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SOLANGE E SEUS ELETRODOMÉSTICOS

Ficção


O bairro sabia, o prédio sabia, só ela é que não sabia


Por PAULO LEMINSKI


Quando Solange chegava, o bairro sabia, o prédio sabia, vê lá se um gato como eu, Mefisto, seu humilde servidor em troca de colo, carinho e copos de leite, vê lá se não ia saber este pobre gato sem leite desde as três da tarde, quando ela chegava, vê lá se o gato não ia saber, ele, eu, seu humilde servo e senhor de suas atenções noturnas, sem leite desde as três da tarde, malditas três horas quando minhas oito lambidas, todo o leite que Solange deixou no meu prato quando, vê lá.


Aqui dentro está quente, perfumado, e ela está abrindo a porta, muito tempo abrindo as várias fechaduras da porta, morrendo o eco do seu carro estacionando na garagem, Solange chegando, uma risada alta, o ar fervilhando, Solange chegando, a vida voltando.


Uma, duas, muitas as três fechaduras deste apartamento, o prédio sabia, a quadra sabia, janelas se acendem lá atrás, os cachorros latem estupidamente, o coração de tudo voltou a bater, só um gato mesmo pra suportar certas coisas.


— Clic!, disse a porta, e eis aí Solange, bem menos bêbada que sábado passado, mas, pelo olhar gelado, mais longe de alguém, de todo mundo, de ninguém.


É aí que eu entro.


Sei o que é que os cachorros do bairro vão dizer, Mefisto é um sem-vergonha, agüenta qualquer coisa em troca de colo e comida, a gente precisa dar um pau nesse cara, vamos ver se a dona Solange continua gostando dele depois que a gente chupar cada gota de seu sangue de canudinho. Um descalabro que tantos cachorros de respeito, pais de família, trabalhadores, andem por aí fuçando latas de lixo em busca de um osso de sopa, enquanto um gato inútil como aquele fique lá no bem-bom, bebendo leite morno e fuçando nos peitos de jasmim de dona Solange.


Sei lá o que os gatos andam dizendo, Mefisto não é mais aquele, corre de qualquer cachorro, sorte dele, que é um gato, senão, também com aquela mu-lher, miau, devem estar gritando em coro.


Tudo isso empalidece diante do fato de que Solange está entrando, fechou a porta, uma, duas, três, quatro, toc-toc na madeira para dar sorte, várias vezes, como sempre, como agora, como eu adoro quando ela me pega assim, me levanta assim, enfia a cara em minha cara, esfrega o nariz no meu nariz, desaba no sofá, atira os sapatos lá longe, e me esmaga no meio das suas pernas, morrer pode ser até que não seja uma má idéia, morrer assim, afinal, é ter, não é assim que morre uma gota de óleo perfumado que pingou na areia? Mas eu sabia, pelo cheiro, que a tempestade estava para chegar. Solange levanta, vai até o aparelho de som, aperta um botão e deflagra a guerra total, um clássico qualquer, um piano tentando conversar com um bando de violinos o impossível diálogo entre violinos e pianos, alto, mais alto, assassinato em primeiro grau. Agora, é a vez da televisão, um senador, gordo como um sapo, finge discutir com um repórter que sorri como uma máquina de sorrir fazendo perguntas com palavras que gatos decentes como eu fazem questão de não compreender.


Solange tira o som, e só deixa a imagem. Vai até a cozinha, despeja rum e dois ovos no liquidificador, põe no máximo e se retira.


Esperem, ela esqueceu alguma coisa. Pára. Olha. Medita. Pondera. E liberta o aspirador de pó, o último instrumento que faltava na sinfonia de todas as noites.


Como sempre, a tempestade só dura alguns minutos. Logo, alguém está gritando, luzes se acendendo, gritos ecoando pelos corredores, Solange resiste com, uma artilharia de vá-à-merda e a-puta-que-o-pariu, que só tendem a levar as coisas a um grau de exasperação, onde o comportamento racional não seja mais possível.


Obtido esse estado, Solange relaxa, e, entre gritos e vozes,


— Pára com essa zona aí!


— Eu quero dormir!


— Vou chamar a polícia!,


ela me pega no colo, me levanta no ar e:


— Sabe o que foi que ele me disse?


Esse ele já mudou tantas vezes (Jaime passou para Olavo, que tabelou com Edson, que atirou na grande área, Amaro bloqueia, Guilherme vem para lhe dar combate, mas o chute rola tranqüilo para as mãos de Djalma), tantas vezes que eu já nem sei, todos são meus rivais, mas quem dorme no colo de Solange, adivinhem quem é?


Não é esse, por exemplo, que está batendo na porta. É o porteiro, eu reconheço pela voz. Olho para a cara de Solange com o canto de baixo do meu olho esquerdo. Perfeito. Não era o que você queria?


— Dona Solange!, Dona Solange, o pessoal está reclamando!


Solange senta no sofá, me põe de lado, eu vou para o meu canto, uma almofada à minha esquerda, o prato de leite à direita.


Solange abre a porta, o que é que foi dessa vez?


O porteiro, retrato do homem de cor quando jovem, pondera, o pessoal está reclamando, a senhora sabe, por favor, sente-se, quer tomar alguma coisa, a noite está fria, está garoando lá fora, ela desliga a televisão, o pessoal aqui dorme cedo, cala a boca, Rachmaninoff, nada pessoal, aceita um rum com ovos?, sempre gostei dessa sala, a senhora tem gosto, acho que o gato já bebeu todo o leite, tem leite na geladeira?


Tem. Claro que tem, seu imbecil. Acha que eu ia ficar numa casa onde não tem leite na geladeira? Isso, pega meu leite, despeja aqui, isso, assim, aí, chega!, é leite demais, eu não agüento.


Solange vem lá de dentro, bonita no penhoar cor-de-rosa.


— O que é que você tem feito, moreno?


Conversa vai, conversa vem, vão lá pro quarto e desabam na cama, se agarrando como dois inimigos.


Quando Solange chegava, o bairro sabia, a quadra sabia, o prédio sabia.


Só Solange não sabia.


ILUSTRAÇÃO MILTON GLASER



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