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OS DESEJOS DE LIANA

Ficção


Ninguém conseguia resistir àquela morena. Mas tudo o que ela queria era...


Por CHICO ANÍSIO


Liana do Espírito Santo abriu 11 um grampo com o dente e enfiou nos cabelos lisos, encharcados de uma brilhantina banhosa, cheirando a azeite. Gostaria de possuir coisas melhores, um dia poder luxar, ser chamada de senhora-dona, mas...


Puxou o decote do vestido e espalhou farta porção de talco Lady. Esfregou com a mão, embranquecendo o colo. Bateu uma mão na outra, deixando cair no chão de terra batida o resto de talco. Ficou no quarto um cheiro misturado e desagradável, ainda mais para ela que preferia perfumes melhores. Como os que usava dona Julinha. Mas dona Julinha era mulher do coronel João Neves, podia andar um brinco. Como querer comparar-se com uma mulher que usava as posses que tinha? Quantas vezes dona Julinha já estivera no Recife ou , no Rio? Ora. Cada qual com o que lhe cabe. Deus até podia castigar seu olho grande. "Larga de pensar comprido, Liana." Afinal, se não tinha de tudo, não era muito o que lhe faltava. O diabo era saber contentar-se. Ora. Faz mal querer um tiquinho além? Faz nada.


Com a ponta do dedo molhado na boca do frasco umedeceu a parte de trás das orelhas e deu novo laço no vestido. Por dentro bulia a vontade de um vestido novo. Quando entrara em Torrinha vira um lindo, com passamanaria na barra. Nem custava esse dinheiro todo. Fez dengo a Cazuza que tinha gostado. Custava ao marido fazer-lhe aquele gosto? Não chegara a pedir, é fato. Mas insinuara.


— Olha, Cazuza, que vestido mimoso.


— É?


— E nem é tão caro. Espia o preço...


Nem espiara nem fizera qualquer outro comentário. Saíra rua afora levando-a pela mão, ela com os olhos perdidos na vitrine, no vestido. Lindo. Verde. Não pedira muito, Deus era testemunha. E o dinheiro poupado no vestido, onde fora usado? Um par de botas, que nunca calçava, e esporas. Espora pra quê? O vestido era para ela vestir aos domingos, na missa, ou quando tivesse uma festa. Esporas desnecessárias, penduradas num gancho que saía da taipa. Calçara as esporas uma vez. Uma só.


— O diacho dessa espora me magoa o pé.


E nunca mais. As esporas penduradas no gancho da parede eram uma lembrança viva do vestido verde. Verde e com passamanaria na barra. Tinha quantos vestidos? Três, contando os do diário. Que prestasse só o azul. Ora. Pra que negara o vestido?


— Homem faz por onde, depois se dana. Deixa estar.


Abriu a boca, tirando dos cantos o excesso de batom. O excesso restante ficou. Espremeu um lábio contra o outro, buscando uniformidade na cor. Boca calada, mas cabeça pensando. Quando não era o vestido verde era falta de passeios. Distraía-se? De que jeito? Nem nas festas de Nova Espanha, quando teve orquestra do Recife e quermesse de luxo, o marido a levara. Até mesmo seu Carlito, mais miserável do que eles, tinha ido. Seu Carlito! Camumbembe. Até seu Carlito levou a mulher e os meninos a Nova Espanha. Na barraca da sorte tiraram um jogo de panelas. Ela, era sozinha. Só ela e o marido. Nem assim. Ora.


— Homem faz por onde e depois...


Morena tirada ao caboclo, 25 anos, se muito. Os dentes, tinha todos. Se houvesse defeito, eram poucos e escondidos. Ao mostrar o sorriso, mostrava brancura. Sem erros nem falhas. Mas de uns tempos para cá, quase não ria. Não que não gostasse. Gostava. Antes, gostava. Ria alto, risada gostosa, contagiante. Gostavam de ver Liana rindo. Mas agora só se fosse doida. Rir da vida que tinha? Rir daquela casa de taipa, alpendre penso, mal apoiado nas estacas de angico? Rir do chão que aguava três, quatro vezes por dia, pra ver se diminuía a poeira? Ora. Se Cazuza lhe desse uma casa de tijolo ou uma cama patente, está certo. Ou aquele vestido verde com passamanaria na barra. Desse o vestido e Liana riria. Por uns tempos, pelo menos. Riria até o verde do vestido desbotar, ficar da cor da vida. Pedia muito? Um vestido, uma cama, uma casa. De comer, nem fazia questão. Procurava, o mais possível, ser a mesma Liana do começo. Mulher maravilha, de mesa e de cama, pois na cama era gato no cio, era égua, era onça. Gemia e pedia o que ele não tinha. Um acabar de mundo quando o candeeiro se apagava. E nem dependia do querer do Cazuza. Pelo menos isso. Nessa hora, opinião só sua. Ora. N alguma coisa tinha que mandar, já que nos gastos e no resto quem mandava era ele. Nessa hora, não. Liana reinava. Era ela que ditava o dia e a hora. E só resolvia de repente.


Liana, mulher maravilha, na cama era gato no cio, era égua, era onça

— Painho, chegue aqui...


Era assim que chamava. Sob o sol quente do meio-dia ou debaixo da noite estrelada de Carapau. Tivesse visita em casa ou estivessem sozinhos, tanto fazia. É. E nem se importava com o que os outros dissessem ou pensassem. Estava usando o que era dela, na hora que lhe apetecia. Queria que fosse assim nas compras.


Quando morreu o marido de dona Cresta, engomadeira, a viúva não quis se mudar? Não botou a casa à venda? Era dinheiro grande? Besteira. Se vendessem uma das mulas e mais um lote de bacorinhos, dava para a entrada. O resto, Deus havia de ajudar a pagar. Cazuza quis? Nem conversa. Ora. Podia regatear. Dona Cresta tinha cara de vender mais barato, se o comprador pechinchasse. Cazuza nem conversa. Mas também, nem com ela gosta de muito assunto. Ela tinha que tomar as rédeas. Taí. Era o que devia fazer. Passar a ser o homem da casa. Ave-Maria! Se com o mando na mão dele, já tinha gente com o diabo que achava o marido... Ave-Maria, Cazuza não fazia seus gostos, mas era homem, sim senhor. Nem apreciava quando vinham com essa estória de "Cazuza Dengoso". Ora. Também só falava assim quem não via os dois na hora. Naquela hora. É certo que Liana, aí, comandava. Mas o mundo virava. Era sertão inundado, estrela no chão, lama no mar, mel, fogo. Era, mesmo. Taí. Quem não sabia das estórias?


— Quebram camas.


— Xamego de fera, doutor. Os dois parecem bichos.


Taí. Não tinha hora pra começar, muito menos pra acabar. Felizmente, para Cazuza, fazia já duas semanas que ela não dizia "Painho, chegue aqui". Ao voltar para casa com a mula de água, trazia por dentro um temor de que, de repente, viesse a ordem no chamamento terrível. Ela sabia que ele temia. Ora. Pior pra quem? No começo queria a toda hora. Depois foi minguando o desejo, vontade se indo. Duas semanas. Era até pouco, para um homem que nega ninharia. Que noite valeria aquele vestido verde, de passamanaria na barra! Mas a falta de amor podia até ser prenda. Ah. Ele não andava tirando o corpo? Ela bem que podia, de ruindade, querer.


— Painho, chegue aqui.


Riu-se. Desfez o sorriso quando lembrou que, mesmo quando a vontade era pequena, do meio para o fim ele morria de gozo. Ora.


— Quem é que entende o gosto de homem? Faz por onde e depois...


Cazuza achava bom. Vez por outra. Danado foi na Semana Santa quando, até na sexta-feira da paixão, ela desrespeitou a data. Mas um amor desse jeito não era defeituoso...


Defeito, mesmo, Liana só tinha um: a mania de sair de noite, quando ele dormia. Bem que Cazuza entendia. A vida de Liana, tão monótona, um rame-rame lascado. Por isso não reclamava muito das saídas da mulher, pra bestear de noite. Tinha dia dela voltar de madrugadinha.


— Onde foi Liana?


— Pro escuro. Deu vontade, saí besteando por aí, sacudindo pedra no mato. Só isso.


Era coisa de gente doida, Cazuza pensava. Depois entendia. Liana, enquanto ele vendia água, ficava sozinha. Quase toda tarde dormindo. De noite, sem sono, que mal havia em sair pra sacudir pedra no mato, ficar procurando bacurau, visitar dona Bia? Tenha dó. É verdade que não contava pra ninguém a mania da mulher. Ele entendia, mas o povo de Carapau era bem capaz de pensar coisa ruim dela. Valha-me Deus. Podiam achar que era fraca da cabeça, atacada. Feito esses cabras que viram lobisomem em noite de lua cheia. Benza-me Deus. Mania é mania. Cazuza perdoava. Ela também perdoava muita coisa. Só a casa de dona Cresta, a preço bom e o vestido verde é que era difícil esquecer. Mas Deus na sua justiça havia de tirar aquilo da cabeça. Mas que o vestido era mimo, duvidava alguém não achar.


O rincho da mula avisou que Cazuza estava chegando. Ele deu água pro animal, amarrou o milho na boca, guardou a cangalha, fez o que havia ser feito e entrou em casa. O cheiro dizia que Liana já tinha se asseado. Pensou que hoje poderia ser uma noite de chamamento. Deus me livre. Logo nessa noite, depois de um dia puxado? E no estado de nervos em que estava. Sem a menor precisão, limpando os pés no batente da entrada, perguntou:


— Liana, você está em casa? A voz veio do quarto. Molhada, como os lábios da dona.


— No quarto, painho.


Cazuza desabotoou a camisa e sentou na cadeira pensa para desamarrar as botinas. Os pés descalços deram-lhe alento. O cinturão encardido foi jogado no canto. Do quarto, Liana já vinha, por detrás de uma cara que ela pensava ser sorriso.


— Fez bom negócio?


— Ora, se. Quatro viagens. Não tem nada melhor do que esse tempo de seca. Tou cansado e moído, mas valeu a pena.


Do bolso da calça Cazuza puxou as cédulas avermelhadas e amarrotadas, que Liana tratou de colocar sobre a mesa, desamassando-as com as costas da mão. Ela sabia que não houvera quatro viagens. As notas diziam. Está certo. Ele queria era clemência. Era medo do chamamento. Quatro viagens. Pois sim. Duas, e olhe lá. Medo de que ela o chamasse naquela noite. Ele que ficasse descansado.


• • •


O perfume de angico invadia a casa, começando do quintal. Na gaiola velha, pendurada no caibro do alpendre, a sabiá desacatava o mundo com seu canto. No arame esticado da pilastra à goiabeira, Liana estendeu a roupa. No chão, várias peças corando sobre o acimentado rústico. Liana tinha o vestido sobre a pele. De tão levantado, o vestido parecia ter aumentado sua transparência, deixando adivinhar o que de bonito devia esconder. Quando ficava contra o sol via-se, com nitidez, o contorno das coxas. Até certos pêlos eram mais do que adivinhados. Vez por outra levava a mão aos cabelos, querendo prendê-los atrás das orelhas. Inútil. Ao primeiro movimento novamente se desprendiam os fios negros e grossos da cabocla, cobrindo-lhe parte do rosto, obrigando-a a nova tentativa.


Na casa, mais ninguém.


Um vento distraído açoitou a roupa estendida no arame, derrubou o vestido branco. Na cabeça de Liana outra vez o vestido verde, com passamanaria na barra. Ora. Era melhor esquecer isso. Nem sabia se um dia voltaria a Torrinha, quanto mais a esperança de ter o vestido negado...


Mudou a água da sabiá e lhe mandou um beijo estalado, fazendo o pássaro dobrar o canto. Sorriu. A sabiá era um dos seus xodós. Ela, sim, cuidava de dar carinho e atenção aos bichinhos de que gostava. É que a sabiá não falava. Falasse, pedisse uma coisa possível, para ver se Liana não corria a atender. Cazuza... Cazuza era aquilo que se via. Bota e espora. Muito mais caro que o vestido verde. Muito mais. Cazuza devia ter escondido o preço, mas só o par de esporas devia ter custado bem mais do que o vestido verde. Devia ficar lindo no seu corpo. E tinha passamanaria. Ela gostava de rendas e fitas. Gostava, que havia de fazer? Ora. Era pecado?


Foi à cozinha verificar como andava o feijão. Com a concha trouxe um pingo à palma da mão, daí à boca. Reforçou o sal e abriu um armário de onde tirou um canto de rapadura. Pelo seu gosto seria pudim, mas, que sonho! Pudim? Que sonho.


Sentou no parapeito do alpendre e olhou em volta. Oh, vida. Aquilo era vida? Sertão na frente e nos lados. Sertão da alma. Tinha necessidade de viver tão necessitada! Cazuza bem podia aceitar o emprego que o coronel tinha oferecido. Sabia cuidar dos animais. Trabalhando no Engenho Maior ia ganhar quase o dobro. O dinheiro daria para muita coisa. A casa de dona Cresta. Não podia ter tratado a casa com ela? Nem cuidou disso. Falou "não dá pra gente" e não falou mais nada. Como no dia de Torrinha, o dia do vestido verde. Ora. Se pudesse escolher, tudo mudava. Se pudesse.


Seu gosto, mesmo, era morar no Recife, na rua Aurora ou na rua do Lima, onde passou, certa feita, um verão colosso, na casa da tia. Meu Deus. Quanto tempo já fazia? Não sabia de cabeça fazer a conta do tempo, mas era tempo muito. Foi lá que conheceu Cazuza, que tinha ido à capital na esperança de arrumar um serviço melhor do que a venda da água. Está bom. Um dia fazem o açude, aparece a água encanada, queria ver do que o marido ia viver. O coronel não queria mais saber dele. Bem feito. Quem mandou ter a ousadia de nem dar resposta ao convite do coronel?


A cabocla levantou-se com o vestido preso entre as nádegas, denunciando a falta da calcinha. Catou um graveto, à toa. Caminhou na picada que levava à cacimba. Mais uma hora sem nada, como em todas as tardes. Comida no fogo, roupa lavada, casa varrida, o que mais a fazer? Tirou uma lasca de graveto e botou na boca. O barulho das folhas secas pisadas fazia bem ao ouvido. Esticava ou diminuía o passo, para não deixar de esmagar uma folha a cada pisada. Sabe menina brincando de amarelinha? Era assim.


Dois metros atrás dela, o capim ralo. Liana deitou-se na babugem e olhou o céu na vertical. Fechava um olho e o outro, mudando de lugar a nuvem pequena, parada lá em cima. A sombra era acolhedora, fazendo a tarde quase agradável. Estivesse no Recife, o que estaria fazendo àquela hora? Na água aquecida de Boa Viagem ou se preparando para, de noite, ir ver a Festa da Mocidade? Podia tomar um sorvete no Gemba ou correr o comércio. Rua da Imperatriz. Rua Nova ... Desde a praça Maciel Pinheiro até a igreja de Santo Antônio, vendo as coisas que não compraria nunca. Por momentos lamentou não estar no Recife. Era comum, essa lamentação. Como também era habitual lamentar o marido escolhido.


Cazuza, ora. Bem que tinha tido chance de arrumar coisa melhor. Abelardo Paraíso, que trabalhava no Banco do Povo. Gostava mais dela do que de seu Pontiac. Abelardo Paraíso tinha Pontiac. Mas aquele bigode pregado no alto da boca, oh, coisa mais feia. Abelardo Paraíso tinha dengo por ela. Não quis. Nem quis saber do Pontiac dele, nem dele. Onde andaria Abelardo? E Raul Chagas, de emprego público, carreira futurosa? Ouvira de Raul Chagas propostas que incluíam grinalda. Casar com ele nem lhe passou pela cabeça. Imagina. Aquela barriga, cheiro de pitu, cuspia quando falava. Desprezara seu dinheiro por causa disso. Era tarde. Raul Chagas já estava casado morando em Sergipe. Ora. Apostava que nem se lembrava mais dela. Mas andou um bocado de tempo arriado, perdido. É. Deixara muita coisa boa pra casar com Cazuza de quem, já no Recife, falavam coisas que nem era verdade. Não era. O diabo era aquele jeito manso, do marido, a voz aflautada, a cabeça pensa no rumo do ombro. Preferiu Cazuza. Nem Abelardo nem Raul: Cazuza.


Nem ela entendia a escolha. Falta de conselho não fora. Isso não podia alegar. A tia esteve a ponto de cortar relações pela escolha de Liana.


Só se foi pirraça que Cazuza foi escolhido. Ou pelo carinho que demonstrava cada noite que chegava com uma prenda. Um pacote de biscoito de letrinhas, um saco de confeitos, um casal de xícaras onde se lia: "ele" e "ela". Passeavam de mãos dadas pelo parque Treze de Maio, andavam quarteirões e mais quarteirões pela Cruz Cabugá, parando, de vez em quando, para tomar um copo de caldo de cana — o luxo maior a que se davam.


Decidira. Escolhera. Podia, agora, arrepender-se do escolhido e decidido. Agüentasse! Agüentava.


Levantou-se e sacudiu longe o graveto com que desenhava nada no chão. A mão macia tornou a soltar o vestido preso entre as nádegas. Voltou para casa sem pisar nas folhas secas. O berro do bode chegou mais perto. Correu por correr. Não queria pegá-lo.


Então avistou o homem perto da pitangueira. Sofreou a corrida. Puxou o vestido na frente, querendo levá-lo a cobrir os joelhos. Passou a andar com passo marcado. Uma senhora, agora.


O homem sorria, com um pedaço de capim no canto da boca.


Antes de chegar até ele, parou e voltou-se, num giro total, olhando o arredor. Examinando. Viu a paisagem de sempre, sem mais ninguém à vista. Disse boa tarde sem deixar que seus olhos pousassem nos dele e foi à cozinha. Provou o feijão mais uma vez. A sabiá pediu um beijo através do trinado. Nem deu fé no trinado da sabiá.


O homem parou na soleira da porta. Era alto e quase batia na esquadria em cima. Era alto e era largo. Sua chegada à porta escureceu a cozinha. Liana sabia que ele estava na porta. Não se virou. Botou na gaiola da sabiá uma água de que a sabiá não precisava. O homem estava às suas costas. Ela quase sentia seu hálito. Esperou que ele faiasse.


— Ele quer se encontrar com você hoje de noite.


— Não sei se posso — respondeu a cabocla, enchendo uma caneca d'água com mão insegura, sem sede.


— Pode, eu sei que pode.


Outra vez passou pela sabiá, sem jogar para ela o beijo costumeiro. A sabiá pulou do poleiro à grade da gaiola e dali à (atinha de comida, espalhando alpiste. Para onde andasse o homem a seguia. Na cabeça, o chapéu de massa, cobrindo as sobrancelhas. Mal deixava à vista seus olhos encarnados. Cheirava a aguardente.


— Entre nove e nove e meia. E acho bom não chegar atrasada.


Ela tentou na voz um tom de definição. Esforçou-se para convencer. — Já disse não sei se posso. — Como eu já disse que pode, isso passou a ser problema da senhora.


• • •


O coronel ainda esfregava o pé no chão quando percebeu que o olho de Teco avisava qualquer coisa. Imediatamente mudou de atitude. Virou-se lentamente até bater a vista em Liana que, sem mostrar felicidade ou alegria, exibia seu corpo dentro do vestido branco, com a transparência que agradava a João Neves.


À chegada da mulher, ninguém falou nada. Teco recolocou o chapéu na cabeça. Quase cobria as sobrancelhas. Enchapelado, saiu para a noite. Liana entrou e fechou a porta. Não disse boa-noite nem perguntou como vai. Caminhou para a janela que Teco abrira, na esperança de um vento provável e ficou ali, olhando o escuro: João Neves veio às suas costas. Era menor do que ela. Quase um palmo menor.


— Tá triste minha bichinha?


Liana fez que não com a cabeça, enquanto seus dedos ágeis levavam o cabelo detrás da orelha. João Neves a fez voltar-se. Contemplou a tristeza do seu rosto. Não gostou. Não era aquela cara que o coronel queria nela.


— Mude essa cara que eu não trepo em defunto.


Liana tentou um sorriso. Queria ser agradável, mas não conseguia. Era mais forte do que sua vontade. Já não tinha como demonstrar prazer nos encontros com o coronel. Não conseguia. Estava ali por medo. Era por isso que tinha ido, obedecendo ao aviso de Teco. Medo. Diferente de antes, quando era ela quem forçava a chegada dos momentos a dois. Ainda tirava vantagens, mas não lhe era mais prazeroso o encontro dos corpos. De quem era a culpa dela estar ali? A culpa era dela? Era nada. A culpa era de Cazuza que não lhe dava, na cama, o que ela precisava. Cazuza. Nem cama, nem nada. De novo na cabeça a casa de dona Cresta, o vestido verde, com passamanaria na barra.


João Neves dava amor cheirando a azinhavre. No começo, o dinheiro recebido foi bom. Comprou muitas coisas. Devagar, escondido, fingindo tirar de economias forçadas, para o marido não perceber. Por causa disso é que não tinha ido a Torrinha buscar o vestido verde. Só coisinhas pequenas, senão Cazuza desconfiava. Para isso tinha encontros com o coronel.


Cazuza admirava-se da mulher econômica que tinha. Elogiava seu equilíbrio na despesa: "Na mão de Liana o dinheiro é fêmea. Dá cria, doutor".


As crias do dinheiro eram partidas do bolso de João Neves. No começo foi bom. Foi. No começo. Com o passar do tempo, principiou a sentir nojo da mão engelhada do coronel tocando seu corpo. O proveito que tirava valia a pena? Valia nada. Se ainda desse pra comprar o vestido verde, a casa de dona Cresta. Ah, Cazuza! Homem é isso. Faz por onde, depois quer explicações. Por que não dava o que ela pedia ? Pedia demais? Não, não pedia. Nem luxos, nem grandezas. Mesmo o mais pouco Cazuza não dava. Por isso ela se encontrava com o coronel. Mas não gostava mais. A casa de Teco de há muito servia de pasto para a fome do coronel. Liana era o pasto. Não se importou, no princípio. Mas agora não gostava mais.


A casa de Teco, pra ela, tinha sabor de inferno. Mas como fugir? Não tinha, ao menos, o direito de negar. O coronel era bicho, nessa coisa de amor. Usava Liana ao seu bel-prazer. E não havia, pelo visto, hora de acabar essa vontade. A prepotência do coronel.


O coronel era bicho em coisa de amor. Usava Liana, ela era o seu pasto

— Vamos para o quarto.


A voz do coronel praticamente a trouxe de volta. Ela seguiu na frente.


Entraram.


Liana sentou-se na beira da cama, enquanto o coronel se despia. A cara queimada contrastava com o resto do corpo, branco leitoso. O tom do rosto descia ao pescoço num "V". Culpa da camisa, que nunca abotoava no colarinho. Tinha, ali, a cor da mão. As banhas da barriga por pouco não cobriam o sexo. Liana de costas, ainda vestida.


— Vai sair? — perguntou João Neves, já de cueca, pano da perna esquerda mais encolhido que o da direita.


— Hein?


— Tire a roupa, rapariga!


Liana levantou-se lenta e começou a desabotoar o vestido. A janela alta foi aberta com dificuldade. De fora, ninguém podia ver o quarto. A não ser que alguém subisse na árvore, caso de Teco Mulato que, com um braço, segurava-se no galho, usando a outra mão como melhor lhe apetecia.


CHICO ANÍSIO

Chico Aníso, na carteira de identidade sr. Francisco Anisio de Oliveira Paula Filho, transforma-se toda quinta-feira à noite no galã Alberto Roberto, no locutor Roberval Taylor, no cracão Coalhada, no picareta Azambuja e em mais uma dúzia de personagens que já viraram parte integrante da vida de milhões de brasileiros, Chico se dá tanto a seus personagens que Ziraldo, ao ilustrar seu conto, colocou-o como um dos amores da cabocla Liana.


Chico Anísio, além de radialista (desde 1947), humorista, cantor, craque do futebol de botão, showman, apresentador de televisão, ator e roteirista de cinema e marido da atriz e modelo Alcione Mazzeo, tornou-se escritor de sucesso em 1972, com O Batizado da Vaca, um dos livros mais vendidos daquele ano, reunindo histórias divertidas passadas no interior nordestino. A mesma fórmula e o mesmo sucesso repetiram-se com as novas coletâneas de histórias É Mentira, Terta? e O Enterro do Anão (1973), A Curva do Calombo (1974), e Teje Preso (1975).


No ano passado, Feijoada no Copa mostrou um Chico Anísio mais preocupado com o acabamento formal de seus contos e mais cuidadoso com o desenrolar da ação, antes limitado às anedotas e casos curiosos. Esse aperfeiçoamento de forma e de conteúdo é bem perceptível nos trechos do romance Carapau, que Homem publica agora em primeira mão. Ele será lançado em setembro pela Editora Rocco, que publicará em maio outro livro de Chico, O Tocador de Tuba.


ILUSTRAÇÃO ZIRALDO ALVES PINTO



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