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OS DOIS IRMÃOS

Ficção



Tinha uma missão: trazer o irmão de um mundo de sonhos para a realidade. Mas, valeria a pena?


Por OSWALDO FRANÇA JR.


Uma vez o homem demorou a encontrar o irmão. Ele já havia abandonado o trabalho no rio e não estava no alto do morro. O homem andou e perguntou muito por ele e quando o avistou, parou ao seu lado. Ele estava cavando o chão num trecho perto da serra e o homem perguntou:


— O que está fazendo?


— Estou seguindo um veio — respondeu o irmão.


O homem ficou ao lado da vala vendo-o abrir a trilha em direção à serra. Uma hora ele parou de cavar.


— Perdeu o veio de vista?


— Não, os sinais seguem para dentro da serra.


— E agora, como vai fazer?


— Vou parar — disse o irmão. — Não tenho condições de seguir em frente.


— Vai desistir, então?


— Vou. Vou desistir.


— E não está preocupado com isto?


— Não. Existem outros lugares onde eu posso continuar procurando.


O homem pensou que talvez aquele trabalho perdido pudesse desanimá-lo. Mas se enganou como havia se enganado quando o viu abandonar a busca dentro do rio. E em poucos dias foi encontrá-lo novamente trabalhando em outro lugar. Encontrou-o represando um regato e o trabalho era maior do que seguir o veio em direção à serra, ou raspar o fundo do rio com a enxada de cabo longo. Ele estava erguendo uma barreira de paus e terra e mudando o curso do regato. E uma hora ele parou e disse:


— As pedras que aparecem neste riacho brilham como pingos d'água.


Ele disse isto e voltou ao trabalho. E o homem regressou à sua casa e quando a mulher o viu entrando e perguntou pelo irmão, ele respondeu:


— Está represando um regato, procurando umas pedras chamadas pingos d'água.


E no dia seguinte quando voltou, encontrou-o sentado na beirada do barranco olhando um ponto no chão. Seguiu o seu olhar e viu um pequeno brilho no meio da lama amarela. E o irmão lhe disse:


— É o primeiro pingo d'água.


E o homem se abaixou para ver aquela pedra que brilhava no meio da lama, e o irmão repetiu:


— É o primeiro pingo d'água.


Disse e saiu de onde estava, e apanhou a pedra e colocou-a na palma da mão. E os dois a examinaram. Era de um tamanho tão pequeno que pareceu ao homem não ter peso, apenas brilho. Depois que a examinaram o irmão colocou-a outra vez onde havia aparecido. Fez um ninho no barro e o rodeou com lama amarela..


— Não vai guardá-la? — perguntou o homem.


— Não — respondeu o irmão.


— Não vai ficar com ela?


— Não. Ela tem pouco valor.


— Mas vai deixá-la aí, onde apareceu?


— Vou — respondeu o irmão. — Ela vai servir para chamar as outras.


E se afastou do lugar e disse:


— Ela é apenas um indício.


— Você represou o regato, teve todo este trabalho e não vai guardar a pedra que encontrou?


O irmão disse outra vez que ela era apenas um indício. Que não possuía valor e ia servir apenas para atrair as outras. E deixou-a no ninho de lama.


— Pegue-a — insistiu o homem. —Por menor que seja seu valor, representa um pagamento pelo que você já fez. Será melhor esta pedra, mesmo tão pequena, do que nenhuma.


Mas o irmão não deu atenção ao que ele dizia. Deixou a pedra onde ela estava e voltou a cavar e a revolver o barro. E apenas interrompeu a busca quando a água irrompeu do fundo da barragem. Apenas quando a água jogou para os lados a represa e fez com que as ferramentas, as panelas, as peças de roupa, tudo fosse levado para o meio do campo. Apenas aí ele interrompeu o trabalho. E o homem perguntou:


— E você?


— Eu também fui arrastado e fiquei estendido embaixo, no capim.


— E o pingo d'água?


— Perdeu-se. A água o levou.


O homem ficou olhando-o dar voltas onde antes se erguia a represa e disse:


— Se você tivesse me escutado. Se tivesse guardado aquela pedra, agora pelo menos teria uma lembrança.


Mas o irmão pensava em outras coisas. E comentou que sua falha foi não ter percebido que o galo que havia aparecido ali era de mau agouro.


— Eu não devia ter deixado que ficasse.


— Por quê? — quis saber o homem. — O que havia de errado com ele?


— Ele cantava à noite.


— E isto era ruim?


— Isto era de mau agouro.


O galo havia aparecido e ficado por ali. Quando escurecia, procurava um lugar e se empoleirava.


— Ele veio do campo e à noite cantava — disse o irmão. — Mas eu estava distraído e não me lembrei que isto era ruim.


— E o que aconteceu?


— No dia em que cantou mais alto, eu ouvi o estrondo da água avançando. Aí me lembrei do mau agouro mas já era tarde. Não podia mais evitar o que estava acontecendo.


"OUVI O ESTRONDO DA ÁGUA AVANÇANDO: ME LEMBREI DO MAU AGOURO, MAS JÁ ERA TARDE"

E falou como viu a água irrompendo e levando tudo. Levando até ele, arrastado para o meio do campo. E o homem pensou: "O que vai fazer ele agora, meu Deus? Irá fazer outra represa mais em cima e, quando encontrar uma pedra, chamá-la outra vez de pingo d'água? E depois colocá-la num ninho de lama e ficar esperando que sirva de chamariz para as outras?"


Mas o irmão não agiu desse modo. Não consertou a represa nem construiu outra mais em cima. E não apanhou as ferramentas, nem as bacias, nem nada do que a água havia levado e espalhado por lá. Deixou tudo como estava no meio do campo. Não se abaixou para apanhar uma peça de roupa. O enxadão que o homem avistou e mostrou a ele, ele não aceitou. Não quis de volta. Não tocou com as mãos em coisa nenhuma e foi embora. E nas vezes em que o homem voltou por ali, viu os sinais que a água havia deixado, mas não viu sinais de outras represas nem de outros trabalhos à procura de pedras. E o homem pensou: "Por que é assim, meu Deus?" E o enxadão e as outras coisas continuaram espalhadas pelo campo. E por mais de uma vez ele perguntou ao irmão:


— Não vai voltar onde fez aquela represa?


— Ali não serve mais.


— E as coisas que ficaram por lá, espalhadas?


— Elas também não servem.


— Por que não servem?


— Porque não — ele disse.


E não explicou mais. E por algum tempo fez apenas se dirigir para o alto do morro e ficar quieto, sentado, olhando os lugares por onde já havia passado à procura de riqueza.


o o o


Um dia, à tarde, o homem disse à sua mulher:


— Hoje, perto da casa de meu irmão, vi um rapaz jogando pedras em dois cachorros. Eles avançavam e o rapaz se defendia jogando pedras. Uma delas bateu na parede de uma casa e ficou a marca no lugar. Outra acertou num frango que ficou no chão mexendo as asas. A dona dele quando o viu morrendo, chorou e xingou o rapaz.


E o homem continuou:


— Meu irmão me disse que a mulher havia criado o frango desde pequeno. Ele a seguia por toda parte e comia na palma de sua mão.


E falou de como a mulher chorava e chamava o frango pelo nome.


— Ela chorava colocando as mãos no rosto e chamava o frango de Neve. Meu irmão disse que ela havia posto este nome no frango porque ele era muito branco e tinham dito a ela que a coisa mais branca que existe é a neve. Então ela escolheu este nome para ele.


Contou que o rapaz tentava se desculpar mas a mulher dizia:


— Você vai ter que pagar por isto. Você vai ter que me pagar.


E o rapaz falava:


— Mas eu não tive culpa.


— Você vai ter de pagar — repetia a mulher.


— A senhora fica com o meu chapéu — dizia o rapaz. — É o que eu tenho de valor.


E o homem contava como o rapaz oferecia o chapéu para a mulher e ela continuava chorando e xingando-o.


— Não gostei de ver isto — disse o homem.


Disse também que quando ele e o irmão se aproximaram de uma outra casa, ele viu um menino e uma mulher parados na porta. O menino era filho da mulher e estava com a roupa limpa e os cabelos penteados.


— Ele ia sair e ela estava com um algodão fazendo cruzes na sua testa.


E que depois encontraram um conhecido de seu irmão e conversaram com ele.


— Ele falou da sua filha que está completando um ano que morreu.


Ela havia morrido de febre. Ficou apenas dois dias com a febre e depois morreu.


— Ele disse que ela morreu sem que ele esperasse. Não tinha completado ainda sete anos e era sua única filha. E que desde muito pequena gostava de ficar, à noite, olhando para o céu.


E o homem depois de algum tempo comentou com sua mulher:


— Quando eu saio para procurar o meu irmão, há dias que são mais tristes do que outros.


o o o


Um outro dia o homem não encontrou seu irmão no alto do morro e nem soube dele pelos que passavam. Foi então à sua casa e perguntou:


— Maria, onde está seu marido?


A mulher do irmão o olhou com os olhos fundos e ele repetiu:


— Onde ele foi, Maria?


— Ele está na serra — ela respondeu.


— O que ele foi fazer na serra?


— Ele foi com os outros.


— Com esses que estão apanhando sempre-vivas?


— Ele foi com eles — respondeu ela.


— Ele também está fazendo esse trabalho?


— Não sei — respondeu a mulher. — Ele não me disse.


O homem saiu da casa de seu irmão e se dirigiu à serra. E quando encontrou o irmão ele estava sentado próximo aos outros que trabalhavam cortando sempre-vivas.


— Quando soube que você estava aqui, pensei que também estivesse apanhando flores.


— Não estou — disse o irmão.


— O que está fazendo, então?


— Foi para dentro desta serra que entrou o veio de ouro que segui desde o leito do rio.


— É só isto o que você está fazendo? Pensando no ouro? Os outros não estão pensando, estão apanhando flores e tendo lucros.


O irmão não lhe deu resposta. Continuou como estava: sentado, pensando. O homem saiu de perto e começou a andar. E viu que entre todos ali, apenas dois não se preocupavam com o quanto iam lucrar. Seu irmão e o louco a quem chamavam de "Rei das Sempre-Vivas". Ele olhou para o louco com seu feixe de flores amarrado na cabeça, andando de um lado para outro, e olhou para o seu irmão sentado, quieto, pensando no veio de ouro dentro da serra. E se aproximou do irmão e falou:


— Só vocês dois não estão apanhando flores. Só vocês não estão preocupados com quanto dinheiro podem conseguir.


O irmão não respondeu e o homem continuou:


— Ninguém está procurando riqueza, mas todos estão garantindo algum dinheiro. E só vocês dois não estão tendo lucros.


E perguntou se já não estava na hora dele voltar a ter uma vida igual a que todos levavam.


— Porque nem sempre você levou uma vida assim. Não é?


O irmão não lhe respondeu e ele continuou:


— Olhe, sua mulher e seus filhos vêm tendo anos ruins, e isto não preocupa você?


O irmão não ligou ao que ele falava. Não respondeu e continuou entregue apenas às suas preocupações.


— Mesmo à noite, quanto tudo está em silêncio, você não sente que é injusto isto que sua mulher e seus filhos sofrem? — perguntou.


Mas era como se não estivesse se dirigindo a ele. E o homem falou então do dia em que o filho dele caiu das pedras que se erguiam por trás da casa.


— Nem a cerca para impedir que seus filhos subissem até o alto você se preocupou em construir.


O irmão continuou olhando para longe e o homem pensou que talvez falando de uma coisa do tempo em que eram crianças e moravam na mesma casa, pudesse iniciar um diálogo. E se referiu a uma história que havia sido contada para eles quando ainda eram meninos. Quando ainda eram bem novos e moravam na casa do pai. Era a história de um pássaro que voltou para o lugar onde se lembrava de ter sido tratado com amor e carinho. Mas ao voltar feriu os pés na lâmina de uma faca esquecida no parapeito da janela onde pousou. E em seu pensamento de pássaro sempre perseguido, julgou que haviam colocado a faca ali exatamente para feri-lo. E desapontado e cheio de mágoa, voou embora. A menina que gostava dele e que o esperava desde o dia em que o viu fugindo, teve medo de que daquela vez não voltasse mais. E pensou num meio de fazer com que sua ida não fosse para sempre. Pensou num meio de fazer com que voltasse para ela. E arquitetou um plano.


O homem sabia da história até este ponto. A pessoa que havia contado a eles a história, contara até esta parte numa noite, deixando a final para a noite seguinte. Mas faltou à promessa e não foi à casa deles na noite seguinte. E ele e o irmão não ficaram sabendo o que a menina havia feito para conseguir que o pássaro voltasse. Isso tinha-os deixado pesarosos, e durante muito tempo o homem pensou como seria o final da história.


E foi dessa história que ele falou ao irmão. Enquanto falava, viu o irmão voltar o rosto para o seu lado e seguir com interesse o que ele dizia. A história que haviam escutado quando ainda meninos era viva na lembrança do irmão. E o homem pensou que talvez ali aparecesse o elo que faltava para que voltassem a se entender. E falou da história até o ponto em que sabia. Até o ponto em que haviam escutado quando meninos e aí parou. E viu o irmão continuar olhando-o. Continuar aguardando alguma coisa além do que eles já sabiam desde a época da infância. E o homem se sentiu surpreso com isso. E procurou continuar prendendo a atenção do irmão. Procurou uma semelhança entre as coisas que aconteciam na história e as que ocorriam entre eles. Mas não encontrou. Não conseguiu nada que se relacionasse com a história do pássaro. E se calou. E o interesse que o irmão havia demonstrado e que o homem vinha tentando despertar há muito tempo voltou a desaparecer. Um interesse que talvez os levasse novamente a um diálogo que o homem pensava já ter existido. Mas o homem interrompeu a história e viu o irmão tornar-se outra vez distante. Fugir outra vez para fora da sua capacidade de entendimento. E em casa falou à sua mulher:


— Com muitos ele conversa. Com muitos ele troca idéias. Mas comigo ele quase não fala. Ouve coisas sem sentido dos Outros e não escuta o que eu digo.


E comentou:


— Ele ouve pessoas estranhas que não se preocupam com ele e não escuta o que eu falo. Eu que sou seu irmão e me preocupo com ele, com sua mulher e com seus filhos.


E o homem se referiu ao velho preso numa cadeira de rodas com quem o irmão conversava.


— Ele sempre escuta as coisas que aquele velho diz.


E contou que uma vez havia dito ao irmão:


— Você ouve as histórias desse velho, mesmo sabendo que ele não pode ser levado a sério e não escuta o que eu falo.


ELE NÃO PODE SER LEVADO A SÉRIO. SEMPRE ANDOU ATRÁS DE COISAS QUE NÃO EXISTIAM

E que o irmão havia respondido:


— Você tem certeza de que ele não pode ser levado a sério?


— E eu estranhei isso — disse o homem à sua mulher.


E contou para ela as coisas que falavam do velho.


— Dizem que nada deu certo na sua vida. Que sempre andou atrás de coisas que não existiam. Que deixava a mulher e as filhas à míngua. Deixava-as na beirada do tanque se matando para lavar montanhas e montanhas de roupa, enquanto ia atrás de coisas que não existiam. Coisas que não ia encontrar nunca.


Disse que a mulher do velho morreu sentindo falta de ar de tanto esforço e trabalho.


— Morreu rasgando a blusa no corpo — falou o homem.


E que mesmo depois de todos esses sofrimentos o velho não havia aprendido. Ficava, agora que não podia mais andar, sentado numa cadeira de rodas contando histórias de mentiras.


— Histórias absurdas — comentou.


E disse que o velho durante o dia contava histórias; e à noite, chorava com medo de ficar sozinho. Chorava com medo de ficar sozinho e a alma da mulher aparecer para levá-lo. Contou de uma noite em que o velho acordou a todos gritando, pedindo socorro. Pedindo para que o socorressem porque sua mulher o estava levando.


— Ele disse que ela chegou a puxar suas mãos.

E que depois dessa noite as mãos do velho não esquentaram mais.


— Estão agora sempre frias. E ele tem medo de ficar sozinho e a mulher aparecer e lhe dar um abraço.


E o homem se referia às histórias que o velho contava. Falou da história do Rei da Riqueza que ele dizia que viveu no alto da serra.


— E meu irmão ouve essas coisas com atenção.


O velho dizia que esse Rei da Riqueza vinha até os campos e apanhava as plantas e elas saíam com pedras nas raízes.


— Pedras muito grandes e muito bonitas. As mais perfeitas de que já se teve notícias.


E contava que já havia dito ao irmão que não era possível ele ficar ouvindo aquelas coisas.


— E sabe o que ele me respondeu? Ele me disse que em tudo que se conta há sempre alguma coisa de verdade.


E dizia que o velho falava da casa que o Rei da Riqueza tinha construído no alto da serra. Era a maior casa que havia existido. Tão grande que todos em muitos e muitos lugares só falavam de seu tamanho e de sua beleza. E vinham pessoas de longe para conhecê-la. E quando chegavam perto ficavam ainda mais admirados porque ela era maior e mais bonita do que haviam imaginado. E o Rei da Riqueza cultivava e cuidava de suas terras como ninguém cuidava e cultivava. E era bom. Não deixava que nada faltasse àqueles que trabalhavam para ele. E que, apesar de toda a riqueza, era um homem triste. Andava sozinho e ninguém sabia o que ele pensava. Sabiam apenas que andava sozinho com uma grande tristeza no rosto, e que de vez em quando abaixava e apanhava uma planta e ela vinha com as raízes cheias de diamantes. E um dia o governo mandou prendê-lo. Seu poder estava tão grande que o governo teve medo e mandou que uns soldados o prendessem. E ele fugiu Chamou seus melhores empregados e fugiu com eles. Fugiram e nunca mais deram notícias. Os soldados perguntaram e procuraram, mas não conseguiram descobrir para onde haviam ido. E não se ouviu mais falar do Rei da Riqueza e de seus empregados.


E o governo mandou que os, soldados destruíssem o que ele havia deixado. E os soldados deram tiros na casa e nas coisas do Rei da Riqueza até não sobrar nada.


O homem mostrava como o velho contava essas histórias mexendo com as mãos debaixo da manta em que vivia enrolado, e dizia:


— Ele fala que foram milhares e milhares de tiros que os soldados deram na casa e nas coisas que eram do Rei da Riqueza.


Depois se referia a uma outra história que o velho contava. A de um quebrador de pedras que morreu em cima do morro.


— No alto do morro onde meu irmão sobe e senta. O velho diz que o quebrador de pedras trabalhou durante muito tempo na estrada que construíram na serra e que depois morreu ali, no morro onde meu irmão sobe e fica sentado.


Quando terminaram de construir a estrada que passa pela serra, o quebrador de pedras arranjou um trabalho perto de onde o irmão do homem morava e lá se feriu. E depois de ferido subiu no morro, sentou na sua parte mais alta e morreu. E o velho contava que ele ficou no alto perdendo sangue até fechar os olhos, deitar a cabeça no chão e morrer. Ficou perdendo sangue e olhando para longe. E antes de perder a consciência, disse:


— É preciso fazer as pazes com o Divino.


— O velho conta isso — disse o homem. — Conta que antes de perder a consciência o quebrador de pedras falou essas coisas.


E que havia dito essas palavras sem se dirigir a ninguém. Como se estivesse falando sozinho. Como se fosse um pensamento em voz alta. Um pensamento que de tão forte saiu em voz alta.


— E o velho diz que esta frase é uma mensagem.


E o homem reclamava com a sua mulher:


— E meu irmão escuta essas coisas. Escuta essas coisas e não escuta as coisas que eu falo.


o o o


O homem continuou seu caminho de volta para casa com a lembrança de sua mãe acompanhando-o. Ele a via surgindo pela porta, à noite, dentro de seu vestido rodado. Via seus cabelos e ouvia sua voz lhe dizendo:


— Eu estava esperando por seu pai.


Ela falava assim e ele se lembrava de como sua presença o enchia de alegria. E mais tarde quantas vezes ele não fechou os olhos para vê-la em pensamento. Vê-la andando pela sala, parando em frente à porta e prestando atenção ao barulho que a chamava lá fora. E se lembrava e sentia o seu beijo. E ouvia o seu aviso:


— Fique quieto. E cuide de seu irmão. Eu não demoro.


O homem se lembrava do sinal que a chamava e dizia para si mesmo:


— Isto o meu irmão não se lembra. Ele não se lembra do que era tê-la e depois ficar só com o silêncio.


E um dia, quando ainda novos, o irmão conversou com ele e falou:


— Os meninos disseram que minha mãe era a Ana da Porteira.


— E você brigou com eles?


— Não.


— Você não reagiu?


— Não. Era preciso reagir?


— Mas você sempre não me ajuda quando brigo com eles?


— É por isto que você briga? É por que dizem isto?


"OS MENINOS DISSERAM QUE MINHA MÃE ERA A ANA DA PORTEIRA". "E VOCÊ NÃO REAGIU?"

E o homem olhou o irmão e viu que aquele nome não representava nada para ele. Não despertava aquela necessidade tão grande de ferir, de colocar à força alguma coisa fora do lugar. E falou:


— Quantas vezes você enfrentou muitos mais fortes do que você só para me ajudar. Ajudar a reagir contra esse nome. Eu pensava que isto doesse em você.


— Por que ia doer? — perguntou o irmão.


E o homem havia pensado: "Será que os gritos do nosso pai o marcaram tão fundo assim?" E via o irmão ainda muito novo saltando nas marcas que os sapatos do pai deixavam no chão molhado. Saltando de uma marca para outra e, às vezes, escorregando e caindo. E lembrou-se da figura imensa do pai. Da sua altura muito grande e da distância de seus passos. E lembrou-se de seu enterro, com o irmão seguindo ao lado e ouvindo o amigo dizer:


— Vai, meu velho, falta só um pouco mais.


E ele pedindo para que não deixasse o amigo dizer aquilo.


— Ele não pode falar assim.


E o irmão respondendo:


— Ele pensa que deste modo o está ajudando.


E o homem se lembrou de quando recebeu o aviso de que o pai estava à morte. E quando chegou e viu o irmão.


— Há quanto tempo ele está assim?


E o irmão havia respondido:


— Há muitos dias.


— E você tem estado aqui, todos estes dias?


— Tenho sim. Ele não pode ficar sozinho.


— E por que você não mandou me chamar?


— Você tem seu trabalho, e eu estava aqui para olhá-lo.


— E esta vela, meu irmão, para que é?


— Você vai precisar quando for dar o remédio. Falta luz, à noite.


E naquela noite ele ficou com o pai. E quando acordou do seu sono e acendeu a vela, ela serviu apenas para iluminar o rosto do pai já morto. E ele colocou a vela na cabeceira da cama e esperou. E mais tarde havia dito à sua mulher:


— Eu dormindo no quarto para que ele não ficasse sozinho e nem o vi morrendo.


E se lembrou de como o corpo do pai sobre a cama lhe parecia imenso, à luz da vela. E de como o ficou olhando e vendo-o quando chegava de longe, do seu trabalho, clareando o caminho com a chama de uma taquara. Iluminando o caminho com uma luz que de muito longe mostrava a todos que ele vinha vindo. E o viu também em sua lembrança, muito alto, carregando acima da cabeça a bacia com a vela acesa, indo em direção ao rio. E soltando a bacia na correnteza para que ela fosse levada pela água e mostrasse o lugar onde devia estar o corpo do menino afogado junto da ponte. Lembrou-se de como todos desciam pela margem do rio com os olhos presos na bacia. E acima de todos, a figura do pai seguindo sem desviar os olhos da luz da vela que ia pela correnteza sem se deter. Sem indicar onde estava preso o corpo do menino.


E o homem via o pai muito grande, muito alto. Via-o perseguindo a mãe, levando-a aos gritos pelos quartos, pela sala. E muito tempo depois, de dentro de sua bebedeira, gritar:


— Quinze de junho era o dia do aniversário dela. Aquela vagabunda.


Via-o tomando toda a altura da porta e dizendo muitas e muitas vezes:


— O dia em que ela nasceu foi quinze de junho.


E o homem lembrava-se dele morto, imenso sobre a cama. E se lembrava de como esperou o dia clarear, e, ao vê-lo à luz do dia, já não o achou tão grande e tão imenso. E de como havia dito ao irmão quando o viu aparecendo na porta:


— Nosso pai morreu esta noite.


— Ele falou alguma coisa? — havia perguntado o irmão.


— Não. Ele não disse nada.


— Nas outras noites ele reclamava da sua cabeça que doía muito — o irmão comentou. E depois disse: — É preciso enterrá-lo.


— É preciso, sim — havia respondido o homem.


E o irmão tinha falado:


— Sonhei com ele esta noite.


— E como foi o sonho?


— Sonhei que ele estava deitado no meio do campo com muitas e muitas velas em volta.


— E o que significa este sonho? — perguntou o homem.


— Não sei. Penso que não significa nada. Foi apenas um sonho — havia respondido o irmão.


E o homem via em suas lembranças que em nenhuma vez havia posto a mão no ombro de seu pai. E isto era como uma sombra dentro ele. E pensou no tempo em que haviam morado na casa, os três juntos. E disse para si mesmo:


— E deixei para voltar apenas no dia em que ele morreu.


E viu que o irmão, dentro do seu mundo, ainda havia pelo menos mantido um diálogo com o pai, antes que ele morresse.


— E eu nem uma vez — disse.


E naquela sua volta para casa, vindo da encosta por trás da igreja, o homem pensou em si e no irmão. Viu como seus caminhos haviam sido sempre tão diferentes e como nunca chegariam realmente a se encontrar. E ele disse:


— Deus, o que eu faço para esquecer o meu irmão?


OSWALDO FRANÇA JR.


Oswaldo França Jr. começou a escrever porque queria comprar uma motocicleta. Não se sabe se chegou a realizar seu sonho, mas o conto que então escreveu foi o início de uma importante carreira em nossa literatura. Nascido em 1936, no Serro, a primeira cidade de Minas Gerais, fez a Escola de Aeronáutica no Rio de Janeiro. Transferido para Fortaleza, já casado, especializou-se em caças a jato.


Em 1964, Oswaldo França Jr. estava de novo em Fortaleza, após uma temporada em Porto Alegre. Foi reformado após a Revolução e, com dificuldades financeiras, decidiu voltar a escrever. Aconselhado por Rubem Braga, partiu para o romance e fez O Viúvo (1965). Seu segundo livro, também um romance, foi Jorge, um Brasileiro e ganhou o prêmio Walmap em 1967. Depois vieram Um Dia no Rio (1969), O Homem de Macacão (1972) e A Volta para Marilda (1974).


Oswaldo França Jr. deverá lançar brevemente um novo romance, pela Editora Rocco, com o título provisório de Os Dois Irmãos. É desse livro que retiramos um trecho, mostrando um pouco de sua fascinante narrativa sobre o desencontro de dois homens e suas atitudes diversas ante a vida: um deles é idealista e contemplativo; o outro, pragmático e sem imaginação.


ILUSTRAÇÃO WALTER HÜNE STUDIO



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