ibunal Federal, ministro Moreira Alves... Mas contente mesmo ele ficou com a chuva de telefonemas para o Ministério da Fazenda, a Sunab, a Seplan e o próprio palácio: eram os "fiscais do Sarney" em ação, denunciando, reclamando, exigindo. O povo aderia em massa ao pacote. As primeiras notícias de remarcação, ele ordenou:


— Mandem chamar o [Romeu] Tuma [diretor da Polícia Federal].


A esta altura, um assessor mais meticuloso observou que, dos lábios do presidente, desaparecera completamente a vermelhidão alérgica.


 

(*) O Grupo de Cartagena é constituído de 11 países latino-americanos, inclusive o Brasil, que desde julho de 1984 vêm se reunindo periodicamente para discutir a questão da dívida externa.


(**) Dez dias depois da decretação do Plano Cruzado, o Decreto-lei 2.283, que o instituiu, foi republicado com correções e alterações sob o 2.284 e, ali, ficou assegurado o reajuste automático dos salários na data-base de cada categoria com o equivalente a 60% da inflação, qualquer que seja seu índice, ficando os demais 90% para serem discutidos entre trabalhadores e patrões.


ILUSTRAÇAO TOM JAMES



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