top of page

Encontre no site

1042 itens encontrados para ""

  • CLÁUDIA RAIA | MARÇO, 1994

    Playboy Entrevista Uma conversa franca com a bailarina que virou show-woman sobre aplausos, vaias, sucessos amorosos e decepções políticas. Há dez anos, quando posou para PLAYBOY pela primeira vez, Cláudia Raia tinha quase exatamente o mesmo corpo que hoje. A diferença é para cima: ela cresceu 1 centímetro em altura e vários metros como atriz e bailarina. Aos 27 anos, com 1,80 metro e de volta aos 63 quilos da adolescência, Cláudia não só se manteve no pódio dos maiores símbolos sexuais brasileiros, como passou a acumular outros títulos. O talento de comediante, por exemplo, revelado em Viva o Gordo, amadureceu no saudoso TV Pirata e vez por outra volta a brilhar em especiais como Nunca Houve uma Mulher como Gilda, apresentado pela Rede Globo no fim do ano passado. Ela estrelou também algumas das novelas de maior sucesso da Globo, como Sassaricando, Roque Santeiro, Rainha da Sucata e Deus nos Acuda. Fez três filmes nesse período, o que no Brasil pode ser a maior das façanhas. E, correndo por fora das telas, simplesmente se tornou a grande show-woman do país, desde 1991 lotando platéias nas capitais por onde passou com seu espetáculo Não Fuja da Raia. E, agora, com Nas Raias da Loucura, que estréia em São Paulo no mês que vem para uma longa temporada. Definitivamente, aquela menina que em 1983 se revelava tão encantadora no musical Choros Line cresceu um bocado. Durante essa década, o feliz leitor de PLAYBOY pôde acompanhar o desenvolvimento de seu corpo como um privilegiado médico de família — desde a primeira sessão de fotos, quando tinha 17 aninhos, Cláudia enriqueceria com suas forma mais três edições memoráveis da revista. Mas, se alguém ousou imaginar que já tinha visto tudo, eis aqui uma surpresa; nunca Cláudia Raia se mostrou tão nua como na entrevista que você vai ler agora. Em seis horas de conversa franca e direta, quase sempre engraçada e às vezes veemente, ela falou de tudo. Da relação de amizade e a decepção com o ex-presidente Fernando Collor, por exemplo, ou do sofrimento com o boato mentiroso de que estaria com Aids. Da vida sexual plena desde a primeira relação, e das duas únicas e traumáticas experiências com drogas. Revelou detalhadamente as sensações que se tem nas cenas de amor das novelas e do cinema. Às vésperas de se casar com aquele que acredita ser o grande amor da sua vida, explicou a sua mudança para um estilo mais calmo e discreto. E, magicamente, voltou para um mundo de infância que só está à espera de um Ingmar Bergman para ser recriado como merece. Nessa história real, quatro mulheres moram sozinhas num casarão que ocupa quase uma quadra inteira no centro de Campinas, interior de São Paulo, herança de um barão do café de quem todas descendem. A mais nova delas, Maria Cláudia da Motta Raia, é uma garotinha feia que morre de inveja da beleza da irmã mais velha, Olenka. Todas dançam o tempo inteiro — a avó, Ernestina, dá aulas de balé, tango e bolero; a mãe, Odete, é dona de uma academia de artes que funciona no próprio casarão. Quando não está na ponta dos pés, a pequena Cláudia desce ao porão onde passa horas diante do espelho, coberta de fantasias e plumas de montagens antigas da mãe. Seu pai, um homem alto de origem grega, morreu quando a menina tinha 4 anos e, na falta de um modelo masculino em casa, ela cresce se acostumando a dirigir o próprio destino. Mais tarde, quando sobe do porão para a vida lá fora e encurrala o jovem professor de capoeira da academia num canto do jardim, desde o primeiro beijo é ela quem toma a iniciativa. Assim, não é de espantar que aos 13 anos embarcasse sozinha para morar em Nova York, ou que no ano seguinte estivesse em Buenos Aires dançando balé clássico no Teatro Colón e na mesma noite rebolando no teatro de revista do El Nacional. Para entrevistar essa pessoa tão especial, PLAYBOY mandou ao Rio de janeiro o editor-contribuinte Guilherme Cunha Pinto, que a seguir conta suas impressões. "A entrevista foi marcada para duas tardes seguidas numa suíte do Copacabana Palace, porque o apartamento de Cláudia Raia estava atulhado com a mobília dela e a de Edson Celulari, à espera da mudança para os dois novos endereços do casal: um apartamento maior em Ipanema e outro em Vila Olímpia, em São Paulo, para onde viajam seguidamente. Cláudia Raia sabe que impressiona ainda mais ao vivo do que em vídeo ou em fotografias. 'Todo o mundo diz isso', adianta-se ela, adivinhando meus pensamentos, em seguida a uma entrada triunfal pela porta giratória do hotel. Ao fundo, mas não diria em segundo plano, reluz pela transparência do vidro o BMW 1993 cor-de-vinho, avaliado em 86.000 dólares, que ela deixou nas mãos com luvas brancas do manobrista. Às 2 da tarde, energizada por 500 abdominais e duas horas de exercícios com pesos feitos pela manhã, discreta na medida do possível num tailleur escuro, ela está pronta para falar. Na companhia de sua assessora de imprensa, subimos para a primeira sessão de entrevista. De um modo geral, existem dois gêneros opostos de entrevistados: os objetivos, que respondem estritamente às questões, e aqueles que divagam e às vezes obrigam o repórter a puxá-los de volta para o tema. Cláudia Raia faz parte de uma categoria especial que reúne as qualidades dos dois estilos, pois decola com facilidade mas encontra sempre o caminho de volta para a linha de raciocínio de onde partiu. Ela é capaz de retomar uma resposta que deixou suspensa entre vírgulas para atender ao secretário, ou resolver algum problema da equipe de catorze pessoas que carrega pelo país com seu espetáculo — sim, porque além de atriz, bailarina e cantora bissexta ela se tornou empresária das próprias montagens e descobriu outro prazer na vida. 'Adoro ter problema para resolver', diz ao desligar o telefone de uma das muitas chamadas que receberia nessas duas tardes. Ao final da entrevista, é outro espetáculo ver Cláudia Raia deixando o Copacabana Palace. Enquanto ela desce a escada do saguão, majestosa como o cenário de um musical, vêm subindo duas turistas alemãs jovens, loiras e bonitas, que podem muito bem ser modelos em férias tropicais. Estão rindo, com sacolas de compras nas mãos. A atriz não parece tê-las notado, mas as duas param ao mesmo tempo, fascinadas pela visão daquela mulher altíssima, de pele perfeita e andar decidido, para quem todos os funcionários do hotel abrem passagem reverentemente, numa coreografia natural. Ao ver Cláudia Raia sumir num rodopio da porta giratória, essas moças vindas do outro lado do mundo podem nem saber quem ela é, mas não têm dúvidas de que ali vai alguém." PLAYBOY — Você se entende melhor com homens ou mulheres? CLÁUDIA RAIA — Tenho ótimas amigas, mas a maioria dos amigos que eu tenho são homens. As mulheres com quem me dou são mais ou menos do mesmo temperamento que eu. Jamais poderia ser amiga de uma dondoca, não dá. Tem uma coisa de competição entre mulheres, não é? PLAYBOY — Ciumeira? CLÁUDIA — Principalmente por causa dessa imagem que eu tenho, fica um clima em volta que elas mesmas criam. E é bobagem, porque nem me dou conta se tem algum homem me olhando, se alguém piscou, não percebo mesmo. Sou desligadérrima com isso, entendeu? PLAYBOY — Ou seja, você não fica esperando a aprovação, um sinal, um convite. Quando está a fim, você é quem toma a iniciativa, não é? CLÁUDIA — Exatamente. Então não fico observando esse tipo de reação. Na verdade eu sou muito pouco assediada, acho que intimido um pouco pelo tamanho, por tudo. Então fui eu sempre que ataquei os homens, que tomei as atitudes. Sou uma mulher de personalidade muito forte, ligeiramente masculina nesse aspecto. "Eu sou muito pouco assediada, acho que intimido um pouco pelo tamanho. Então, fui eu sempre que ataquei" PLAYBOY — Mas acontece de reparar em quem não olha para você? Pensando assim: por que esse cara não quer nada comigo? CLÁUDIA — Acontece. Com o Edson foi assim, ele não queria me namorar de jeito nenhum enquanto durassem as gravações de Deus nos Acuda. Ele temia prejudicar o nosso trabalho. "Não vamos nos envolver" — esse era o bordão dele. Eu pensava: gente, não é possível, tem alguma coisa errada. Mas durante um bom tempo eu ainda aceitei isso, porque achei que ele pudesse ter razão. Imagine se a gente começa a namorar e dá errado. Imagine aquele par romântico da novela se detestando. Seria uma desgraça. PLAYBOY — A propósito, como são essas coisas? As cenas de amor... CLÁUDIA — Não são só as cenas de amor. É você conviver oito meses com uma pessoa, trabalhando com ela dez horas por dia, contracenando seguidamente com ela, e você odiando essa pessoa. É complicado. Tanto que, quando a gente é escalada para um par romântico numa novela, tenta criar a maior harmonia possível. Não rola beijo, pelo menos comigo, não rola sexo — é só uma coisa viável para que haja uma abertura, para você não entrar no set com uma pessoa com quem não tem a menor intimidade e sair abraçando e beijando essa pessoa. PLAYBOY — Mas e o inverso? Quando existe atração mútua, ela não se transfere para a interpretação? CLÁUDIA — Nem nessa novela, quando começou meu envolvimento com o Edson, nem em nenhuma outra, eu nunca beijei ator nenhum de verdade. Digo beijar com a língua, enfim, beijo mesmo. Como é a interpretação de um beijo? É você abrir um pouco a boca e fazer todos os movimentos para dar a impressão de fora que esteja acontecendo um beijo de verdade. E uma coisa técnica. É assim, pelo menos comigo. Assim eu proponho aos meus companheiros. PLAYBOY — Isso tem uma conversa prévia? CLÁUDIA — Não. Isso na primeira cena de beijo você propõe, na prática, e se a pessoa tiver outra intenção ela já segura. Nunca tive problema... a não ser uma vez, na novela Roque Santeiro. Na época eu estava despontando como símbolo sexual, e Maurício do Valle ficou tão emocionado de me beijar pela primeira vez que me deu uma mordida na boca. Ele não largava! Foi tão forte que a gravação teve de ficar uma hora inteira parada — e era uma cena de quermesse, com muita gente — até desinchar a minha boca. Hoje a gente conversa sobre isso e morre de rir, o Maurício e eu. Foi só. Sendo que em Deus nos Acuda nem no final, quando eu e o Edson já estávamos namorando, a gente deu um beijo de verdade. PLAYBOY — Os espectadores da novela jurariam que sim. CLÁUDIA — Mas não. Na verdade esse beijo da Maria Escandalosa e do Ricardo fomos nós que criamos, eu, ele e o Jorge Fernando, diretor da novela. A gente estava procurando um jeito de beijar que excitasse as pessoas, que emocionasse. Conversando, chegamos a esse beijo mais caloroso, mais fogoso que um beijo normal, com uma mão que entrava no cabelo, essas coisas. Isso no começo da novela. As pessoas já ficavam meio assim, mas não rolava absolutamente nada entre o Edson e eu. E depois, quando começou a rolar, também não mudou nada em cena. Tanto que eu fiquei muito surpresa com o beijo real dele. Era outra coisa, outro beijo. Adorei. PLAYBOY — Como foi isso? Você dizia que não queria misturar as coisas. Até que... CLÁUDIA — Até que usei a minha velha tática de atacar. E pronto. PLAYBOY — Onde foi? CLÁUDIA — No camarim. Eu fui lá e... nhact! PLAYBOY — Não dá para fazer um replay em câmera lenta? CLÁUDIA — Bom, ele não se decidia. Já estava acabando a novela, e pensei: tenho que tomar uma atitude. Um dia perguntei onde estava o Edson e me disseram que estava no camarim masculino. Sozinho? Sozinho. Falei para o camareiro: "Olha aqui, eu vou falar com ele e você fica na porta pra não deixar ninguém entrar, porque é um assunto urgente." O Edson estava no telefone, lindo, com uma camiseta vermelha. Perguntei se a conversa era importante e ele respondeu que não. Então pedi para ele desligar e disse: "Vim te dar um beijo." E dei. Foi assim que começamos a namorar. PLAYBOY — E a partir daí, nem um arrepiozinho nas gravações? CLÁUDIA — Sabe o que é? Você está concentrado, com um texto para lembrar, marcações determinadas. Milhares de pessoas a sua volta, e não é só o pessoal da gravação, o Brasil inteiro vai te ver e você não pode perder uma cena dessas. O profissional fala mais alto, é o seu trabalho em jogo, tem uma responsabilidade ali. PLAYBOY — E no cinema? Em seu último filme, Matou a Família e Foi ao Cinema, sua personagem namorava uma mulher, interpretada pela Louise Cardoso. Que tal a experiência? CLÁUDIA — A Louise é minha grande amiga, minha irmã mesmo, mas realmente não me apetece em nada porque eu não acho graça nenhuma em mulher. E eu tinha que dar um beijo na Louise no filme. Aquilo virou um inferno na minha vida, eu ficava o tempo todo com isso: como é que eu vou dar um beijo numa mulher? Na cena eu estou horrível, pareço uma tonta nessa hora, beijando a Louise com uma cara esquisitérrima. Dou um beijo estranhíssimo, passo a mão pelo corpo dela, desvio do seio quando ele aparece no caminho, é ridículo. Na verdade, fiquei adiando essa filmagem enquanto deu, até que pensei: "Eu sou uma atriz, tenho de fazer de tudo." E fiz. Mas foi difícil. PLAYBOY — Quando na sua vida você descobriu que queria ser atriz? Desde pequena? CLÁUDIA — Não. Eu cresci determinada a ser bailarina. "Quero ser a primeira bailarina do mundo", era minha frase. Pisei num palco pela primeira vez com 2 anos e meio, para dançar O Bem-Te-Vi Atrevido, e senti de cara que aquele era o meu mundo. Na verdade, antes de qualquer outra coisa, eu sempre soube que seria diferente das outras pessoas. PLAYBOY — Diferente como? CLÁUDIA — Eu nunca tive amiga da minha idade, nunca quis fazer programa de criança. Nunca brinquei de boneca, achava horrível. Então não tive infância e não sinto a menor falta disso. O que eu adorava era descer no porão e vestir as fantasias e as plumas diante do espelho. Colocava música e ficava dançando, inventando cenas. PLAYBOY — Não sabia, mas já estava trabalhando. CLÁUDIA — O balé é uma coisa difícil, sabe? Dançar dói, mexe com os ossos, porque a gente naturalmente anda em paralelo mas nas coreografias tem de se movimentar em outro sentido, na lateral. Desde cedo, o que a dança exige é disciplina, trabalho, repetição. A dança é um negócio militar: técnica, técnica, técnica. Como eu cresci aprendendo a dançar, a academia da minha mãe na nossa própria casa, naturalmente fui incorporando uma série de coisas que me ajudaram muito depois na minha carreira profissional, já adulta. Não falo só da formação em balé clássico, que é a base de tudo o que você queira dançar pelo resto da vida. Falo de coisas como respeito aos horários — e se eu chegasse um minuto atrasada, minha mãe me deixava de fora da aula. Ou de dar valor à aplicação, ao que se acerta nos ensaios. O Ruy Guerra, que me dirigiu no filme Quarup, disse que nunca tinha trabalhado com uma atriz que seguisse como eu as marcações de cena — e para mim isso é mais do que natural, porque no balé cada passo que você dá foi marcado, repetido mil vezes antes. PLAYBOY — Mas vamos voltar um pouco à infância que você não teve. O balé era tudo? CLÁUDIA — Não. Além de dançar eu queria fazer curso para tudo — violão, piano, guitarra, manequim. À noite, arrumava um jeito de me enfiar no carro do namorado da minha irmã, escondida no banco de trás, de pijama e chupeta. Aparecia dizendo assim: "Oi!", de surpresa. Eu queria sair com ela, claro. E eu também queria me maquiar, queria ter peito logo, botar cílios. PLAYBOY — Por que essa pressa toda? CLÁUDIA — Eu fui uma criança muito feia e tentava compensar isso de todo jeito. Tinha que me sobressair de alguma forma. Minha mãe me teve aos 44 anos de idade, contra o conselho do médico, que achava melhor ela abortar porque poderia ter uma filha com problemas. Um dos meus problemas, realmente, era a beleza da minha irmã Olenka, seis anos mais velha. Até hoje ela é linda, tem um gênero selvagem, bem diferente do meu — somos superligadas, ela cria todas as coreografias dos meus espetáculos, mas na época era um problemaço: ela era a paixão da escola, a cobiçada. Eu era a feia e talentosa. PLAYBOY — Você tinha um gênio muito difícil? CLÁUDIA — Eu era um inferno. Entre os 6 e os 7 anos de idade tive uma crise de identidade terrível. Vivíamos quatro mulheres em casa, meu pai já tinha morrido há dois anos e eu não me achava parecida com ninguém. E tinha aquele problema: minha irmã Olenka, como tinha sido um bebê maravilhoso, tinha uns três ou quatro álbuns de fotografia, o primeiro chumaço de cabelinho, a primeira unha cortada, o primeiro punzinho gravado. E o meu álbum não tinha nada, só umas três fofinhas. Então eu pirei, comecei a achar que era filha adotiva. Passei a chamar a minha mãe de dona Odete. Exigi que fôssemos fazer um exame de sangue, ela e eu. Só que nós eramos donos, praticamente, do maior hospital de Campinas, a Beneficência Portuguesa, que foi fundado por meu avô. Quando chegou o resultado do exame, achei que todos estavam num complô para forjar o resultado. Como o hospital era nosso, por que não? — imagine a minha cabeça... Então eu fiz minha mãe enfrentar uma fila de duas horas no Inamps para repetir o exame num lugar onde a família não tivesse nenhum acesso. PLAYBOY — Impressionante você ter noção das coisas nessa idade. Você era boa aluna? CLÁUDIA — Muito boa. Mas não era de estudar muito em casa, porque prestava uma atenção danada nas aulas e tinha ótima memória. Então existia aquela história de compensar minha falta de beleza e eu vivia às voltas com a arte, promovendo eventos culturais, animando a turma. Devia dar certo, porque eu tinha uma amiga linda, mas lembro de ficarem grupos de meninos me rodeando e ela sempre sem ninguém. Lembro também que escrevi umas duas pecinhas, que eu mesma dirigia e interpretava, e ia apresentando de classe em classe. Eram textos curtos, de nem dez minutos, porque eram oitenta classes na escola. PLAYBOY — Foi sua primeira excursão. CLÁUDIA — Apresentava tudo no mesmo dia. Imagine que o final da peça era chorando, então chegava um momento em que eu não tinha mais lágrimas, eu não tinha estoque para chorar em oitenta classes. Por isso levava umas rodelas de cebola num tupperware — na hora certa eu esfregava o dedão lá e levava aos olhos. PLAYBOY — Os colegas gostavam, você era aplaudida? CLÁUDIA — Era... eu era meio invejada no colégio, alguns me achavam metida, mas a maioria gostava. Eu definitivamente não sabia escrever, o texto era horrível — lembro de um deles que contava a história de uma estátua que ganhava vida. Eu entrava na classe, sob o silêncio geral, e subia num caixotinho. Parava, olhando para o vazio. Fazia uma imagem meio Nossa Senhora, com um lençol que me cobria a cabeça e servia para eu dizer o texto sem parecer que era eu que estava falando. Cobria lentamente a boca com o lençol e, sempre com os olhos imóveis, narrava o off para explicar a história, para as pessoas entenderem a peça. PLAYBOY — Que idade você tinha? CLÁUDIA — Uns 10, 11 anos. PLAYBOY — E seus esforços para ficar mocinha logo estavam dando resultados? CLÁUDIA — Bom, eu fiquei menstruada com 10 anos e meio. E sempre fui muito alta. Tive de fazer tratamento para parar de crescer, senão ficaria com mais de 1,90 metro. PLAYBOY — Como foi que você viu o começo da transformação do seu corpo, de menina para mulher? CLÁUDIA — Isso aconteceu um pouco mais tarde, quando eu estava nos Estados Unidos cursando o American Ballet Theater. Eu tinha 13 anos quando viajei para lá sozinha e já era bem grandona, mas ainda com corpo de criança. Lá em Nova York foi que me desenvolvi. Lembro que enquanto o seio crescia eu não conseguia nem ter a roupa em cima, porque doía. O carocinho aparece, vai se desenvolvendo e fica sensível, sabe? PLAYBOY — O primeiro sutiã, então, foi em Nova York. CLÁUDIA — Eu nunca usei sutiã. Meu ginecologista briga horrores comigo, diz que eu tenho de usar, mas eu não consigo. Cheguei a comprar, tentei, mas não deu. "Eu nunca usei sutiã. Meu ginecologista briga horrores comigo. Cheguei a comprar, mas não deu. Foi só para dizer que já usava" PLAYBOY — Então o primeiro sutiã foi o último. CLÁUDIA — É. Só comprei para dizer que já usava sutiã. Também aquele negócio de depilar a perna... PLAYBOY — Um autor americano já escreveu que não entendia como as mulheres podem ter medo de barata e coragem para arrancar os pêlos com cera quente. CLÁUDIA — Eu não tinha pêlo na perna, como continuo não tendo — a não ser do joelho para baixo, por um problema que eu mesma criei. Quando tinha 11 anos raspei para ver como é que era, já que toda mulher fazia isso. Agora tenho de depilar, mas como é só um pouco, posso fazer com cera de mel. PLAYBOY — Estando biologicamente apta para ter um filho desde os 10 anos e meio, você não pensa nisso? CLÁUDIA — Quero ter filhos, mas uma vez minha ex-sogra disse uma frase que nunca esqueci: "Tenha filhos só quando te bater no coração." Isso deve acontecer comigo lá pelos 30 anos, quando eu estiver administrando com mais tranqüilidade a minha carreira. PLAYBOY — Qual a imagem mais remota que você tem da sua infância? CLÁUDIA — A morte do meu pai, quando eu tinha 4 anos. Eu me lembro direitinho quando fui visitá-lo no hospital naquela noite e ele me disse que estava indo embora, que eu deveria seguir a minha carreira, que eu não tinha vindo ao mundo para sofrer. Que eu tinha uma missão a cumprir, era uma missionária, e lá de cima ele ia me ajudar. Fui dormir em casa e de madrugada chegou a notícia de que ele tinha morrido. Aí fui ao necrotério e lembro que eu era mínima, o caixão ficava muito acima de mim. As pessoas vinham e saíam chorando, vinham e choravam, e eu também queria olhar para ver o que tinha ali dentro. Então um tio me levantou no colo e, quando subi, não vi meu pai. A última vez que vi meu pai foi no hospital. No caixão eu vi, em vez dele, aquela imagem de Jesus Cristo — uma pessoa de barba, com uma túnica azul e os olhos azuis olhando para mim. Eu sorri e desci. PLAYBOY — É. engraçado: você com 4 anos e ele já te antevia como artista? CLÁUDIA — Minha avó e minha mãe eram bailarinas, e eu com 2 anos já estava no palco. E ele já sabia. Uma pessoa, quando está para desencarnar, fica com um poder, uma sabedoria que a gente não tem normalmente. Na verdade, ele deu uma mensagem para cada um de nós. PLAYBOY — E você costuma imaginá-lo lá de cima te ajudando? Acredita nisso? CLÁUDIA — Sou muito mística. Se bem que sinto mais isso da parte da minha avó Ernestina, que me acompanhou a vida inteira. É impressionante como eu sinto, eu percebo a ajuda dela, como ela conduz algumas coisas. A minha vida mudou da água para o vinho depois que ela se foi. Faz três anos que ela morreu e a primeira vez que eu a vi foi agora, há alguns meses, em Manaus. O teatro estava lotado e no meio do show, de repente, vi minha avó na platéia, mas a poltrona dela flutuava acima do público. Ela toda de branco, sentadinha de lado, me olhando, sorrindo e aprovando o show. É um momento do espetáculo em que há um cone de luz, e ela estava dentro desse cone, sorriu e desapareceu. Nesse instante eu voltei a ver o público, que me olhava, espantado, porque eu parei de falar, os técnicos correram lá atrás para ver o que tinha acontecido, então eu disse um "aaah!" retomei o texto lá da frente, dei um jeito de voltar e tudo acabou dando certo. Foi incrível. PLAYBOY — Você disse que mudou da água para o vinho depois que ela morreu. No quê? CLÁUDIA — Eu sempre dizia que quando ela morresse eu não ia agüentar. Ela era importante demais na minha vida, uma pessoa maravilhosamente louca, que morreu aos 86 anos dando aula de tango, de bolero, de balé, uma força tremenda. E eu, que temia tanto essa perda, passei por tudo bastante tranqüila, agüentei, entendi. Hoje, sou uma pessoa muito mais calma, muito mais equilibrada, me encontrei no budismo, achei a paz. PLAYBOY — Você cortou, escureceu o cabelo, parece mais discreta hoje. Também é resultado disso? CLÁUDIA — Todo o meu visual reflete o que me tornei. Eu era uma adolescente louca, insana, que parecia mais um evento que uma pessoa. Eu era uma árvore de Natal ambulante e me divertia com isso, na verdade procurava meu caminho o tempo todo. Usava brinco, chapéu, tudo junto, ficava uma mulher de um exagero impressionante, mas era superfeliz. PLAYBOY — Do jeito que você fala não dá para saber se você não teve infância ou se não teve adolescência, ou se misturou as duas fases numa só. Parece que usou chupeta até ter 1,70 metro de altura... CLÁUDIA — Foi. PLAYBOY — Não fez falta um período sem tantos compromissos, sem compromissos claros? Muitos jovens andam sem rumo numa fase, alguns chegam a experimentar drogas, parece que há uma tentativa de se desligar de uma parte do mundo em volta... CLÁUDIA — Eu experimentei maconha uma vez e dei tanto detalhe... Sou muito fraca para esse tipo de coisa, odeio tudo que me tire do meu prumo. PLAYBOY — "Tanto detalhe" foi o quê? CLÁUDIA — Ah, me joguei no chão, me encolhi inteira e rodava como um pião dizendo: "Eu sou uma maçã, me morde." Eu estava numa casa noturna, morro de vergonha só de lembrar. Eu já sou louca sem nada, entende? Aí, outra vez experimentei cocaína. Eu sou alérgica, tenho rinite, fiquei 24 horas espirrando, foi um inferno, eu me senti malérrima, não conseguia dormir, só espirrava. Foram as duas drogas que eu experimentei. Bebida eu tenho horror, não tomo nem licor. Passo mal, meu organismo rejeita. Então são coisas de que participei, uma de cada vez, e vi que não tinha nada a ver, porque eu sou uma pessoa que vivi sempre para o meu corpo, que é meu material de trabalho. Morei um ano em Nova York, vi aquela loucura toda e achava engraçado, até, mas não participei de nada. Podia ter virado qualquer coisa, uma louca, uma drogada, uma prostituta, sei lá, porque estava sozinha, aos 13 anos, podendo alguém me moldar de qualquer maneira. Mas nunca deixei ninguém me moldar. PLAYBOY — Lembrando da sua precocidade: com 13 anos, quando foi para Nova York, você ainda era virgem? CLÁUDIA — Fui e voltei virgem. Minha primeira transa aconteceu justamente na volta. Quando fui ainda era uma criança, claro que com um lado sexual muito forte, só que eu acho que descarregava tudo na dança. Lá pelos 11 anos eu vivia no porão treinando para o primeiro beijo. Beijava muito o espelho, com minha própria imagem. PLAYBOY — Eram beijos sensuais, apaixonados? CLÁUDIA — Beijos mesmo. Com a boca aberta. PLAYBOY — Você lambia o espelho? CLÁUDIA — Lambia! Sim, porque eu tinha de fazer como via no cinema e nas novelas. Até que um dia dei um beijo de verdade no Geraldo, que era o professor de capoeira na academia da minha mãe, e ficamos namorando. Mas quando fui para Nova York ainda era muito criançona, ainda usava chupeta para dormir. Que loucura: já fumava durante o dia, porque comecei com 12 anos, e usava chupeta à noite. PLAYBOY —Você sempre foi muito oral, não é? CLÁUDIA — Sempre. Então me imagine no avião, uma moçona alta, com cabelo pela cintura, salto alto, uma roupa linda, e de chupeta na boca para dormir. As aeromoças ficaram espantadíssimas. PLAYBOY — Era uma chupeta cor-de-rosa? CLÁUDIA — Azulzinha.. PLAYBOY — Sempre querendo chocar, hem? CLÁUDIA — Eu tinha duas, as duas azuis. Mas na excitação da chegada, quando eu arrumei as coisas no apartamento do Jo Jo Smith, um bailarino amigo da minha mãe que me hospedou em Nova York, acabei perdendo as chupetas. Desci até a farmácia e não achei nenhuma igual às minhas, que eram daquele tipo retinho. Só tinha duas ortodônticas, acabei não me acostumando com elas e assim perdi o hábito da chupeta. PLAYBOY — Não surgiu nenhum namorado nesse tempo todo? CLÁUDIA — Um bailarino russo. Mas nada muito sério, porque na verdade nesse tempo eu trabalhava muito, aproveitando a bolsa de estudos. Foi nesse período que comecei a me desenvolver como mulher, para depois explodir nesse mulherão no ano seguinte, quando também estava fora do Brasil, morando em Buenos Aires. PLAYBOY — Por que tantas viagens tão cedo na vida? CLÁUDIA — Bom, o curso em Nova York foi para a formação como bailarina clássica. Já Buenos Aires foi acidental. Minha avó adorava a Argentina e estava se mudando para lá, para ficar um ano. E eu fui com ela, pensando em passar um mês de férias. Só que quando cheguei lá o Teatro Colón estava promovendo uma audição para selecionar bailarinos e fui fazer, por curtição. Estava em plena forma, voltando da bolsa no American Ballet, e só queria ver como era. No meio da audição fui chamada pelo mestre, que me disse que eu estava aprovada e me perguntou se não queria ficar como primeira bailarina do Colón. Aceitei, lógico. E minha avó, que ia ficar um ano, veio embora depois de um mês. E eu, que ia ficar um mês, fiquei um ano e meio. PLAYBOY — Quanto eles te pagavam? CLÁUDIA — O equivalente a uns 2.000 dólares. Estava hospedada na casa de um outro amigo de minha mãe, um bailarino maravilhoso mas que fazia principalmente teatro de revista. Então a coisa começou a acontecer na minha vida. Nesse momento, estavam abertas as inscrições para bailarinos no teatro El Nacional, que apresentaria um musical chamado Sexytante. E eu, curiosíssima, também fui ver como era. Estava com uma calça jeans colada, uma camisa e uma sandália alta. Me sentei na última fila mas, quando o coreógrafo do espetáculo me viu em pé, disse: "Meu Deus, que mulher linda! Você dança?" O Rubem, que era o amigo da minha mãe, riu assim: "Se ela dança? Ela é a primeira bailarina do Colón!" Em resumo: subi no palco e eles ficaram enlouquecidos. Fui contratada com um ótimo salário, carro, motorista, apartamento. E fiquei conciliando as duas coisas. Fazia Romeu e Julieta no Colón, acabava o espetáculo e saía para o Sexytante no El Nacional, que ficava a uma quadra de distância. Ia soltando o cabelo, tirando as pérolas. Corria para colocar o maiô, carregava na purpurina, virava abóbora. PLAYBOY — Ou seja, já tinha se transformado numa linda mulher. Como é que acabou isso? CLÁUDIA — Acabou tudo de repente, numa noite em que o El Nacional pegou fogo. Era o mês de agosto, o Colón tinha dado férias, então eu vim ao Brasil com tudo marcado para voltar para Buenos Aires. Mas chegando em São Paulo eu vi que estavam abertas as inscrições para a montagem brasileira de Chorus Line, um musical que eu tinha adorado, tinha visto sete vezes em Nova York. Desde que assisti ao espetáculo pela primeira vez, meu sonho era fazer uma personagem, a Sheila. PLAYBOY — Definitivamente já não pensava só em balé clássico, não é? Passou a achar uma coisa careta? CLÁUDIA — Careta não, mas achava que não me completava, não me bastava. Também tinha a questão da minha altura, porque você não pode dançar com um homem mais baixo que você, e eu nas pontas dos pés fico com 1,90 metro. Em Buenos Aires ainda havia uns bailarinos iugoslavos enormes, mas aqui no Brasil ficava mais difícil encontrar parceiros. Só que não era só isso. Eu fiquei enlouquecida com Chorus Line, percebi que era aquilo que eu queria fazer. Então, no dia em que abriram as inscrições em São Paulo, eu cheguei às 15 para as 6 da manhã, era a primeira da fila. Fui para o teste vestida igualzinho à personagem, porque eu sabia bem como era, e também já falei o texto em inglês, porque quem ia fazer a seleção era um americano que montava o Chorus Line em todo o mundo, o Roy Smith. Para encurtar a história, das 1.500 candidatas só duas tiveram 10 em clássico e 10 em jazz, e eu era uma delas. Mas não ganhei o papel imediatamente. PLAYBOY — Por que não? CLÁUDIA — Havia uma outra candidata que nem fez os testes todos com as outras, porque era uma atriz consagrada em São Paulo. Então eu fui chamada para contracenar com ela, dançamos, cantamos, mas no fim acho que ninguém teve coragem de dizer que ela estava perdendo o papel para uma iniciante. O Roy afinal nos chamou e disse que ela seria a Sheila-titular e eu, a substituta. Perguntou se eu aceitava e eu disse que não. Peguei a bolsa e saí louca da vida, porque sinceramente não achava que ela fosse melhor que eu. Sou supercrítica comigo, nunca acho o que eu faço legal, porque o que é bom para mim é muito acima do que sou. Mas definitivamente ela não era melhor. Saí batendo o pé, o Roy atrás de mim e eu dizendo que ia voltar para Buenos Aires, que era a primeira bailarina do Colón, essas coisas. Mas minha mãe me encheu tanto a paciência em casa, dizendo que eu tinha de começar por baixo, precisava ser humilde, que eu acabei voltando atrás e fui assinar o contrato de stand-by no escritório do Walter Clark, que era o produtor da peça. Estava tão revoltada que recusei um lugar no sofá e fiquei sentada no chão. Então ele me ofereceu um valor e eu disse que não, que queria o dobro para assinar o contrato. Aquilo que ele estava oferecendo eu aceitaria para ficar em cena, no palco; mas para ficar frustrada, sozinha, sem aplauso, eu queria o dobro. PLAYBOY — Ele concordou? CLÁUDIA — Riu e disse que pagava. Mas acho que deram um jeito de oferecer um salário para a outra atriz não aceitar mesmo, e então quando a peça estreou eu já era a Sheila titular. Trabalhei como uma louca, ensaiava das 8 da manhã às 8 da noite, sendo que antes e depois disso eu tinha uma hora de aula de canto — porque eu não nasci mesmo para cantar. Sempre tive de estudar muito para ser não uma cantora, mas uma atriz que canta razoavelmente. E valeu todo o esforço, porque fui elogiadíssima pela crítica. Depois vim para o Rio com a peça e comecei a fazer também televisão, no programa Viva o Gordo, e aí se abriu outra estrada à minha frente. "Não nasci mesmo para cantar. Sempre tive de estudar muito para ser não uma cantora, mas uma atriz que canta razoavelmente" PLAYBOY — Sua vida sentimental, enquanto isso... CLÁUDIA — Eu tinha me apaixonado pelo Edgard, filho da Márika Gidali, do Ballet Stagium. Naquele estilo: "Quero namorar você", e já fui atacando. Nem perguntei se ele queria, com medo que ele dissesse um não, e taquei um beijo nele. PLAYBOY — Você já ouviu muitos nãos na sua vida amorosa? CLÁUDIA — Poucos. E bem mais quando era menor, criançona. Bom, mas eu também não fazia isso toda hora, é difícil acontecer. Mas quando eu quero uma pessoa, eu quero. Foi o que aconteceu com o Edgard. Namoramos, mas ele não foi o primeiro homem da minha vida. PLAYBOY — Pelo amor de Deus: quem foi? CLÁUDIA — Era um bailarino também, o Jorge, muito mais velho que eu — tinha 32 anos, eu 14. Foi a coisa mais natural do mundo para mim. Não senti nenhuma dor, nada foi desagradável, pelo contrário. Só um pouco antes eu estava nervosa demais, fumava um cigarro atrás do outro, mas ele conversou comigo horas e horas. A gente já namorava há um bom tempo, tinha marcado esse dia para ir ao apartamento dele, mas na hora bateu a insegurança. Lembro que quando tudo afinal começou eu joguei no chão um cigarro que tinha acabado de acender, o cigarro deve ter rolado pelo assoalho até a cortina — que era uma dessas de tecido bem sintético, porque pegou fogo e queimou na hora, tsshhh, de baixo para cima, só ficou aquele babado chamuscado no alto. Bem no quarto da mãe dele. PLAYBOY — Parece cinema: a câmera sai do casal, que intensifica as carícias na cama, e vai para uma cortina, que se incendeia. Muito simbólico. CLÁUDIA — Não é mesmo? Foi muito legal. Ele foi supercarinhoso. Soube conduzir muito bem. Então eu posso dizer que desde o início minha vida sexual foi sempre sem problema algum, muito saudável. Todas as fantasias que tive eu realizei, não fiquei com trauma algum. Talvez por ter dado tudo certo desde o começo, nunca tive problema com nenhum companheiro. PLAYBOY — Você quer dizer que nunca deixou de ter orgasmo numa relação? CLÁUDIA — Nunca. Sou uma mulher extremamente fácil nesse sentido, não tem de ter tamanho, coisas, posições. Existem mulheres que só se realizam sob determinadas condições — não é o meu caso. PLAYBOY — É como o Ziraldo, que diz que nunca falhou? CLÁUDIA — É. Sou uma Ziralda. Mas acho que para a mulher é mais fácil do que para o homem. Acho que vocês sofrem mais, a cabeça pode atrapalhar a qualquer momento. PLAYBOY — Já aconteceu de alguém se inibir com a perfeição do seu corpo e não conseguir seguir em frente? CLÁUDIA — Várias vezes. Mas em geral com pessoas de fora do meio artístico, ou que estavam começando e não estavam acostumadas com atrizes. Nesses casos, é comum confundir a mulher com o símbolo. PLAYBOY — Suas relações mais profundas sempre foram com artistas, não é? Primeiro esse time todo de bailarinos, depois o Jô Soares, depois o casamento com o Alexandre Frota, o namoro com Fausto Silva e o casamento agora com o Edson Celulari. Por quê? O universo dos mortais é muito chato? CLÁUDIA — Sabe o que é? A necessidade de explicar cada coisa é muito complicada. Olha, eu vou sair pra fazer uma foto numa praia lá longe, e não sei a que horas volto. Ou vou fazer uma cena de amor com o Antônio Fagundes. O cara diz: "Com o Fagundes?" É difícil ele entender que não tem nada a ver, é só profissional. PLAYBOY — Já aconteceu de um milionário desses que acham que o dinheiro compra tudo fazer, digamos, uma proposta indecente? CLÁUDIA — Diretamente para mim, não, mas para meu empresário umas três vezes. Ofereceram coisas incríveis — um apartamento, um carro... PLAYBOY — Por uma noite? CLÁUDIA — Por uma saída. Jantar... não sei, nem quis saber. Aliás, eu tenho um orgulho enorme de ter uma carreira feita sem concessão alguma. Tudo o que eu consigo é por mim mesma. Falo isso com a maior tranqüilidade: nunca precisei transar com ninguém, estar com ninguém, nem fazer parte de panelinha nenhuma. PLAYBOY — O que te atrai primeiro num homem? CLÁUDIA — Posso falar em teoria, porque estou completamente apaixonada pelo Edson, só consigo pensar nele, e se Deus quiser vai ser assim até o fim da vida. Mas geralmente o que atrai primeiro é o carisma, o comportamento. A roupa é uma coisa que me chama a atenção imediatamente. Depois o perfume — sou louca por cheiro. Um homem bonito, elegante e cheiroso... 50% já está ganho. Depois, evidentemente, o papo, a cabeça. PLAYBOY — Quais os seus perfumes masculinos favoritos? CLÁUDIA — O Pólo, do Ralph Lauren, que eu acho chiquérrimo, perigoso. O Van Cleef masculino. E um que eu não conhecia e o Edson usa, o Davidoff. PLAYBOY — E o que te afasta de um homem? CLÁUDIA — O perfil garanhão. Não quero mais esse tipo de homem na minha vida. Simplesmente não consigo viver com uma pessoa de quem eu possa desconfiar. Já tive relações em que ficava desesperada de ciúmes, agoniada, sem saber onde a pessoa estava. Não quero mais isso, é uma coisa doentia, isso é sofrer e acho que o amor não tem nada a ver com sofrimento. PLAYBOY — O casamento com o Alexandre Frota foi essa agonia? CLÁUDIA — O Alexandre é uma pessoa muito, muito... diferente, digamos assim. Eu gosto muito dele, tenho um carinho muito grande por ele. Mas foi um casamento muito adolescente, entendeu? Ele era muito imaturo, nem sabia que estava casado, não sacou isso. PLAYBOY — E a questão da Aids? CLÁUDIA — Engraçado, eu nunca fui uma mulher de muitos parceiros. Sempre tive poucos namorados por muito tempo. Jamais gostei de estar saindo a cada hora com uma pessoa diferente, sempre tive horror disso. Até porque me sinto extremamente incomodada com isso, vazia, sem rumo. Quando estava solteira eu geralmente namorava meus ex-namorados, sempre me preservando muito. PLAYBOY — Como está aquele seu processo contra o médico Ricardo Veronezzi, de São Paulo, que dois anos atrás declarou que você tinha HIV positivo? CLÁUDIA — Perdi em primeira instância e recorri, mas o processo é lentíssimo. PLAYBOY — Por que você acha que ele disse isso? CLÁUDIA — Não sei, ele é completamente louco, nunca me viu na vida, nunca teve acesso a qualquer exame meu. Não sei, acho que ele quis fazer uma piada sobre o Collor. O Jânio Quadros estava hospitalizado no Hospital Israelita Albert Einstein, muito mal, naquela época em que o Collor emagreceu muito. O doutor Veronezzi saiu do hospital e os repórteres perguntaram se era verdade que o presidente Collor estava com Aids. Ele falou que só respondia em off. Os repórteres desligaram os microfones e ele disse: "O que eu posso dizer sobre isso é que o teste HIV da Cláudia Raia é positivo." E saiu rindo. Loucura, né? Naquela noite eu fui a uma festa da Brahma, aqui no Rio, junto com o Alexandre. Quando a gente chegou foi aquele escândalo de flashes dos fotógrafos, luzes acendendo — até comentamos: "Puxa, que sucesso a gente ainda faz juntos!" Foi quando vieram me contar o que ele tinha dito. Na manhã seguinte eu estava fazendo o exame, apavorada. PLAYBOY — Como foi até receber o resultado negativo? CLÁUDIA — Fiquei duas noites sem dormir, pedi para passarem o resultado porque eu precisava dar uma entrevista para negar tudo. Mas pensava: por que essa pessoa está dizendo isso de mim? PLAYBOY — Você já tinha feito exame antes? CLÁUDIA — Na Globo a gente tem de fazer exame de sangue de dois em dois anos. Aí saiu o resultado, graças a Deus negativo, e dei a coletiva — uma coisa superconstrangedora, tendo de mostrar o exame. Mas graças a isso passei a fazer o exame a cada seis meses, virou um hábito, aliás acho que todo o mundo deve fazer. PLAYBOY — O seu advogado que desculpe, mas como é que você conseguiu perder esse processo na primeira instância? CLÁUDIA — Não sei. O juiz disse que eu queria me promover à custa dele. Impressionante, né? Mas mexeram com uma capricorniana: vou passar 100 anos recorrendo. PLAYBOY — Ainda te perguntam se você teve um caso com o ex-presidente Fernando Collor? CLÁUDIA — Ainda. PLAYBOY — E você ainda responde que não? CLÁUDIA — Respondo, vou responder a vida inteira, porque eu não tive, entendeu? Não é verdade! Sempre neguei quando ele era presidente da República e nego agora, quando eu não teria nada a perder. PLAYBOY — Mas por que ninguém acredita? CLÁUDIA — Acho que o Brasil é um país tremendamente libidinoso. Acho que isso faz parte de uma fantasia — aliás, é o auge da fantasia: a Cláudia Raia, que é esse símbolo sexual, perto de um homem superbem-sucedido, bonito, novo, inteligente, interessante. Já pensou? A Cláudia Raia e ele transado na despensa, não sei onde. Então... "Faz parte de uma fantasia. A Cláudia Raia, símbolo sexual, perto de um homem bem-sucedido, bonito, novo, interessante. Já pensou?" PLAYBOY — Mas não é uma exclusividade brasileira a ligação entre sexo e poder. Basta ver o noticiário sobre o presidente Bill Clinton, dos Estados Unidos. Ou John Kennedy. CLÁUDIA — Claro... Os homens muito interessantes e poderosos, isso sempre vai ocorrer. O Menem, da Argentina... se bem que o Menem dá motivos. PLAYBOY — Você conhece o presidente da Argentina? CLÁUDIA — Não, não conheço. Mas no caso do Collor a amizade vinha de muito antes. Eu conheço o Fernando há sete anos, quase oito anos. Eles e Rosane tinham se casado há seis meses, o Alexandre e eu estávamos para casar dali a seis meses, então ficamos os dois casais muito amigos. Eu sou muito carinhosa com todas as pessoas de quem gosto, logo vou tocando — até hoje eu me seguro para não ser mal interpretada, para não parecer outra coisa. Quando começaram os comentários resolvi mesmo me afastar, foi até uma coisa falada entre a gente, com a Rosane junto, para acabar com isso. PLAYBOY — Ela é muito ciumenta? CLÁUDIA — Ela é, mas de mim parecia que não. Porque mulher fareja, né, vê quando tem coisa. Ela é ligada, superesperta. PLAYBOY — Não é a imagem que a maioria das pessoas, a distância, tinha dela. Na verdade, a distância o ex-presidente sempre pareceu muito acima dela intelectualmente. CLÁUDIA — Não estou falando desse aspecto. PLAYBOY — Mas não é um casal que a gente vê e imagina que se completa. Por isso, talvez tenha sido tão fácil imaginar o presidente... CLÁUDIA — É, talvez tenha sido por isso. De repente na cabeça das pessoas eu formava com ele o casal perfeito. Mas eu não fui a primeira-dama, não sou e não pretendo ser, eu acho que nem gostaria de estar nessa posição. Eu não gostaria de ter nada com o Collor, até porque não sou uma pessoa que teria caso com um homem casado — abomino isso, não aceito, não gostaria que fizessem com meu marido e eu não faria com ninguém. Além disso, não nasci para ser segunda, não aceito dividir o que é meu com ninguém. PLAYBOY — Você tem alguma atração pelo poder? CLÁUDIA — Pelo contrário. Me assusta, acho que as pessoas enlouquecem com o poder. Eu me afastei muito do Fernando depois que ele virou presidente, embora tenha ficado muito feliz com a eleição. PLAYBOY — Mas se afastou por quê? CLÁUDIA — Porque uma pessoa que vira presidente passa a ter milhões de compromissos, de protocolos, quase não tem mais tempo para nada. PLAYBOY — Você foi uma das poucas pessoas do meio artístico a apoiar Fernando Collor no segundo turno das eleições contra o Lula, em 1989. Foram você, a Marília Pêra... CLÁUDIA — ... a Simone... PLAYBOY — Os artistas no Brasil, em outros países também, historicamente representam uma voz da esquerda. A Marília Pêra chegou a ser insultada pelo pessoal de uma passeata em São Paulo. Você sofreu muito esse tipo de agressão, principalmente depois que o governo dele foi afundado nas denúncias de corrupção? CLÁUDIA — Eu fui extremamente atacada. Não ganhei nada, só levei porrada. Fui superameaçada... PLAYBOY — Ameaçada como? Pessoalmente? CLÁUDIA — Por telefone, bilhetes, através do meu carro, quebraram meu vidro, furaram pneus. Mas, sabe, isso são coisas que eu não costumo revelar porque seria piegas da minha parte dizer: "Olha como fui massacrada." Fui, todo o mundo sabe que fui e pronto. Nunca ninguém me pediu para votar no Collor, nem me pagou por isso. Votei porque quis e as conseqüências eu tenho de sofrer calada, entendeu? Escolhi assim. Não tive culpa, não ganhei nada, não participei dessas falcatruas todas, não tenho o que temer. Sofri alguns boicotes, como visitar 150 possíveis patrocinadores da minha peça, Não Fuja da Raia, e receber 150 nãos. Mas sobrevivi, vendi o que tinha, banquei o espetáculo, foi um sucesso, deu tudo certo. "Não ganhei nada, não participei de falcatruas, não tenho o que temer. Sofri alguns boicotes, mas sobrevivi. Deu tudo certo" PLAYBOY — Entre seus colegas artistas você enfrentou algum problema? CLÁUDIA — Nunca. Eu fazia o TV Pirata na época, eram nove com o button do Lula e só eu com o do Collor, mas a gente se divertia muito com isso, brincava a toda hora. Também fiz um espetáculo de teatro durante esse tempo e nunca ninguém disse nada, eu tinha até um pouco de medo de que isso pudesse acontecer. Só o que aconteceu foi ter sido vaiada no Festival de Brasília por 3.000 pessoas... PLAYBOY — Como foi isso? CLÁUDIA — Fui ao festival para o lançamento do filme Matou a Família e Foi ao Cinema, do Neville de Almeida, que me pediu pelo amor de Deus para ir. O cinema nacional naquela crise, sem Embrafilme, sem verbas, e o Neville tinha feito um esforço danado para montar e sonorizar o filme. Antes da exibição subimos ao palco eu, o Neville e alguns outros atores do filme. Quando anunciaram o meu nome o teatro veio abaixo, era uma coisa uníssona. Eu fiquei parada, com as pernas completamente bambas, sem saber o que fazer. Nunca tinha passado por aquilo. Pensei: e agora? O Neville não ia ao microfone, ninguém ia. Então fui eu. Disse que agradecia os aplausos de alguns atores que saíram em minha defesa, mas também as vaias, porque tudo aquilo fazia parte da vida do artista. E que eu estava lá para apresentar com muito orgulho um filme que tinha sido feito com tanto sacrifício, apesar do término do cinema nacional — aí alguém gritou: "Foi o Collor, seu amigo!" Eu disse que exatamente o Collor tinha acabado com o cinema nacional e nós estávamos ali tentando revivê-lo, com todas as forças. Voltei ao meu lugar, e as pessoas continuaram a vaiar. Sentei, apagaram as luzes e eu tive uma crise de choro, os fotógrafos disparando os flashes para tentar pegar aquele momento. Aí aparecia meu nome no letreiro, vaia. Eu aparecia em cena, vaia. O único momento de aplauso do filme foi quando a Louise Cardoso me dá um tiro e me mata. Foi tudo muito difícil, mas sobrevivi. O tempo cura tudo. PLAYBOY — Depois que o governo Collor desmoronou e veio o impeachment, você se interessou em ler algum dos livros que trataram do período? Por exemplo, o de denúncias de Pedro Collor, a defesa do Cláudio Humberto, a história da ex-ministra Zélia Cardoso de Mello pelo Fernando Sabino? CLÁUDIA — Nenhum dos três. PLAYBOY — O irmão do ex-presidente chegou a falar em macumba nos porões da Dinda, em cocaína introduzida por supositório. Você viu alguma coisa disso? CLÁUDIA — Nunca, sinceramente. Nunca vi esse tipo de atitude. Pelo contrário: via um homem que olhava o Jornal Nacional e ficava aos urros de "vou salvar esse país, isso não pode mais acontecer, é um absurdo!", sabe assim? Pessoas morrendo de fome no Ceará, aparecia qualquer notícia dessas e ele ficava irado — e não era um palco onde tinham pessoas assistindo, éramos eu e a Rosane. E eu já era amiga deles há anos, não precisaria representar para mim. Então eu fiquei boba com as notícias de corrupção, do mesmo jeito que 38 milhões de brasileiros que votaram nele. Mas antes mesmo, quando vi o que estava acontecendo na cultura, quando vi que ele não tinha nenhum projeto para a cultura, já fui ficando desesperada. PLAYBOY — E quando foram se confirmando as denúncias de corrupção? CLÁUDIA — Eu perguntava para ele e ele dizia que não, que era uma calúnia, que estavam tentando acabar com ele. Mas ele dizia com uma convicção que era impressionante. Eu sempre falava com ele no telefone: "Fernando, isso está acontecendo?" E ele, desesperado: "Não, não está acontecendo." E eu não sabia o que pensar, porque me lembrava do que Fernando costumava dizer na casa dele, que não tinha dinheiro, que não se comprava roupa, que era preciso cortar despesas... PLAYBOY — Quando isso? CLÁUDIA — A última vez que eu estive na casa da Dinda foi na posse dele, antes da reforma dos jardins, que depois eu vi na revista. Mas ele sempre foi um homem que teve dinheiro. Um homem sofisticado, que sempre se vestiu muito bem e sempre teve tudo de melhor na casa dele. Você vê que ele é sofisticado pelas coisas de que gosta, pelos livros que lê, os lasers a que assiste... Ele ouve ópera, entendeu? Assiste balés na Rússia... PLAYBOY — E as drogas? CLÁUDIA — Perto de mim, pelo menos, nunca. Na campanha, pelo contrário, ele entrava no avião e pimba, dormia direto. Nunca foi de falar muito, sempre foi extremamente discreto, para dentro. PLAYBOY — Quando foi a última vez que você falou com ele? CLÁUDIA — Foi no dia do impeachment. A gente se falou no telefone e ele disse que estava certo de que ia ganhar. Eu falei que ele tinha aqui uma amiga, que politicamente algum dia a gente ia voltar a conversar, porque ele sabe que sou completamente contra isso tudo, sou radical mesmo, mas como amiga eu continuava aqui. Ele nunca me procurou, eu nunca mais liguei, mas confesso que estou bastante chocada, decepcionada mesmo. Mas eu também não fui a única a elegê-lo, não posso carregar essa cruz nas costas. PLAYBOY — Você votaria nele para alguma outra coisa, se não tivesse sido cassado? CLÁUDIA — Enquanto as coisas não forem completamente esclarecidas, é impossível isso. Eu até agora não sei exatamente o que aconteceu, ninguém sabe. Eu quero é que os culpados sejam punidos, presos. Se ele era um deles, a coisa tem de ser provada. Agora, eu não gostaria que uma pessoa envolvida em tantas coisas assim fosse eleita. Acho que até deveria partir dele essa vontade de se afastar. Eu já achei errada a atitude dele de tentar voltar, antes de esclarecer tudo. Uma pessoa que quer se redimir, ou quer mostrar sua inocência, tem de limpar essa sujeira toda e depois continuar. Essa ganância toda de querer se candidatar me parece uma loucura. PLAYBOY — A indignação virou geral quando se soube que durante o confisco eles continuaram formando um caixa. CLÁUDIA — E, quantas pessoas se suicidaram, se destruíram... Uma coisa de uma irresponsabilidade, sabe? Uma coisa muito grave. PLAYBOY — Você dançou com quanto? CLÁUDIA — Eu tinha um dinheiro na poupança. Não era muito, não, eram uns 3 milhões de cruzeiros. Cinqüenta mil ficaram liberados e eu tinha 3 milhões. Me lembro que a gente fazia uma novela, a Glória Menezes e eu, e as duas fumávamos Charm. Ouvimos a notícia, compramos um maço e dividimos, dez cigarros para cada uma. Mas naquela hora, tudo bem. Se fosse para ser como estava prometido, eu acho que num momento desses você até tira as calças para salvar o teu país. PLAYBOY — Afinal, você se arrepende de ter votado nele? CLÁUDIA — Não me arrependo de nada do que fiz, só do que não fiz. Participei de um momento político muito importante, acreditei numa pessoa — e errei, todo o mundo tem o direito de errar. Mas acho que se ele não tivesse vindo e feito tudo isso, nós não estaríamos passando por toda essa ação de limpeza. Eu acho que todo mal é para um futuro melhor, é para o bem. O que estamos passando agora é para o crescimento do país e acho que a gente vai conseguir sair dessa mais limpo. Desde que se vá fundo e se apurem todas as culpas. "Se eu tivesse de votar amanhã, estaria na UTI. Não estou preparada. Ainda bem que as eleições não são amanhã" PLAYBOY — Em quem você está pensando em votar na próxima eleição para presidente? CLÁUDIA — Não tenho idéia. PLAYBOY — Imagine uma lista assim: Lula, Paulo Maluf, Ciro Gomes, Antônio Britto, Fernando Henrique Cardoso, Antônio Carlos Magalhães, Leonel Brizola e Jaime Lerner. Você poderia apresentar uma ordem de preferência? CLÁUDIA — Não sei responder assim. Não sou uma pessoa que, depois de tudo o que aconteceu, vá te dizer: não quero mais saber de política. Acho isso extremamente covarde, e acho também que a opinião de um artista tem muita influência. Mas eu sinceramente não sei. Estou observando. Acho o Ciro Gomes muito interessante, está fazendo um governo bastante interessante no Ceará. É um rapaz novo, com garra — mas até bate um pouco de receio quando penso nisso, não é? Não sei. Sinceramente. PLAYBOY — Maluf, Antônio Carlos Magalhães... CLÁUDIA — Olha, queria dizer que fiquei impressionada com o Antônio Carlos Magalhães. Fui à Bahia com meu espetáculo e me senti no primeiro mundo, não existe nada igual no Brasil. E não só o teatro, a cidade está limpa, as pessoas mudaram sua mentalidade. PLAYBOY — E o Lula, definitivamente não gosta dele? CLÁUDIA — Mas eu gosto do Lula! Eu acho ele superespecial, com muito talento. Só não concordo com o projeto de governo dele, com as idéias dele. Assim como acho o Brizola um super-político, com um carisma incrível. PLAYBOY — E o Fernando Henrique? CLÁUDIA — Também gosto dele. Acho sério, concentrado. Idealista, de uma forma muito calma, serena, com maturidade. PLAYBOY — Antônio Britto e Jaime Lerner? CLÁUDIA — Não conheço nenhum dos dois suficientemente. PLAYBOY — Bem, encerrada a lista, você elogiou quase todo o mundo mas falou primeiro no Ciro Gomes. Se você tivesse de votar amanhã, portanto, ele seria seu preferido? CLÁUDIA — Se eu tivesse de votar amanhã eu estaria numa UTI tomando soro e tentando clarear as idéias. Não estou preparada para votar amanhã e o Ciro Gomes não é o meu preferido. Diante de uma lista de pessoas, eu respondi o que achava deles. Não tenho uma escala, por enquanto nem sei em quem votar mesmo. Ainda bem que as eleições não são amanhã. POR GUILHERME CUNHA PINTO FOTOS FERNANDO SEIXAS Publicado em março de 1994, ed. 224. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • NARCISA TAMBORINDEGUY | FEVEREIRO, 2013

    A mais divertida participante do reality show Mulheres Ricas conta como é dura a vida de milionária, explica seus bordões, dá a receita para ser uma socialite de sucesso e revela que é a estrela maior do universo POR NATHAN FERNANDES FOTO MARCELO FAUSTINI 1. Você voltou à segunda temporada do Mulheres Ricas como a estrela maior do reality show. Alguma das suas colegas compete com você em carisma e popularidade? Me convidaram para voltar e, para mim, é superdivertido porque faço o meu roteiro e eles vêm atrás filmando. Mas eu sou a estrela maior do universo, e não do programa. As minhas colegas são ótimas. Elas ainda chegam lá. 2. Você é ex-mulher do Boninho, diretor do BBB. Foi por vingança que você resolveu entrar em um reality show concorrente? Não. Fiz porque insistiram tanto que eu acabei entrando. A princípio, eu não queria. Não achei que seria esse sucesso todo, achei que não ia bombar. Mas, na verdade, é como se fosse sua vida normal, você só não pode falar certas coisas, e eles ficam te provocando, eles querem que você fale mal da outra, mas eu não falo mal de ninguém, nem ao vivo. 3. Qual é a verdadeira origem da expressão "Ai, que loucura!"? Eu estava fazendo um episódio do Você Decide, dirigido pelo Fábio Barreto, na Rede Globo. Interpretava uma colecionadora de arte, e um serial killer, que eu não lembro quem era, vinha me matar. Quando ele pegou no meu pescoço, gritei; "Ai, que loucura!" bem na hora da morte. Daí tudo virou um "Ai que loucura!" Da personagem passou pra vida real. 4. De onde vem todo o seu dinheiro hoje em dia? Vem das minhas rendas, aplicações. Eu também sou DJ em festas, coloco músicas... Eu toco Supretramp, Madonna, Lady Gaga, Amy Winehouse, Black Eyed Peas, Gilberto Gil, Zeca Pagodinho... É bem variada minha lista. Além disso, tem os anúncios que eu faço, meus dois livros. Fora a boneca que fala "Ai, que loucura!" e a linha de perfumes que eu vou lançar neste ano. 5. Você estudou para ser advogada e jornalista. Se eu quiser ser socialite, o que preciso fazer? Você tem de acordar tarde! Eu costumo acordar sempre ao meio-dia. Mesmo que eu não durma tarde, eu gosto de acordar nesse horário. Eu amo dormir, é bom para sonhar, se energizar. Mas tem de ser chique e elegante também. Tem de saber o que é bom. O que importa é a qualidade, e não a quantidade. Tem de ser seletiva... e acordar tarde [risos]. 6. Mulheres ricas também sofrem? Sofrem muito. Sempre têm dor no pé, dor na coluna... Afinal, todo mundo sofre: rico, pobre, milionário, bilionário, multimilionário. O sofrimento é para todo mundo. Quem vive sofre. Quando você sofre, acaba aprendendo alguma coisa e melhora. Mas se não aprender nada também fo... ooorget about it! Ai, que esquecimento! [Risos.] 7. Como você explica esse estranho fascínio dos populares por você? O povo gosta de mim porque sou uma pessoa educada, simpática, transparente, iluminada, whatever... Também sou muito simples, humilde, espontânea, e sou boa de garfo também. Não sou fresca! Mas acho que os gays gostam mais de mim. Eles me amam, adoram ouvir meus bordões. Ai, que gay! Eu e os gays temos a mesma conexão de alegria e liberdade. Eles me amam porque dentro dos gays tem sempre uma Narcisa para desabrochar! 8. Seu sorriso é enigmático e peculiar, as mesmas características do sorriso da Mona Lisa. Já lhe disseram que você se parece com ela? Ainda não. Você foi o primeiro, e eu adorei. [Risos.] Poxa, isso não é pouco, não! Eu seria a musa do Leonardo da Vinci se fosse da época dele. 9. Mas você já é musa do seu namorado, Guilherme Fiuza, que escreveu o livro Meu Nome Não é Johnny, não é? Sim, eu amo ele. Ai, que Guilherme! Ai, que amor! Ai, que delícia! [Risos.] Ele é o amor da minha vida, é o meu Shakespeare apaixonado. 10. Você já escreveu dois livros. Se ganhasse uma adaptação para o cinema, quem você escolheria para interpretar seu papel? Deixa eu ver... Hummm... Lady Gaga! Acho que ela daria uma boa Narcisa porque é meio irreverente, desajeitada, desligada, troca o sapato. Às vezes eu sou assim. Quem mais? Peraí... Gisele Bündchen? Acho que essa não dá! [Risos.] Tem uma ótima que é da MTV, também, a Dani Calabresa. Amei a imitação dela. O Ceará, do Pânico, me imita também. Adoro ele. Os dois são bons. Adoro! 11. É verdade que você foi convidada para fazer uma viagem de disco voador no Mato Grosso? Sim, uma amiga minha me convidou há algum tempo. Ela falou que até achou um negócio de ouro nesse lugar. Deixa eu ligar para ela para perguntar como era o nome disso [pega o celular, tenta ligar algumas vezes, mas não obtém sucesso...] Como é o nome? Ah, é uma pepita de ouro! Vou combinar essa viagem com ela, que mora no Canadá. Mas não é por causa disso que eu que ir. Quero ir por causa dos mistérios deste mundo louco. 12. Hoje você não bebe mais nada alcoólico porque diz que já bebeu o Rio Amazonas inteiro. Não teria espaço para mais um Rio São Francisco aí? Às vezes, sim, mas eu gosto de ficar careta. Eu gosto, mas evito. Bebo uma vez por mês, socialmente, para brindar. Um brinde ao sucesso! 13. Você é uma mulher glamourosa e cheia de classe. Como consegue manter a pose gritando em megafone para os hóspedes do Copacabana Palace e jogando ovos pela janela? Ah, essa história dos ovos já faz muitos anos. Nunca mais joguei, era brincadeira. Adoram me associar a "Ai, que bobagem!" Mas é verdade, às vezes eu pego o megafone para gritar para o meu cirurgião plástico na piscina do Copa. Eu amo meu cirurgião plástico. Já fiquei cantando com o Ron Wood [guitarrista dos Rolling Stones]: "I can't get no satisfaction". Ele de uma janela e eu de outra. Até o Mick Jagger deu tchau. Para o Bono Vox, eu gritei muito também, e minha empregada ficava falando: "Não tem biscoito Bono, não". E eu explicava que não era o biscoito [risos]. 14. Narcisa, você é gostosa? Sim, eu sou. Sou cheirosa, linda e gostosa. Quando eu me olho no espelho, eu me amo, me admiro. 15. Qual foi o lugar mais chique em que você já fez amor? No Hotel Emiliano. Sexo para mim é um oceano de força, de amor, que liga todas as pessoas, todos os continentes, todas as cidades do mundo. Sexo é tudo! Agora, detalhes sobre sexo, se você quiser saber, pergunte para a sexóloga Marta Suplicy, que entende. 16. No seu livro Ai, que Loucura!, você diz que "sexo limpa a alma e lubrifica o corpo". Você é adepta de gel, óleo massageador e outros brinquedos sexuais? Ah, eu gosto dos meus óleos. Mas não preciso de brinquedinhos, não, porque já tenho o meu Shakespeare apaixonado. 17. Se ganhasse um vibrador do seu namorado, você diria "Ai, que absurdo!", "Ai, que delícia!" ou Eike Batista? Diria "Ai, que delícia!" Porque tem mais a ver com sexo. Eike Batista é para quando você quer multiplicar os milhões. O Eike é um homem adjetivo; você fala o nome dele e não precisa falar mais nada. Ele também está ajudando o Rio de Janeiro, é um empresário maravilhoso. A gente tem muita sorte de ele ser carioca [Eike, na verdade, nasceu em Governador Valadares, MG]. Eu o conheço, ele sabe do bordão e adora. Amaria se ele criasse um "Ai, que Narcisa!" 18. Você costuma se definir como The Face of Rio. Acha que vai continuar sendo a cara do Rio mesmo depois dessa série de reformas pelas quais a cidade está passando para as Olimpíadas de 2016? Quem nasceu The Face of Rio não perde a majestade. 19. Algumas pessoas dizem que você é louca. É verdade? Não, sou supercareta. Eu tenho meus valores, meus princípios, minha ética e, sempre que eu saio deles, acabo me ferindo. 20. Então você diria que é uma pessoa normal? Ah, sei lá... O que é ser normal? Nem normal nem anormal. Sou simplesmente Narcisa. PRODUÇÃO EXECUTIVA KIKA PAULON ESTILO ANA HORA ASSISTENTE DE ESTILO JULIANA PARIS MAQUIAGEM E CABELO NAT ROSA Publicado em fevereiro de 2013, ed. 453. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • HORTÊNCIA | FEVEREIRO, 1988

    NOSSA RAINHA, HORTÊNCIA O ano foi todo dela. Nos Estados Unidos, nos Jogos Pan-Americanos, conquistou o mundo com um jogo de ouro e uma medalha de prata. E quem a imaginava capaz de produzir magia e beleza apenas com uma bola de basquete nas mãos, que se prepare agora para uma doce surpresa Perfil DALILA MAGARIAN O calor abafado do ginásio de esportes vazio, uma jogadora magra, um tanto baixa para os padrões internacionais do basquete (1,74 m), mas de músculos desenvolvidos, focaliza com os olhos pequenos e castanhos o aro acoplado à tabela, e arremessa. É cesta! Antes que a música de Sting pare de tocar no rádio-gravador comprado na Holanda, companheiro inseparável dos treinos diários, a bola passa pelo aro outras vinte vezes, sem nenhum erro. Essa precisão, que atordoa adversários e deslumbra torcedores e técnicos do mundo todo, faz de Hortência de Fátima Marcari, aos 28 anos, a melhor e mais festejada jogadora brasileira de basquete em todos os tempos. "Olha, eu acho que isso é nato, uma coisa de Deus", responde rápido quando alguém pergunta de onde vem essa habilidade para arremessar, saltar a trinta centímetros do chão na hora do jump e quase deslizar pela quadra conduzindo, com suas mãos de dedos finos e compridos, a bola de 750 gramas. De onde vem tanta habilidade? "É coisa de Deus", responde rápido Nascida no primeiro dia da primavera (23 de setembro), libriana, Hortência herdou da avó, italiana, além do nome de flor, a maneira falante, entusiasmada de se expressar. De Potirendaba, no interior de São Paulo, onde nasceu caçula de seis filhos, guarda o sotaque forte — que marca, de forma quase caricata, todo o relato de sua trajetória vitoriosa, desde o início da carreira, até o dia em que virou campeã e acordou como a rainha do basquete, justo reconhecimento às suas exibições inesquecíveis nos jogos Pan-Americanos do ano passado, nos Estados Unidos. Mas pouco, ou quase nada tem de majestade essa rainha de jeito simples, que compra ingresso para entrar nos jogos de outros times para não ter que dizer ao porteiro: "Olha, eu sou a Hortência". Em seu apartamento em Sorocaba, alugado e pago pela Minercal, equipe que ela defende há três anos, o único indício de que se está pisando em domínios reais é a enorme quantidade de medalhas, troféus e placas de ouro e prata colecionados em doze anos de carreira: seis vezes campeã paulista, medalha de prata no Pan-Americano de 87, campeã sul-americana e vice-campeã mundial de clubes. Dezenas de medalhas, troféus, placas de ouro e prata: jóias da rainha "Preciso de um apartamento maior para arrumar tudo isso", lamenta-se. "Quero fazer um quarto só de esportes e colocar aparelhos de ginástica para me exercitar em casa." E conclui, já a caminho do quarto de vestir: "Minhas roupas nem cabem mais no armário, olha só". E é verdade. No armário de um dos três dormitórios do apartamento onde mora sozinha, mas sempre assessorada pela empregada Ângela Maria, estão guardadas as camisetas, meias, tênis e shorts usados em jogos e treinamentos. As cortinas cor-de-rosa dão um toque quase infantil ao ambiente. Em todos os cantos para onde se olhe há dezenas de enfeites, souvenirs e presentes recebidos dos fãs de várias partes do mundo — só da China, tem uma coleção com quase 30 bonecas. Mas é no quarto ao lado, dominado por uma cama de casal forrada com uma colcha de babados e almofadas no formato de coração, tudo em tecido azul, que Hortência dorme, como ela mesma diz brincando, "antes que alguém consiga contar até três". Hortência não se importa de mostrar suas coisas. Ao contrário. Que é vaidosa, e gosta de se vestir com as roupas da moda, já se sabe — e uma rápida olhada no armário apenas confirma. Ali estão cuidadosamente guardadas saias de seda plissada, blusas de linho, pelo menos uma dúzia de óculos de sol e outra de relógios ("Para combinar com a roupa"), e um estoque de maquiagem capaz de fazer inveja a qualquer atriz de cinema. Hortência também não dispensa perfumes — Paris, de Yves Saint-Laurent, é seu preferido. O armário do quarto ficou pequeno para tantas roupas. Então, abaixo as roupas! "É Vicky quem me ajuda na maquiagem e na escolha da roupa quando tenho algum compromisso. Ela é formidável, tem o maior bom gosto. Graças a ela me visto bem", diz Hortência, fazendo questão de esclarecer que não paga nada em troca da ajuda. Vickv Rossano, uma uruguaia simpática que antes trabalhava como esteticista, há cinco anos se transformou numa espécie de fada madrinha da Hortência que é vista fora das quadras. É Vicky quem compra suas roupas, decide como deve aparecer nos programas de televisão e corrige sua postura. Foi ela, também, quem decorou o apartamento de Hortência, por exemplo, com um grande espelho na sala. Mas o que mais chama a atenção mesmo são as dezenas de troféus, placas e medalhas — ou não é justo que uma campeã tenha suas glórias sempre ao alcance das mãos? A ROTINA DOS TREINOS: 300 ARREMESSOS CONVERTIDOS Enquanto mostra suas roupas, Hortência lembra-se de que precisa consultar Vicky sobre o melhor vestido para usar à noite, numa participação no programa de Hebe Camargo. Antes de seguir até o estúdio, em São Paulo, ela passa pelo apartamento da amiga para trocar de roupa, fazer a maquiagem e ajeitar o cabelo muito fino, que ela pretende deixar bem longos, "iguais ao da atriz Kim Basinger, antes de 9 1/2 Semanas de Amor", meu filme preferido". "A Hortência é uma pessoa muito forte", define Vicky. "Aquilo que se vê na quadra — a persistência, a agressividade, a agitação — é a verdadeira personalidade dela, mesmo quando está fora do jogo. Mas é também uma pessoa muito doce e está sempre disposta a ajudar quando sabe que um amigo está em dificuldades", conclui Vicky, preocupada em passar pó no rosto de Hortência para que o brilho da testa não apareça no vídeo. O tempo que dedica aos amigos, às vezes Hortência não tem para si mesma. Queixa-se da falta de horários mais livres para poder fazer coisas simples como, por exemplo, ver novelas, acordar um pouco mais tarde ou ir à piscina do prédio para se bronzear. "Não posso me descuidar e dormir de madrugada, porque meu rendimento na quadra depende do meu estado físico. Se eu não durmo bem, acabo não prestando para nada", justifica. A disciplina e os cuidados com o preparo físico revelam um senso profissional quase fanático. Exigente consigo mesma e com os técnicos da equipe, Hortência treina religiosamente de quatro a cinco horas por dia, divididas em dois períodos, com folga somente aos domingos ou, quando muito, nas férias da Minercal. E jamais deixa a quadra antes de converter pelo menos 300 arremessos — afinal não há talento que resista, mesmo sendo "coisa de Deus", à preguiça e ao amadorismo. "Ela é hoje a maior cestinha do basquete nacional", proclama seu técnico, admirador e amigo, Antônio Carlos Vendramine. Na verdade, é muito mais que isso. De todos os cantos do mundo vêm elogios à agilidade e precisão que a transformaram em grande ídolo a partir do campeonato mundial disputado em 1983. A treinadora da equipe feminina de basquete dos Estados Unidos, Jody Conradt, não consegue disfarçar sua admiração quando fala sobre os certeiros arremessos de Hortência. "Sua habilidade é inacreditável. Mesmo desequilibrada, ela consegue arremessar com precisão." Uma de suas principais adversárias norte-americanas, a jogadora Cheryl Miller, confessa: "Eu sempre me considerei a melhor jogadora ofensiva do mundo até enfrentá-la em Caracas no Pan-Americano de 83". Como se não bastasse, Hortência saiu do último Pan, no ano passado, comparada a Larry Bird, o melhor jogador de basquete profissional norte-americano na atualidade. "Ela é agressiva, mas fria ao mesmo tempo", disse na época Denny Crum, técnico de Bird. As centenas de elogios que parecem despencar sobre Hortência onde quer que vá não interferem em seu comportamento dentro ou fora da quadra. Em dezembro passado, foi escolhida pelos jornalistas da Rede Manchete como uma das mulheres que mais se destacaram durante o ano, ao lado de personalidades como a escritora Adélia Prado, a atriz Bibi Ferreira, a cineasta Ana Carolina e a roqueira Paula Toller, entre outras. Dona de uma autoconfiança inabalável, Hortência não perde a concentração nem mesmo diante das torcidas adversárias mais furiosas, que, em vão, muitas vezes tentam combater seu talento com palavrões, bolas de papel e até pedras. "Eu me tranco e não ouço nada. Já estou acostumada com essa guerra", diz Hortência minutos antes de enfrentar a equipe Divino Salvador, em Jundiaí, num dos últimos jogos do Campeonato Paulista, no final do ano passado. No vestiário do ginásio adversário, de onde se ouve a gritaria impaciente dos torcedores, Hortência faz brincadeiras, conversa animadamente com as companheiras e comenta com Vanira Hernandes, uma de suas melhores amigas e vizinha de apartamento, onde pretende curtir o verão com seu carro novo (um Escort 88 vermelho) — nas praias do Guarujá. Antes do jogo, o técnico Vendramine dá as últimas instruções e as jogadoras unem as mãos para uma oração em silêncio. Quando saem, os olhares se voltam todos para Hortência, que inicia o aquecimento de braços e pernas num ritmo lento, compassado. IMÓVEIS, JÓIAS, AÇÕES E DÓLARES: TUDO VEIO DO ESPORTE Na quadra, durante o jogo, ela é sempre a líder da equipe. Não pára de se movimentar, fala muito, gesticula, e seu nome é gritado o tempo todo pelos fãs entusiasmados. A primeira cesta é dela, e a Minercal acaba vencendo a partida com uma vantagem de quase sessenta pontos. Hortência é a cestinha. Pura rotina na vida de uma jogadora que é dona de um recorde tão impressionante quanto difícil de ser superado: 124 pontos assinalados em uma só partida. Um recorde que vai demorar muito tempo para ser quebrado: ela marcou 124 pontos numa única partida É claro que tamanha competênçia custa caro. "Sou uma secretária muito bem paga", costuma dizer quando perguntam qual seu salário, já que no Brasil a profissão de atleta não é regulamentada. É um assunto sobre o qual Hortência não gosta muito de falar: ela não revela quanto ganha a ninguém — "nem à própria mãe", brincam os amigos. Nos meios esportivos, comenta-se que seu salário varia entre sessenta e oitenta mil dólares por temporada (convertidos em cruzados sempre pelas taxas do câmbio negro, de acordo com uma exigência feita por ela mesma à Minercal). E isso sem contar o aluguel do apartamento e os contratos de publicidade. Na verdade, o esporte garante a Hortência uma situação econômica bastante estável. Além dos apartamentos que possui em Catanduva, Presidente Prudente, Santo André e um outro recém-construído no Guarujá, tem dinheiro aplicado no mercado financeiro, em dólares e em ações na Bolsa do Rio. E, embora tente desviar o assunto, deixa escapar que é dona também de três chácaras ("porque ultimamente investir em imóveis é o melhor negócio"), jóias e brilhantes que prefere guardar no cofre a exibir nos dedos. À HORTÊNCIA, COM CARINHO O mesmo Deus que nos deu Garrincha nos dá Hortência também. Duas almas irmãs na arte de inventar no esporte coisas súbitas e sublimes. Pés e mãos inteligentes, brincando com a bola no coração da gente. Por instinto, infância pura. Hortência na quadra lembra Garrincha no campo: o mistério da finta é o mesmo; mesma é a chispa que os leva, num segundo, da velocidade zero à aceleração vertiginosa. Bola no chão, bola no céu. Hortência é uma flor de belas cores — branca, azul, rosa. Mas é também pássaro. Gazela que flutua, sem asas, escapando com a bola na quadra minada de abraços hostis. Hortência é formiguinha de fogo. Não sossega nunca, correndo, cercando, cercada — um olho na bola, outro na Paula. Hortência é guerreira: o arco prepara o lance lá atrás. E, numa faísca, irrompe no garrafão — uma flecha — para alvejar a cesta com a bola certeira. Esqueci de dizer uma coisa que talvez ninguém disse a Hortência: quando essa moça lança a bola, o que despenca na cesta é o coração da gente... Armando Nogueira FOTOS J.R. DURAN COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO KIKI ROMERO CABELO MÁRIO PIFLEIRO E PIETRO MAQUIAGEM DANTON E PIETRO Publicado em fevereiro de 1988, ed. 151. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • MARCOS PAULO | FEVEREIRO, 2008

    Playboy Entrevista Uma conversa franca com o ator e diretor de TV que mais namorou capas da PLAYBOY sobre sua fama de galanteador, os tempos de office boy, o dia em que foi agarrado por uma atriz em busca de emprego e a madrugada em que encheu a cara com o presidente Lula O currículo profissional de Marcos Paulo impressiona: diretor de núcleo da Rede Globo, já comandou 14 grandes produções, além de ter atuado em 34 novelas desde sua estréia na TV, em 1967. Definitivamente, não é pouca coisa. Mas é fora das telas, mais precisamente no campo amoroso, que sua estrela brilha mais intensamente. Sua lista de conquistas inclui estrelas como Lúcia Veríssimo, Vera Fischer, Mylla Christie, Ticiane Pinheiro e Flávia Alessandra, o que faz de Marcos Paulo o sujeito que mais namorou capas da PLAYBOY no Brasil. Vale dizer ainda que outras de suas namoradas, como Malu Mader, Nívea Stelmann e Marina Mantega, para citar apenas algumas, figuram na lista das mais pedidas. Some-se a isso o fato de uma das nossas futuras estrelas, a atriz Cibele Dorsa, estar namorando o diretor no momento em que a entrevista era concedida. Na ocasião, como é próprio de Marcos Paulo, ele parecia perdidamente apaixonado pela moça. Na semana seguinte, no entanto, ele encerraria o romance alegando "incompatibilidade de agendas". Dias depois, Marcos Paulo era flagrado pelos paparazzi ao lado da atriz Antônia Fontenelle, 34 anos, seu novo affair. Pelo menos até o fechamento desta edição. Além de sucesso com o sexo oposto, Marcos Paulo também pode comemorar a boa sorte no trabalho. Atualmente, ele se divide entre a direção da novela das 6, Desejo Proibido, e o comando do programa Estação Globo, apresentado pela cantora Ivete Sangalo. É o único diretor da emissora que, quando lhe dá na telha, pode bancar o ator, sempre no papel de galã. Quem conhece esse bon-vivant apenas das fotos da revista Caras e dos ensaios das escolas de samba não pode imaginar os percalços que ele enfrentou antes de conhecer a fama. A despeito do seu jeitão de carioca, Marcos Paulo Simões nasceu em São Paulo há 57 anos. Sua mãe morreu no dia seguinte ao parto e coube à avó viúva, que fazia bicos como lavadeira e empregada doméstica, a tarefa de criá-lo. Do pai biológico, só viu fotos. No cortiço em que vivia, no bairro paulistano do Bixiga, era vizinho do novelista Vicente Sesso, que se afeiçoou a ele e lhe deu os primeiros trabalhos em comerciais na televisão. Antes de ser aprovado num teste para novelas da Rede Record, Marcos Paulo foi expulso do colégio e detido pela polícia depois de uma briga de rua. Também trabalhou como office boy e fez bolsinhas de artesanato. Sua vida financeira só começou a melhorar quando se mudou para o Rio de Janeiro, a convite da Globo — nem tanto pelo salário, mas sim pelo que ganhava como apresentador de bailes de debutantes. Se por um lado o papel de galã garantia os bicos nas festas de adolescentes, por outro Marcos sentia-se preso ao rótulo de canastrão, inevitável para os rostos bonitos da TV. Foi quando decidiu se mudar para Nova York e estudar direção. No retorno para o Brasil, dirigiu o seriado Plantão de Polícia (1979) e novelas como Roque Santeiro (1985) e Porto dos Milagres (2001). A despeito de seus inúmeros namoricos, Marcos Paulo já foi casado quatro vezes. A primeira delas com a jornalista Márcia Mendes. A segunda, com a também jornalista Belisa Ribeiro. Na seqüência, Marcos se casou com a atriz Renata Sorrah, com quem teve a filha Mariana, médica de 26 anos, e depois com a atriz Flávia Alessandra, mãe da sua filha caçula, Giulia, de 7 anos. Marcos também é pai de Vanessa, de 37 anos, fruto de um namoro com a modelo italiana Tina Serina. Marcos Paulo recebeu a repórter Adriana Negreiros em duas ocasiões. Na primeira delas, no Projac, tratou de assuntos profissionais. Na presença da sua assessora de imprensa, evitou os temas sexuais. Na segunda sessão, estava mais relaxado. O encontro ocorreu no seu apartamento com vista para o mar na Barra da Tijuca, um duplex com decoração clean e um quadro com inspiração surreal de sua própria autoria. Na companhia do cachorro, camisa pólo num tom quase cor-de-rosa, Marcos bebia café em xícaras com inscrições de poemas de Fernando Pessoa. A todo instante, interrompia os goles para cair na gargalhada. Digamos que, com o currículo que ostenta, ele tem razão para tanto riso. PLAYBOY — Pelos meus cálculos, você já namorou ou foi casado com pelo menos quatro capas da PLAYBOY. Corrija-me se eu estiver equivocada. MARCOS PAULO — Eu fui casado quatro vezes. A Márcia Mendes, minha primeira mulher, nunca fez capa. A Renata Sorrah também não. Nem a Belisa Ribeiro. E fui casado com a Flávia Alessandra, que fez capa depois que a gente se separou. PLAYBOY — Ok, mas os cálculos não são de quem fez PLAYBOY enquanto estava com você... MARCOS — Ahã [desconfiado]... PLAYBOY — Vamos à lista. Lúcia Veríssimo. Ela foi sua namorada, não? MARCOS — Foi. PLAYBOY — Mylla Christie, Vera Fischer e a Flávia Alessandra. Esqueci alguém? [Pensativo.] MARCOS — Eu tenho certeza de que sim. Mas não estou me lembrando de quem... Eu tenho que ver a lista [gargalha] . PLAYBOY — Esqueci de propósito a Ticiane Pinheiro só para testar sua memória. Ela fez PLAYBOY junto com a mãe, a Helô Pinheiro. MARCOS — Ah, foi mesmo! Ticiane... Ela foi capa, é verdade! PLAYBOY — Minha lista é essa, mas suponho que haja outras mulheres que eu tenha esquecido. De todo modo, você é o campeão. É o homem que mais pegou capas da PLAYBOY no Brasil. Parabéns. [Gargalha.] MARCOS — Que engraçado isso! PLAYBOY — Você está orgulhoso do título? MARCOS — Acho engraçado Não fico correndo atrás disso, não. Tudo é conseqüência da forma como você respeita a mulher. Acho que mulher, sem nada de pejorativo, é um ser diferente. Uma pessoa que engravida, que carrega uma criança na barriga por nove meses e que sangra todo mês não pode ser comparada ao homem. PLAYBOY — Você disse numa entrevista que não come besteira, exceto amendoim. Seria esse o segredo do seu sucesso com as mulheres? MARCOS — Eu adoro comer amendoim, mas sem casca. PLAYBOY — É a casca que contém o elemento afrodisíaco? MARCOS — É porque a casca cai e você limpa assim [passa a mão próximo ao púbis e cai na gargalhada]. Essa piada é veeeelha! PLAYBOY — Você tem sido notícia pelo seu extenso currículo amoroso. Afinal, você é um conquistador implacável? MARCOS — Nunca corri atrás disso. E até me incomoda, porque às vezes é queimação de filme [risos]. Acho que a gente tem que buscar ser feliz. Tem gente que dá muita sorte e encontra a pessoa certa na primeira, na segunda, na terceira. Mas eu também posso ter algum defeito, alguma peça defeituosa que já saiu de garantia, entendeu? Isto [ser chamado de conquistador] queima o filme. As amigas da moça dizem: "Sai desta, é roubada". Depois ainda ouço: "Bem que me avisaram..." PLAYBOY — Quando você aparece com uma namorada nova, os repórteres sempre perguntam a ela se não tem medo da sua fama de namorador. MARCOS — É exatamente isso o que eu chamo de queimação de filme [risos]. As amigas dizem: "Sai desta, é roubada, é chapa quente". Depois eu ouço: "Bem que me avisaram..." [risos]. PLAYBOY — A sua sorte é que você consegue encarar essa tragédia com bom humor. MARCOS — Tem que ser, né? Cara, a vida é uma só, não tem ensaio. A gente tem que viver da melhor forma, porque ninguém provou que existe outra vida. PLAYBOY — Você chegou a casar na igreja com alguma de suas mulheres? MARCOS — Com a Flávia Alessandra. Todo mundo queria que eu casasse. Logo que cheguei ao Rio de Janeiro, passei em frente à igreja da Glória e disse: "Se um dia eu casar, quero que seja aqui". Passaram-se muitos anos. Ah, tem que casar? Então quero um casamento de mafioso. Tem que ser de dia, na igreja da Glória, os padrinhos de fraque, um carro de 1940, com a noiva dentro. Enfim, o casamento do Coppola fazendo O Poderoso Chefão. Aí foi. Mas era começo de novembro, um calor de 55 graus e a igreja não tinha refrigeração. Foi um caos. O pai da Flávia veio no carro antigo que não tinha ar-condicionado, quase teve um troço [risos]. PLAYBOY — Você é um hedonista clássico, que gosta de mulheres e da boa vida, ou por trás dessa aparência existe uma pessoa... MARCOS — [Interrompendo.] Centrada, reclusa, tímida, que trabalha pra cacete pra poder conseguir isso, entendeu? Eu não tenho vida de playboy. Na verdade, as revistas fantasiam um pouco. Gosto, sim, de um bom vinho, de viajar, de jantar, mas eu gosto de trabalhar também. E trabalho bastante. Nunca recebi mensalão. PLAYBOY — Como assim? MARCOS — No começo da minha carreira de ator, eu fazia muito baile. A gente saía daqui na sexta-feira, às vezes no sábado, e fazia dois bailes. Era uma loucura. Eu dirigi muito naquela estrada onde morreu o Gonzaguinha [a BR-280, no Paraná]. Era no hotel que eu aproveitava para decorar o texto da semana seguinte. É horroroso você passar o dia trancado e só sair à noite. Mas eu chegava na segunda-feira com o trabalho em dia. E tinha que ficar trancado porque as meninas ficavam lá fora, tinha aquele assédio todo. Foi naquela época que comecei a ganhar dinheiro e a organizar a minha vida. Comprei meu apartamento... Essa foi a minha formação. Então, hoje, eu curto viver bem. Porque eu conquistei. Comia um sanduíche grego e voltava a pé para casa. Meu sapato era furado e eu usava uma palmilha de papelão. Se chovesse, virava um "melê" só PLAYBOY — Você nasceu em uma família pobre. Qual era a fonte de renda da casa? MARCOS — Minha avó era viúva e se virava. Lavava roupa pra fora, trabalhava como empregada doméstica. Logo que comecei a trabalhar de office boy, eu assumi o aluguel. E era engraçado, porque eu saía pra trabalhar com o dinheiro contado. Depois do trabalho, ia a pé pra escola e sobrava dinheiro para pagar a condução de volta pra casa. Só que à tarde me dava aquela fome. Na avenida São João [centro de São Paulo] tinha um restaurante que vendia sanduíche grego. Comia um e tomava um chope. Aí ficava sem dinheiro e voltava a pé pra casa. Eram 40 minutos de caminhada. O meu sapato era furado e eu usava uma palmilha de papelão. Se por acaso chovesse era um "melê" só. Mas eu me divertia. PLAYBOY — Você tem irmãos? MARCOS — Não. Minha mãe morreu no dia seguinte ao parto e eu fui criado pela minha avó. Minha mãe teve uma hemorragia, precisou de um estoque de sangue e deram sangue trocado para ela. Foi um erro médico no melhor hospital de São Paulo na época, o Hospital Matarazzo. Fizeram essa barbeiragem. Não conheci meu pai biológico, apesar de ver fotos e ser muito parecido com ele. PLAYBOY — Quantos anos de terapia foram necessários para você falar de assuntos espinhosos com tanta naturalidade? MARCOS — Tenho o mesmo terapeuta há 31 anos, mas não faço terapia direto. Tenho idas e vindas. Isso me ajudou a descascar o abacaxi. Tive depressões periódicas, mas superei e estou vivo. PLAYBOY — Certa vez você disse, repetindo Gilberto Gil, que só quem foi criado pela avó sabe o que é isso. O que quis dizer, exatamente? MARCOS — Eu fui criado por uma pessoa que nasceu em 1910. A educação, às vezes, passava por surra, coisa que, se fosse uma mãe, provavelmente não faria. Quando o Gil falou sobre isso, entendi por que a minha relação com a minha avó era tão diferente da relação dos meus amigos com a mãe. É uma educação muito mais repressora. PLAYBOY — Você era um garoto levado? MARCOS — Eu fazia traquinagens, sim. Consegui uma bolsa para estudar no São Bento [tradicional colégio de São Paulo]. Nos primeiros anos era um excelente aluno, ganhava prêmios. Só que depois começou a haver um conflito de ordem social. Os garotos eram ricos. Eles me convidavam para passar o fim de semana na casa deles, na fazenda. E eu nunca podia convidá-los para ir a minha casa porque tinha vergonha do cortiço. Então fui me rebelando e comecei a ter um mau comportamento. Minha produtividade caiu e eu acabei sendo convidado a sair do colégio. PLAYBOY — E o que aconteceu depois? MARCOS — Quando eu fui expulso, queriam me mandar para o colégio adventista, no interior. Falei que só ia algemado. Trabalhei de office boy e fiz bolsas e sandálias de couro. Tenho muita habilidade com as mãos. PLAYBOY — Você já disse que teve uma fase rebelde na adolescência. Nessa época, chegou a ser detido pela polícia? MARCOS — Sim, mas foi uma coisa rápida. Foi só aquele susto e depois me soltaram. Briga de rua. Quando eu tinha 17 anos, saía de madrugada para o que desse e viesse. Estava numa fase braba. Éramos uns três, quatro, barra-pesada mesmo. Era briga de rua todo sábado. Um inferno. PLAYBOY — Foi nessa época que você começou sua vida sexual? MARCOS — Foi um pouco antes. Dos 15 aos 17 anos a gente tinha carteira falsa para entrar nas boates da rua Augusta [região de prostituição de São Paulo]. Aí encontrava as meninas e assim rolaram as experiências sexuais. PLAYBOY — Conte sua primeira vez. MARCOS — A gente foi pra uma boate no sábado. Os pais de um amigo tinham viajado e depois fomos para o apartamento dele com as meninas. Foi a primeira vez da maioria ali. Porque até então era só "mela cueca". PLAYBOY — Quando você decidiu que queria ser ator? MARCOS — Comecei a trabalhar como ator muito cedo. Fazia comercial com o Vicente Sesso [autor de novelas]. A mãe dele alugava uma casa muito grande e sublocava os quartos. Era um cortiço. Eles moravam na parte de cima e nós, na de baixo. Eu e minha avó freqüentávamos a casa deles. Por muitas vezes eu começava a ver um ensaio e dormia ali no meio. Isso foi entrando na minha cabeça. Aprendi a fazer isso como um filho de peão aprende a tirar leite de vaca. PLAYBOY — E como foi parar na televisão? MARCOS — O Vicente me colocava em peças mirins e comerciais. Com uns 15 anos entrei na fase rebelde e disse que não queria mais ser ator. Mas quando eu estava com 17, soube que o Walter Avancini [diretor de TV] estava inaugurando um centro de dramaturgia na Record. Eu fazia bolsa de couro, ganhava pouco, e resolvi fazer o teste. Fui aprovado e não parei mais. Eu queria fazer arquitetura, mas não dava tempo. Já morava no Rio, fazia bailes de debutantes. Não tinha como estudar. PLAYBOY — Quando se mudou para o Rio para trabalhar na Globo, você morou próximo a uma zona de prostituição. Fez muitas amizades? MARCOS — Não, porque sou muito tímido. E já tinha a cara conhecida. Morei em Copacabana, perto da Prado Júnior. Morria de medo de sair sozinho. Saíamos sempre em grupo para jantar. Quando recebia o salário, ia no El Cid, um restaurante de carne que era o point. Foi lá que eu conheci o Tim Maia. O Tim Maia chegou num jipe cheio de putas e veio falar comigo. Ficamos amigos. Às vezes eu acompanhava o ritmo dele, outras não PLAYBOY — Como vocês se conheceram? MARCOS — Ele chegou num jipe aberto cheio de putas. Aí ele veio falar comigo na mesa, trocar idéias, porque me reconheceu da televisão. Ficamos relativamente amigos. Às vezes eu acompanhava o ritmo dele, às vezes não. E toda vez que eu ia ao show, ele dizia [imitando a voz do Tim]: "Marcos Paulo, passa no camarim depois". Eu ficava envergonhadíssimo. PLAYBOY — Naquela época, havia o culto à celebridade de hoje em dia? MARCOS — Não, esse culto é coisa de uns 15 anos pra cá. As pessoas nos viam na rua, pediam autógrafo, mas não era essa coisa toda. Naquela época tinha a Contigo!, a Amiga, acho que só. Agora aumentou o número de revistas e também vieram os sites. É uma quantidade enorme de informações numa velocidade gigante. E estas câmeras digitais e de telefone acabaram com a nossa privacidade. PLAYBOY — Por quê? MARCOS — Ninguém pede mais autógrafo, agora querem tirar foto. Só que esta pessoa que quer sair na foto passa a câmera dela para outra pessoa que não sabe operar a máquina. Então você fica com aquele sorriso imbecil. Porque a pessoa fala: "Dá um sorrisinho!". Então você fica com aquela cara imbecil até que a pessoa que está do teu lado resolva ir lá no sujeito que está com a máquina dizer como ela funciona. Nessa você já ficou ali cinco minutos [risos]. É infernal. PLAYBOY — Você já foi vítima de muitos episódios de invasão de privacidade? MARCOS — Nossa! Basta você ver estas últimas revistas aí. Eu tenho uma casa em Búzios. Vai um grupo lá pra casa. Eles fotografam várias pessoas na varanda. Mas se eu estiver do lado de uma que interesse a eles, eliminam as outras na foto e ficamos só os dois. É um inferno. PLAYBOY — Você tem uma relação dúbia com as revistas de celebridades, por exemplo: você vai à Ilha de Caras ao mesmo tempo que se queixa de que há invasão de privacidade. MARCOS — Não tem nada de conflito nisso, não, entendeu? Eu não vou ficar me escondendo. Se eu vou pra Ilha de Caras, eu sei o que vai acontecer. Sei que vou ser fotografado e que aquilo vai ser publicado. Invasão de privacidade é quando você não sabe que está sendo fotografado, quando flagram você mastigando. Mas não vou deixar de fazer as coisas, até porque me divirto e meu trabalho vive um pouco disso. PLAYBOY — Você é deslumbrado com o seu trabalho? MARCOS — Não. Eu sou de uma geração em que a gente aprendia que ser ator é uma profissão de muita responsabilidade. E nessa profissão. se você não tiver humildade, não aprende. Naquela época não tinha esse papo de celebridade. Não fui criado com deslumbramento. Ao contrário, aprendi a botar o pé no chão para que a carreira fosse longa. PLAYBOY — Qual a sua tática para baixar a bola de alguém que esteja se achando demais? MARCOS — Chego e falo: "Vamos até a minha sala". E passo o sabão: "Olha, a coisa não é bem assim, você tá indo pelo caminho errado e isso vai te levar para fora daqui, porque aqui não tem lugar para moleque". Chamo na chincha, meu trabalho é esse. PLAYBOY — Essas atitudes a que você se refere são pessoais ou profissionais? MARCOS — Pessoais não tô nem aí. A opção sexual e de vida dos atores não me interessa. Meu problema é da portaria para dentro. E se for preciso chamar a atenção, chamo mesmo. PLAYBOY — Dizem que, quando começou como diretor, você era bem durão. MARCOS — Foi a minha escola. O Vicente Sesso era assim, o Avancini também. Tudo funcionava na base do esporro. Eu dava uns esporros gritando mesmo, entendeu? Mas eu mudei, o conceito mudou. A gente teve reuniões na Globo sobre isso. Teve muita gente que continuou nessa e dançou. Hoje ainda tem um ou outro que faz isso, mas as pessoas reclamam. Ninguém quer atuar com a corda no pescoço. Galã era considerado mau ator. E eu só fazia isso. Um dia cheguei para o Boni e disse: "Não estou feliz, quero ir para Nova York estudar direção". E fui PLAYBOY — Consta que, quando foi para a Globo, você ficou incomodado com o papel de galã. O que podia haver de ruim em ser galã? MARCOS — O galã era considerado mau ator. Você tinha que provar que era bom. Eu vi que entre 1970 e 1977 estava fazendo o mesmo papelzinho. Um dia, cheguei pro Boni [José Bonifácio Sobrinho, ex-vice-presidente da Globo] e disse: "Olha, eu não estou feliz fazendo isso, acho chato demais. Quero ir pra Nova York estudar direção". E fui bancado pela emissora. Passei oito meses lá. PLAYBOY — Então você sentiu a típica depressão do inverno da cidade. MARCOS — Foram meses difíceis. No sábado, limpava o apartamento e ia ao supermercado. Comprava tudo congelado e jantava de frente para a televisão para treinar o ouvido para o inglês. Na época, eu namorava a [cantora] Olivia Byington e ela passou o primeiro mês comigo nos Estados Unidos. PLAYBOY — Você não compreendia o inglês? MARCOS — Eu tinha alguma noção. A Globo me deu um treinamento numa escola de línguas. Mas era um ensino tradicional. Quando cheguei a Nova York, não entendia nada, porque lá não se fala inglês, e sim um dialeto. Foi um horror até eu me adaptar. Então comprei um jurássico destes aqui [aponta para o gravador de fita cassete da PLAYBOY] e gravava as aulas. Quando chegava em casa, ouvia tudo e passava para o papel. Criei um método próprio de aprendizado. PLAYBOY — Não deu pra se divertir? MARCOS — Ah, sim. Havia um alemão na escola que tinha uma Kombi. Um bagaço. Ele pedia 500 dólares, porque queria voltar para a Alemanha. Liguei pra Olivia e plantei a idéia de comprar a Kombi e cruzar os Estados Unidos, de Nova York a Los Angeles. PLAYBOY — Ela topou? MARCOS — Sim! Comprei um guia e pegamos a estrada. Num dia a gente dormia em lugares como Las Vegas, que era um deserto, e no outro acampava nas montanhas, com gelo. Só quebramos o carro uma vez, no Novo México. Em Los Angeles, conheci o Zé Carioca [o músico José Patrocínio de Oliveira], que tinha trabalhado com a Carmen Miranda. Ele me emprestou uma grana e eu deixei a Kombi com ele. Ele vendeu e ainda me mandou o restante do dinheiro. PLAYBOY — Você viveu o auge dos anos 60 e 70, épocas de amor livre e drogas. Em que medida você viveu esses movimentos? MARCOS — Eu fiz tudo o que podia fazer. Tomava LSD, fazia amor livre, a aids não era uma ameaça. Era ácido, maconha... E os politizados diziam que nós éramos alienados. Mas não éramos, só não nos reuníamos para discutir política. Fiz tudo o que podia fazer. Tomava LSD, fazia amor livre. Era ácido, maconha... Diziam que éramos alienados, mas não. Só não discutíamos política PLAYBOY — Rolava patrulha ideológica? MARCOS — Claro! A televisão era considerada um veículo imperialista, e eu era o galã da TV. Pode ser paranóia minha, mas acho que eu era colocado de lado por ser o galã da televisão, entendeu? PLAYBOY — Quando usava drogas, você não se viu na iminência de se tornar dependente? MARCOS — Nunca. Na época, todo mundo usava drogas. Usava no fim de semana, quando não tinha que trabalhar. Mas nunca tive problemas com isso, nunca fui parar numa clínica com abstinência. A gente usava droga para se ilustrar. A droga não vinha da mão do bandido, vinha da mão de gente legal. Eram traficantes, mas não eram bandidos. PLAYBOY — Você já teve curiosidade de experimentar drogas para disfunção erétil? MARCOS — Já! PLAYBOY — Por curiosidade ou necessidade mesmo? MARCOS — Curiosidade. Temos que experimentar as coisas novas. E foi ótimo. PLAYBOY — Nesse caso, pelo menos, você se tornou usuário? MARCOS — Não, eu sempre fui muito normal nesse sentido, entendeu? Nunca precisei disso, sempre tive uma vida sexual saudável. Minha alimentação é regrada, faço ginástica e isso contribui. E a minha criatividade e minhas fantasias também [risos]. PLAYBOY — Só não conseguiu parar de fumar. MARCOS — Olha, eu não parei de fumar, mas quando faço checkup tenho desempenho muito bom na prova de esforço. O cigarro tem um determinado efeito para cada um. Tem gente que morreu de câncer no pulmão sem nunca ter fumado. Em mim não apareceu nada. PLAYBOY — O tumor que você extraiu do pulmão não tinha relação com o cigarro? MARCOS — Nada. Foi uma tuberculose que ficou encapsulada. Publicaram que eu estava com câncer. Quando tive alta, perguntei: "Doutor, entreguei minha vida nas suas mãos e quero que me diga com sinceridade: "O tumor tinha algo a ver com o cigarro?". Ele disse que não e saiu puto! PLAYBOY — Perguntinha cafajeste. MARCOS — Mas eu queria saber. Tem coisas que te dão prazer na vida e, se você deixar de fazer, já que elas não te fazem mal, qual é a graça? Pode ser que um dia saia e tome um tiro na testa. Aí fiquei sem fumar, sem beber... Entendeu? Mas eu vou parar, prometi à minha filha pequena. PLAYBOY — Nessa época de amor livre e LSD, você chegou a participar de manifestações contra a ditadura? MARCOS — Não efetivamente. Quando eu tinha 14 anos, participei de uma passeata até a antiga sede do jornal O Estado de São Paulo. Teve quebra-quebra porque o jornal era considerado imperialista. Nos anos 70, participei de outras reuniões, mas só comecei a me envolver mais na campanha das Diretas Já. Participei de comícios e conheci o Lula num palanque, em Belo Horizonte. Depois a gente foi para o bar do hotel, junto com um grupo, e conversamos até três, quatro da manhã. PLAYBOY — E ele bebeu muito? MARCOS — Rapaz, eu não sei [risos]. Porque estava todo mundo bebendo... A gente conversou, me lembro que falei para ele que queria me filiar ao partido e começou aquela discussão, filia ou não filia, vantagens e desvantagens... Depois nós nos encontramos em Brasília, quando ele já era presidente. Foi engraçado. Mas quando falo do Lula me refiro à pessoa. Ele é engraçado, relaxado, entendeu? A pessoa é completamente diferente do governo. PLAYBOY — Parece que você tem simpatia pelo Lula. MARCOS — Pela pessoa eu tenho bastante simpatia, mas não pelo governo. Socialmente ele é uma pessoa ótima, sempre muito simpático. Agora, governando... PLAYBOY — Você está feliz com o Lula governante? MARCOS — Não estou nada feliz. Eu botava muita fé. Fiz campanha para o PT desde que o partido nasceu. Fiz muita boca de urna para o Lula. Acreditava que o PT iria mudar o país socialmente. Mas não é o que está acontecendo. Não acredito que a fome seja resolvida com assistencialismo. Além disso, o Congresso está desmontado, as falcatruas do governo foram muito fortes. O poder corrompe demais. PLAYBOY — Você acha que algumas pessoas se aproximam de você por interesse? MARCOS — Sem dúvida. É difícil saber por que as pessoas estão se aproximando. Mas também não dá pra deixar de curtir uma pessoa legal só porque ela tem algum interesse. Isso você vai descobrir ao longo do tempo. Mas algumas são óbvias demais. PLAYBOY — O que é uma abordagem óbvia? MARCOS — Ah, são pessoas que não têm pudor e chegam se oferecendo. Eu fujo disso. Não gosto. Não uso o meu trabalho para isso. É uma situação delicada, pois a gente fica num gueto. A minha vida é do Projac pra casa, de casa pro Projac. Não saio mais à noite. Tenho poucas chances de me relacionar com mulheres de outros meios. Só com o tempo você vai saber até que ponto aquela pessoa gosta de você ou está agindo apenas por interesse. PLAYBOY — Já aconteceu de uma moça te agarrar para tentar um papel numa novela? MARCOS — Uma vez, no Carnaval do Rio, uma atriz me puxou e começou a me beijar. Pior é que havia vários fotógrafos. fiquei preocupado. Por sorte, nenhum deles viu. PLAYBOY — Você retribuiu o beijo? MARCOS — Fui praticamente violentado [risos]! Ela me beijou de qualquer jeito. Logo depois disse: "Quando posso passar na Globo?". PLAYBOY — Passou? MARCOS — Sim. Mas agiu como se nada tivesse acontecido na véspera. Talvez ela tenha tido amnésia alcoólica [risos]. PLAYBOY — E você conseguiu emprego para ela? MARCOS — Claro que não. Outra vez uma atriz famosa trancou a porta da sala na hora em que veio falar comigo. Estava com segundas intenções. Destranquei. Não dá. PLAYBOY — E quem era a atriz famosa em questão? MARCOS — É óbvio que eu não vou falar [risos]. PLAYBOY — Qual a dose necessária de beleza, simpatia e talento para uma mulher virar uma estrela da televisão? MARCOS — A beleza é importante, mas o talento é mais. A beleza abre portas, o talento as mantém abertas. Não adianta ser bonita e não morar ninguém atrás do olho. Por falar em olhar, a Fernandinha Vasconcelos tem um olhar brilhante... Ela é pequenininha... Mas o olho verde-azulado dela é uma coisa de louco. Sou fascinado pelo olhar dela. No bom sentido, é claro [risos]. PLAYBOY — Já estou achando que vocês vão constituir família. MARCOS — Estou falando profissionalmente [risos]. Se eu for jantar com a Fernandinha já vão falar que estamos namorando. Costumo dizer que com estas câmeras de telefone, se você sai para jantar com uma mulher, mesmo que seja para falar de trabalho, alguém te fotografa, manda a foto para um site e antes de pagar a conta você já está namorando a mulher. PLAYBOY — Quando falamos no começo sobre as mulheres que já foram capa da PLAYBOY, você destacou que nenhuma delas estava com você quando fez o ensaio. Você tem alguma coisa contra? MARCOS — Confesso que já tive. Era uma certa insegurança, por causa da minha posição na Globo, filhos... Mas de uns dois anos para cá eu mudei a minha cabeça. Tive uma depressão muito grande, passei por um tratamento sério e mudei bastante. Agora não é mais um problema. PLAYBOY — O que te incomodava? Era sua mulher ser vista nua por outros homens? MARCOS — Era. Hoje em dia não é mais. E também o excesso de vaidade que motiva uma pessoa a sair na PLAYBOY. Basicamente é isso, é revelar a intimidade publicamente. PLAYBOY — Você convive com pessoas muito jovens e num ambiente de trabalho de certa superficialidade. Não sente falta de embates intelectuais mais sofisticados? MARCOS — Muita falta. Hoje existem celebridades, não existem cérebros. Na área de cultura, não conheço mais ninguém. Os poucos que conheço não se agrupam. Nos anos 70, a gente estudava muito. Eu era casado com a jornalista Márcia Mendes e reuníamos lá em casa o [ator] Cláudio Marzo, o [jornalista] Tarso de Castro, o [dramaturgo] Bráulio Pedroso e falávamos sobre Fernando Pessoa, Salvador Dali. Agora eu não encontro ninguém para discutir um Drummond. A preocupação da rapaziada hoje é ir pra rave. PLAYBOY — Aos 85 anos, o Ziraldo diz que nunca falhou e que por isso doará seu corpo para a medicina. MARCOS — Nunca falhou em que sentido? PLAYBOY — Nunca brochou. MARCOS — Então a ciência nunca vai querer meu corpo [risos]. Porque eu sou um sujeito normal. Também tem que ver a freqüência com que o Ziraldo se dedicou a isto [gargalha]. Não se pode fazer uma afirmação assim isolada, tem que saber qual é o histórico! Não é possível... Mas você quer saber o quê? Se eu já brochei? PLAYBOY — Exato. MARCOS — Sim, claro que já! E eu não conheço ninguém que nunca tenha brochado [risos]. PLAYBOY — Você faz parte do time de caras que já transaram com mais de mil mulheres? MARCOS — Pó, isso aí é igual fazer o milésimo gol [risos]. Eu não tenho uma Fifa atrás de mim. Não posso fazer uma conta dessas. Primeiro por questões éticas, segundo por falta de controle. Digamos então que essa já é uma resposta. [Risos.] PLAYBOY — Existe algum boato a seu respeito que você gostaria de desmentir nesta entrevista? MARCOS — [Pausa.] De que eu sou um cafajeste com as mulheres. Não sou mesmo. Ah, já sei, este vai ser o título da entrevista: "Eu não sou um cafajeste!". PLAYBOY — Esta entrevista não tem título. MARCOS — Ah, ainda bem [gargalha]! POR ADRIANA NEGREIROS FOTOS CAMILA MARCHON Publicado em fevereiro de 2008, ed. 393. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • NATHÁLIA RODRIGUES

    Mulheres Que Amamos Linda e loura, Natália esbanja sensualidade com medidas exatas para as deusas: 1,70 metro de altura, 90 centímetros de quadris, 65 de cintura e 94 de busto. Na TV, participou da novela global Desejos de Mulher e na vida real é o desejo de muito marmanjo FOTO JAIRO GOLDFLUS Qual parte do seu corpo merece um destaque especial? Sou feliz com o que Deus me deu. Gosto do meu bumbum, é bonitinho. Qual a cantada mais criativa que você levou? Uma pessoa que admiro há muito tempo e amo de paixão chegou numa festa e disse: "Desculpe o incômodo, mas sou seu fã". Eu já gostava dele e ao ouvir isso... A cantado foi direta e estamos juntos até hoje, mas o nome dele é um segredo. O que você mais repara em um homem? Sou uma pessoa antibeleza, não reparo no todo estético. Gosto de homens românticos que saibam conversar, com conteúdo. Qual o seu símbolo de felicidade perfeita? Preciso amar para ser feliz, não vivo sem amor! COORDENAÇÃO MAINA HELENA FALAVIGNA PRODUÇÃO SUSANNE SASSAKI CABELO E MAQUIAGEM FÁBIO RODRIGUES Publicado em fevereiro de 2003, ed. 331. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • ESTRANHOS

    Ficção Eram seios perfeitos. Não havia mais a fazer senão acariciá-los enquanto enfiava a mão em sua calcinha branca Por SÉRGIO SANT'ANNA Cheguei à portaria daquele edifício, em Botafogo, para ver o apartamento, quase ao mesmo tempo que uma mulher. Notei que ela estava nervosa, pelo modo como dava tragadas seguidas no cigarro, amassava com a mão fortemente cerrada o caderno de classificados de um jornal, e também pelo batom que transbordava da linha dos seus lábios, como se houvesse se pintado às pressas. Mas nem por isso era menos bonita ou elegante, usando um vestido listrado, de tecido meio rústico, que ostentava uma simplicidade que devia ter custado algum dinheiro. Os sapatos pretos grandões, desses de amarrar, concediam-lhe uma aparência um tanto exótica, um ar de força, quase de brutalidade, talvez premeditada, um toque masculino que não impedia de se evidenciar nela a mulher em todos os seus aspectos. Ou talvez eu só tenha pensado essas coisas todas depois, tornando-me capaz de escrever sobre elas deste modo. Porque, naquele instante, eu estava preocupado em ver logo o apartamento. Quando o porteiro estendeu a chave na minha direção, pois eu chegara um pouco antes, ela disse com uma voz que pretendia ser durona, igual aos seus sapatos: — Não podemos subir todos juntos? O porteiro tornou a recolher a chave, mantendo-a suspensa nos dedos, como se fôssemos crianças disputando um doce. — A senhora vai me desculpar, mas não posso largar a portaria — ele disse. — Mas o apartamento está vazio e, se a senhora não se importar, pode subir sozinha com ele — o porteiro apontou a chave na minha direção. Ela olhou para mim de cima a baixo, como se me avaliasse, até concluir que eu era inofensivo. — Por mim, tudo bem — ela disse. Aquele exame minucioso, e talvez o seu resultado, me irritara. E também o fato de o porteiro ter perguntado a ela se se importava de subir comigo, e não a mim, que chegara primeiro, se me importava de subir com ela. Afinal, estávamos disputando o mesmo apartamento. Então apenas dei de ombros, indiferente. Mal fiz isso, ela tomou a chave da mão do porteiro e seguiu em frente pela aléia, ou fosse lá como fosse que se chamava aquela passagem que, margeando o estacionamento a céu aberto, ia dar no bloco B, onde ficava o tal apartamento. Enquanto ia atrás dela, pensei que não estava sentindo nenhuma vontade de morar naquele condomínio composto de dois caixotões verticais, com o nome absolutamente ridículo de Bois de Boulogne. E, de fato, era todo ajardinado e havia algumas árvores, para parecer bucólico e ecológico. Havia também um playground à vista, o que significava muitas crianças quando não fosse hora de colégio, e uma piscina escondida em algum lugar (eu lera no classificado), que devia ser um tanque grande, também cheio de crianças. Na verdade, eu e Clarice preferíamos começar nossa vida num desses prédios mais antigos, com uma arquitetura humana, e não tínhamos a menor intenção de ter filhos tão cedo. De qualquer modo, eu ia ver o apartamento. Estava de férias e programado para ver apartamentos. Depois de subir dois lances de escadinhas, alcancei a mulher no hall dos elevadores do bloco B, onde nos comportamos como os dois estranhos que de fato éramos um para o outro. Ela pôs um cigarro na boca, sem acendê-lo, e uma senhora juntou-se a nós. Logo depois o elevador chegou, um pessoal saiu, deixamos a senhora entrar primeiro, depois entrou ela, depois eu. A senhora desceu no 5º andar e, até lá, ficou olhando de cara feia para o cigarro apagado nos lábios da mulher, que sustentou o seu olhar. Assim que a senhora saiu, ela acendeu o cigarro, embora houvesse uma plaqueta de proibição, visível no meio de vários grafitezinhos infantilóides, alguns meio nazistas, alguns obscenos. Mas não seria eu, um ex-fumante, que iria me incomodar com o cigarro dela. — Também está procurando apartamento há muito tempo? — perguntei, para quebrar o gelo entre nós. — Não. Este é o segundo. Mas são todos umas merdas. — É verdade — eu disse, apaziguadoramente, achando graça. Chegamos ao 11º andar, o do nosso apartamento, e vi que a mão dela tremia ao tentar enfiar a chave. Eu disse "me dá licença", peguei a chave e a introduzi facilmente na fechadura. Ela entrou, olhou ao seu redor, até encontrar um banheiro, onde se trancou imediatamente. Fui abrir a janela da sala, pois fazia um calor abafado ali dentro, apesar de ser outono. A primeira coisa que notei na paisagem foi o morro, a menos de 1 quilômetro de distância. Dava para ver as pessoas subindo e descendo a favela, como num formigueiro — não se pode ser original nessas coisas. Depois olhei para baixo e encontrei a piscina. Era melhor do que um tanque e devia estar fechada a essa hora da tarde, porque não havia ninguém lá. Mas o playground começava a se povoar e os gritos chegavam ali em cima, mas eram menos crianças do que eu imaginara. Ainda observei mais algumas coisinhas nos arredores, tentando vê-los também com os olhos da Clarice. Dei-me conta de que a mulher estava demorando no banheiro e desconfiei de alguma coisa. Cocaína, por exemplo. Mas, afinal, eu não estava com ela, podia ver o apartamento sozinho e ir logo embora, pois já concluíra, mais ou menos, que o imóvel não fazia o gênero de Clarice. Ao virar-me para examinar melhor a sala, reparei numas irregularidades na parede em frente, onde o sol batia nesse instante. A massa e a pintura haviam sido retocadas havia muito pouco tempo, em alguns pontos, formando pequenos calombos. Aproximei-me para vê-los de perto, quando a mulher saiu do banheiro. Fumava outra vez, o batom em seus lábios fora alinhado e ela se maquiara em torno dos olhos, que brilhavam, avermelhados. Podia ser cocaína, porque o seu nariz também estava congestionado, mas achei possível que ela estivera apenas chorando e queria disfarçar com a maquiagem. Fingi não reparar nisso e pressionei o dedo num daqueles calombos, que cedeu um pouco. — Podem ser tiros — eu disse. — Eles devem ter extraído as balas. Por isso o aluguel é tão barato. Percebi que estava querendo impressioná-la, o que, a julgar por sua resposta, não consegui. — Você acha barato por uma pocilga dessas? Precisa ver o banheiro. E ridículo. — Estou falando de preço de mercado. — É possível — ela falou, olhando em direção à janela. — Mas a favela está longe. — Os fuzis alcançam 2 quilômetros — eu disse, e vi que continuava querendo impressioná-la. — Você é da polícia? — ela perguntou, com uma voz falsamente neutra e ingênua, que significava ironia com toda a certeza. — Não, sou jornalista. Ela se dirigiu para a janela, sem perguntar qual era o meu jornal ou a área do jornalismo em que eu atuava, e achei melhor assim. Pois, não sei por que, senti que me sentiria um idiota se dissesse a uma mulher como aquela que eu era subeditor de um segundo caderno, fazendo entrevistas por telefone e escrevendo frescuras sobre artistas egocêntricos. Ela atirou a ponta do cigarro lá embaixo e ficou observando ela cair. Depois virou-se para mim e disse, antes de se debruçar novamente no parapeito: — É uma boa altura. De repente, me passou pela cabeça que ela só tivesse vindo ver o apartamento para se jogar lá de cima. Podia ser mera projeção minha, claro, pois também sou meio neurótico e até fizera um pouco de análise, antes de conhecer Clarice, que me dava segurança. Mas, por via das dúvidas, resolvi voltar à janela, onde poderia intervir caso a mulher fizesse menção de pular. Confesso que, além do fato em si de não querer que um semelhante meu se autodestruísse, pensei também nas complicações com a polícia, com a imprensa e com Clarice. Como iria explicar a ela por que estava vendo apartamento com outra mulher, que ainda por cima se atirara dele? Mas, assim que me aproximei da mulher, ela disse: — Vou dar mais uma olhada por aí. Enquanto ela foi ver um dos quartos, que dava para os fundos do prédio, fui ver outro, bem em frente ao dela, procurando afastar a idéia de suicídio da cabeça. Na verdade, sabia que deixara a análise antes de remexer num lodo mais profundo, e talvez para não ter de fazê-lo. E aquela mulher, apesar de tudo, me dava a impressão de gostar muito da vida. Apenas tinha de ser a vida que ela gostava. O quarto que vi era comum, um desses quadrados que os construtores fazem economizando espaço. Também fora pintado recentemente, mas não havia calombos nas paredes. Abri a janela e depois fui dar uma olhada no armário embutido. Tentei abrir uma das gavetas e percebi que alguma coisa a estava emperrando. Puxei com força e um sutiã, empoeirado, acabou por soltar-se. Peguei-o e observei que, pelo seu tamanho e desenho, fora usado por uma mulher de seios pequenos, provavelmente uma jovem. Nesse instante, ouvi-a exclamar alguma coisa no outro quarto, que não deu para entender direito. Mas dali eu podia vê-la segurando um objeto que não consegui identificar. Devolvi o sutiã à gaveta, depressa, fechando-a em seguida. — Vem cá ver — a mulher me chamou em voz alta. Dirigi-me rapidamente para lá e encontrei-a suspendendo uma tira de cortina japonesa, que ela desenrolava do chão, onde devia ter sido largada na mudança. Nela, havia um buraco de bom tamanho. — Balas! — a mulher disse, com uma espécie de alegria, embora o buraco fosse só um. — O tiro deve ter entrado pelo outro quarto, atravessou o corredor e a bala veio se alojar aqui. Aliás, pode até ter saído de novo — ela mostrou a janela que havia aberto. — Você tinha razão. Os sacanas deixaram esse lixo aqui (ela largou a cortina com repugnância) e acharam que a gente não ia perceber. Fiquei satisfeito com aquele reconhecimento e acrescentei, excitado: — Vi poucas crianças no playground. Deve ter muita gente deixando o prédio. Foi nesse momento que ela disse sua grande frase, que me fez compreendê-la melhor: — Morrer não tem a menor importância. O horrível é ficar velha! — Você está longe disso — eu disse, sentindo-me metade idiota, metade cafajeste. Mas percebi que uma centelha se acendera em seus olhos. — Estou com 34 anos — a mulher disse e olhou para mim, com uma certa expectativa. — Parece ter bem menos — falei, embora ela pudesse ter também 36. — E, mesmo que não parecesse, é um bela idade. — Ele parece que não acha — ela retrucou, amargamente. — Ele quem? — Não interessa. E você, quantos anos tem? — Trinta e dois. — Ele tem 50 — ela falou com orgulho. Foi aí que eu disse a grande besteira, ou talvez não, levando-se em conta o que aconteceu depois: — Ele te abandonou? Sem qualquer aviso prévio, ela desatou um choro convulsivo, de dor e de raiva, e avançou com os punhos cerrados na minha direção. Recuei, amedrontado. Mas, em vez de me bater, ela se agarrou ao meu corpo, esfregando-se nele em movimentos sofregamente ritmados. Olhei para a janela, preocupado que alguém estivesse nos vendo. Felizmente, não havia nenhum edifício alto nas proximidades. — Ninguém jamais me abandonou, entendeu? — ela gritava. — Ninguém, ouviu? — Claro — eu disse, correspondendo ao seu abraço um tanto mecanicamente, pois continuava com medo. — Mas o filho da puta também está comendo outra — ela disse, e agora chorava mais livremente. Acariciei os seus cabelos de um modo paternal: — É por isso que você está procurando apartamento? Ela fez que sim, com a cabeça: — Ele está comendo uma garota de 18 anos. Você compreende bem o que isso significa? — Compreendo — eu disse. E, de fato, compreendia tudo cada vez mais. — Essas coisas acontecem — tentei consolá-la. Foi o suficiente para ela me empurrar, com brutalidade. — Vocês são todos iguais. Não pense que não vi você pegando aquele sutiã. Eu não preciso usar, veja! Ela arrancou o vestido de baixo para cima, de um só golpe. Havia parado de chorar tão subitamente quanto começara. Eram seios perfeitos. Talvez houvessem sofrido uma plástica, mas que importância tinha isso se eram tão bonitos e gostosos? Não havia outra coisa a fazer senão acariciá-los, enquanto enfiava a mão em sua calcinha branca, e a mulher, por sua vez, desatava o meu cinto, para depois baixar minha calça e minha cueca, tudo de uma só vez, ajoelhando-se então aos meus pés para chupar o meu pau, fazendo-o crescer de uma forma incomensurável, que dava a ela uma satisfação intensa, que talvez não tivesse muita coisa a ver comigo — eu via em seus olhos de cobra — mas com o cara que estava comendo a garota de 18 anos, como se ela quisesse provar a ele o seu poder, que acabava provando a mim e muito bem. Pedi um tempo, porque senão aquilo ia terminar logo, e também para tirar a camisa e os sapatos nos quais minha calça e cueca haviam se enroscado, fazendo com que eu tivesse de me apoiar na cabeça da mulher para não perder o equilíbrio. Enquanto eu tirava tudo, ela tirou a calcinha. — Você quer que eu fique com ou sem os sapatos — ela perguntou? — Com os sapatos — eu disse. Ela deu um risinho: — Eu sabia. Vocês são todos homossexuais enrustidos. Ignorei aquele comentário, pois não sou machista, e preferi observar meticulosamente a xoxota dela, que era bastante ostensiva, mas bem proporcionada e agradável de ver, com os cabelinhos aparados. Ela demonstrava sentir prazer com a minha observação e acendeu calmamente mais um cigarro. — Poxa, como você fuma, hem? — eu disse, apenas por dizer, ou porque aquele silêncio contemplativo me deixava um pouco embaraçado. A resposta dela foi dar uma tragada funda e provocativa, para depois aproximar-se de mim, pedindo que eu a beijasse na boca. Foi um desses beijos profundos, sexuais, sem nada a ver com os beijos dos que se amam. Enquanto ele transcorria, ela foi soprando a fumaça para dentro da minha boca, lentamente. Eu só havia parado de fumar por causa da Clarice, que era antitabagista militante; então não tossi nem me engasguei, pelo contrário; traguei numa boa até o fundo, retendo o mais que pude a fumaça em meus pulmões. Se palavras podem descrever tal experiência, devo dizer que ela me alucinou como se eu fosse um fumador de ópio, e que foi a maior intimidade que jamais tive com uma mulher, como se eu a conhecesse em todas as suas entranhas. A falta de hábito, porém, fez com que eu me sentisse meio tonto, e fui descendo meu corpo, trazendo o dela comigo. — Quer que eu faça com você uma coisa que faço sempre com ele? — ela perguntou. — Quero — eu disse, ainda meio grogue. — Então vira de bruços. Saí do meu estupor e ergui a cabeça, assustado: — Só se você apagar o cigarro. — Não sou sadomasoquista — ela disse com desprezo, amassando o cigarro no assoalho. Virei-me de bruços e ela veio por cima de mim, de um modo que me fez conhecer melhor o mecanismo das mulheres, ou pelo menos de certas mulheres, e também dos homens, ou pelo menos de certos homens, como eu e o coroa devasso. Esfregando ritmadamente a xoxota em minha bunda, ela dizia coisas como "meu benzinho, eu te adoro, vou te comer todinho". E assim ela gozou, inquestionavelmente, pois não captei nada de teatral em seu orgasmo. Foi uma série de tremores silenciosos, apenas ligeiramente arfantes, quase introspectivos, até ela cair ao meu lado, satisfeita. Depois deitou a cabeça em meu peito e começou a fazer risquinhos nele, com suas unhas pontiagudas. — Por favor, não faça isso — eu disse. — Não faço por quê? — ela continuou com mais força. Segurei os braços dela: — Eu sou noivo. Ela deu uma gargalhada artificial e levantou-se, abruptamente: — Não acredito. Estamos quase no século 21 e você é noivo. Cadê a aliança? — Não uso. Foi apenas uma forma de dizer, já que eu e Clarice vamos nos casar. — Bem, nesse caso talvez seja melhor eu ir embora — ela disse, dirigindo-se até onde estavam jogadas suas coisas. — Não quero atrapalhar a vida de vocês. Quantos anos a Clarice tem? — ela perguntou, como que casualmente. — Dezenove — eu disse, embora a Clarice tivesse 24. Só não falei 18 porque ia parecer coincidência demais. Se houvesse algum objeto ali para jogar na parede, tenho certeza que ela teria jogado. Como não havia, ela dava pontapés no ar, tentando chutar os sapatões para longe, o que não conseguiu, pois eles estavam firmemente amarrados. Então ela pôs o vestido, mas pelo avesso. Ao retirá-lo, quase se sufocou com ele, ao contrário da maneira graciosa e segura como o fizera da primeira vez. E acabou por estar de novo nua, e de sapatos, chorando mansinho, como se tudo aquilo a houvesse feito amadurecer anos, conformar-se à realidade. Eu não sou burro, embora as coisas que escrevia para o segundo caderno muitas vezes fossem. Continuei ali deitado, nu, esperando que aquela histeria passasse. Sabia que, se aquela mulher não cometesse nenhum ato sem retorno, o fato de eu ter uma noivinha de 19 anos só faria aumentar o seu desejo, desta vez por mim mesmo, nem que fosse para provar mais alguma coisa. E, de fato, enxugando as lágrimas, ela acabou por fazer a inevitável pergunta do final do século. — Você trouxe camisinha? — Não, eu e Clarice somos monogâmicos e não usamos. — Mas eu e ele não somos e não confiamos em ninguém — ela disse, indo até onde deixara sua bolsa. Remexeu lá dentro e depois atirou para mim uma camisinha. — Era para usar com aquele veado — ela fez questão de informar. — Mas se você fizer alguma perversão comigo eu vou gritar. — O que você chama de perversão? — Se chegar perto, eu aviso — ela disse. Fui pôr aquele troço no banheiro, onde estava mesmo precisando ir. Lá dentro, tentei descobrir o que ela achara tão ridículo, pois era uma peça comum, até confortável, com uma boa banheira. Concluí, então, que deviam ser os azulejos brancos, com figuras azuis de vênus e de anjinhos tocando trombetas, possivelmente copiadas, de terceira mão, do banheiro de algum palácio na Europa. E não pude deixar de pensar, incomodado, que Clarice gostaria daquele banheiro, talvez o considerasse a melhor coisa do apartamento. Ou teria a mulher implicado com o espelho oval, com bordas trabalhadas em metal prateado? O espelho no qual agora eu me olhava, percebendo que alguma coisa mudara em meu rosto, talvez uma inocência perdida, pois estava traindo Clarice pela primeira vez. Tentei pescar lá no fundo de mim mesmo uma velha culpa, conhecida minha, e não consegui encontrá-la. Concluí que aquilo não era uma traição, era um acontecimento tão inexorável quanto uma catástrofe. Eu fora atropelado pelo destino e só me restava sair de novo ao seu encontro. Encontrei a mulher na sala, deitada de costas num colchãozinho que ela disse ter achado no quarto de empregada. Estava nua até dos sapatos, e, com as pernas e os olhos semicerrados, parecia a noivinha que, tenho certeza, ela estava representando, com algum rubor nas faces, talvez de ruge, mas o que importava? Descrições de pormenores sexuais são deselegantes e enfadonhas. Se as cometi, anteriormente, foi por considerar que certos atos obedeciam a uma lógica e motivações radicais, a uma sexualidade invulgar — e, por que não dizer?, refinada — que poderão servir ao enriquecimento do eventual leitor deste relato, feito por quem não se pretende mais do que um repórter. Mas creio poder revelar que gastamos duas camisinhas e fizemos de tudo, nesse segundo movimento, menos o que, imaginei, devia ser a tal perversão. Quanto aos orgasmos dela, da segunda fase, foram quase certamente falsos e teatrais e, por vezes, tive de tapar sua boca. Como se ela quisesse anunciá-los ao prédio inteiro, talvez ao mundo, mais particularmente a Clarice, ao tal coroa e sua garotinha. Mas o que importa, já que os meus foram verdadeiros, assim como os meus sentimentos? Talvez o meu grande erro foi querer traduzir esses sentimentos, comentando o crepúsculo que vimos cair, o luar que agora banhava os nossos corpos, o canto tardio de cigarras de outono. E houve um momento em que cheguei a dizer, ternamente: — Poderíamos até morrer juntos. Isso lembrou-lhe que devia ir embora. — É melhor descermos separados, depois de todo esse escândalo. Eu vou primeiro e você entrega as chaves, está bem? — ela disse. — Pretende ficar com o apartamento? — perguntei, enquanto nos vestíamos. — Uma gaiola dessas? Você deve estar brincando. — Vai voltar para aquele cara? — Agora já posso — ela disse. — Vai contar para ele o que aconteceu? — perguntei, ajoelhando-me para amarrar os seus sapatos, enquanto ela acendia mais um de seus cigarros. — Tudo é possível — ela disse. — Mas não aconselho você a fazer o mesmo. Sua noivinha não iria perdoá-lo. — Talvez eu não queira ser perdoado — Você é louco — ela disse, encaminhando-se para a porta. Quis acompanhá-la até o elevador, mas ela não deixou. — Me diga ao menos o seu nome — implorei. — O que passou, passou, está certo? Que importância têm os nomes? — Não quer nem saber o meu? — Não — ela disse, batendo a porta. O que mais dizer? Terminei com a Clarice, voltei a fumar e vim morar sozinho, pagando uma mixaria de aluguel, no apartamento 1101, B, do Condomínio Bois de Boulogne, na expectativa, talvez fantasiosa, pelo menos em sua segunda parte, de que o coroa um dia aprontasse mais alguma com a mulher, e ela, farejando o meu destino, viesse me usar para uma nova vingança. Até o momento em que escrevo, isso não aconteceu. Mas, entre intervalos mais ou menos longos de tediosa calmaria, muitas coisas acontecem no Bois e suas redondezas: batalhas entre traficantes no morro Dona Marta, o pipocar de fuzis e metralhadoras, foguetes sinalizadores cruzando os ares, incursões da polícia e do exército na favela, helicópteros voando rasante sobre o bairro e, de vez em quando, balas perdidas, que já furaram novamente as paredes da sala e dos quartos. Às vezes, engatinhando com as luzes todas apagadas, vou deitar-me no assoalho daquele quarto em que fui possuído pela mulher. Entrincheirado atrás de uma parede, acendo então um cigarro, dou uma tragada funda, e penso naquela que me penetrou até o âmago. Troquei o segundo caderno pelo setor de polícia do jornal, comprei um binóculo potente, para observar o morro, e instalei um fax no quarto desabitado de empregada, cujo colchão, onde às vezes durmo, conservei. Dali, o local mais seguro do imóvel, envio as últimas notícias para a redação, às vezes quase na hora do fechamento do caderno Cidade. Escrevo à mão e assim transmito as páginas, pois meu micro levou um balaço que varreu para sempre sua memória, igual a um ser humano quando apaga. Estamos furando todos os con-correntes no noticiário do Dona Marta. Num domingo, quando olhava, pensativo, da janela lá para baixo, testemunhei quando um senhor, usando um desses shorts largos, foi alvejado pelas costas por um franco-atirador, no momento em que mergulhava na piscina semideserta do Condomínio. Caiu já provavelmente morto na água, cujo azul tingiu-se de vermelho, num contraste macabro na manhã ensolarada de primavera. Foi o que escrevi, e não cortaram. Pensei, também, que morrer talvez não tivesse mesmo a menor importância. O sujeito havia saído em grande estilo, enquanto nós, aqui fora, continuamos sofrendo por razões diversas, incluindo as minhas. Mas não estava simplesmente fazendo frase quando escrevi, para finalizar a matéria, com esperança de que a mulher me lese, entendesse tudo e viesse me encontrar, que morrer é muito fácil no Bois de Boulogne. ILUSTRAÇÃO MARCOS DUPRAT Publicado em fevereiro de 1996, ed. 247. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • VANESSA MENGA | FEVEREIRO, 2001

    QUE SAQUE! A tenista mais gostosa do Brasil No fim da década de 1990, início da década de 2000, Vanessa Menga era um dos grandes nomes do tênis despontando no Brasil. Essa boa fase fez com que a paulista de Jundiaí ganhasse visibilidade razoável, até mesmo para que ela colocasse fé no taco em sua forma física e tivesse a prova disso (e um dividendo de sua boa fase no esporte) ao ser a estrela da capa de PLAYBOY, em fevereiro de 2001. Tudo começou com o ápice da carreira no tênis, que iniciara motivada pelo pai — Eduardo Menga, bastante envolvido com a modalidade, chegando a ser árbitro oficial da ATP (Associação dos Tenistas Profissionais) — e catapultada por uma viagem a Barcelona, onde se iniciou como tenista, durante a adolescência. Já em 1996, Vanessa teve a primeira grande experiência, participando do torneio feminino de tênis em duplas nos Jogos Olímpicos de Atlanta, com Miriam D'Agostini — caiu na primeira fase. Em 1999, começou o grande momento de sua carreira. Principalmente jogando em duplas: nos torneios do Grand Slam, chegou à terceira fase em Roland Garros, além de ter participado do US Open e de Wimbledon. Finalmente, em julho, disputando os Jogos Pan-Americanos pela segunda vez (já estivera na edição de 1995, em Mar del Plata, na Argentina), Vanessa viveu seu auge na carreira: conquistou o ouro pan-americano em duplas femininas, na cidade canadense de Winnipeg, com a carioca Joana Cortez como sua parceira. Vanessa voltou badalada. E não só pelo que jogava, mas por comentários abertos sobre sua imagem. Alguns partindo até dela mesma. Como à revista IstoÉ Gente, em agosto de 1999, logo após a conquista no Pan-Americano: "Topo até pensar em posar nua para uma revista masculina". Ou no primeiro ensaio mais sensual (embora discreto) que fez naquela época, para a revista Trip, em setembro do mesmo ano, quando reconheceu: "Sinto que, quando eu passo, quando estou jogando, eu sou admirada". Em 2000, a tenista já deu sinais de que, mais do que um desejo, posar nua era um fato esperando para acontecer. Em setembro, pouco antes de participar dos Jogos Olímpicos de Sydney (a dupla com Joana Cortez foi eliminada na Austrália, na segunda fase), veio o convite de PLAYBOY a Menga. No mês seguinte, mais dois ensaios, com roupas esportivas: um para a revista Lance! A+, publicação vinculada ao diário homônimo, outro para o site "Morango". E o convite de setembro seria insinuado explicitamente na edição de PLAYBOY em novembro daquele 2000: com calções jeans curtos e uma blusa azul transparente, Vanessa Menga foi uma das exibidas na seção "Mulheres que Amamos" daquela edição. Bastou o ano seguinte, 2001, começar, para o convite ser aceito. E Vanessa fez o ensaio em dois dias, sendo fotografada pela grife de PLAYBOY que já era J.R. Duran. O ensaio trouxe duas temáticas. Nas fotos em estúdio, um vestuário ousado de tenista motivou as frases mais picantes que ela falou para a edição, evocando o fetiche do uniforme que tenistas usam: "Estou 'mais ou menos' de tenista. Não dá para jogar do jeito que eu estou na capa!" "Claro que nossa sainha é um fetiche! Quando a gente se abaixa... Quando tiramos as bolinhas do bolso que tem na frente da calcinha... Sempre tem gente olhando. Quando a gente se abaixa tem sempre alguém tentando ver nossas calcinhas; e há até quem fique pálido acompanhando aquele gesto que fazemos para tirar as bolas de dentro do bolso interno dos calçõezinhos..." No segundo ciclo de fotos, acordando e começando as fotos "desde as 6 da manhã" (ela comentou no making of disponibilizado então no site da revista), Vanessa seguia uma linha já até habitual de vez em quando, em PLAYBOY: uma temática de "lolita", com a tenista interagindo com um cachorro — um poodle — e com brinquedos, numa mansão em São Paulo. As declarações que ilustravam essa parte do ensaio também indicavam essa impressão: "Este jardim, este clima meigo, natural, infantil. Meu cenário ideal para o amor seria assim... mas sem fotógrafos por perto! (risos)" "Comigo não pode ser muito direto, não. É mais no gesto, no carinho, no olhar. Depois, um beijinho. De leve." Ensaio publicado, desde o começo Vanessa elogiou o resultado. Em duas frentes. Primeiro, na divulgação propriamente dita: em declarações a Adriane Galisteu — no É Show, programa apresentado à época por Galisteu na TV Record, a tenista comentou: "Foi difícil, mas o trabalho é superprofissional. O Duran é um excelente fotógrafo.... [você] fica presa, mas vai se soltando. Acho que a equipe vai te deixando muito à vontade, e aí rola. Foram três dias de ensaio. Não [me arrependo] de forma alguma. Foi um trabalho super lindo. Eu que escolhi as fotos, junto com meu pai". Nas quadras, ainda em 2001, antes de disputar o Estoril Open, na cidade homônima de Portugal, Menga reagiu a algumas opiniões contrárias ao ensaio: "Cada um faz o que quer. Se se tem um corpo bonito e uma oportunidade como eu tive, há que aproveitar. Que eu saiba, até ao momento ninguém me criticou. Aliás, até tenho recebido muitos elogios...". A carreira de Vanessa Menga não duraria muito, pelo destino: um acidente de moto, em 2003, na Itália, inviabilizou a sequência no tênis profissional, por problemas causados na articulação dos braços. Mas a paulista reagiu, mantendo o vínculo com a modalidade, de lá para cá: fosse com projetos beneficentes (como aulas a crianças carentes), fosse com comentários esporádicos de jogos da modalidade. A lembrança do ensaio para PLAYBOY diminuiu bastante. Mas quando perguntada, Vanessa manteve a boa impressão — como falou ao UOL, em 2013: "Faz muito tempo, mas valeu a pena. Era o momento e aproveitei a oportunidade, principalmente financeiramente. Não me arrependo de nenhuma forma. Foi tudo muito profissional e feito com profissionais excelentes. Além disso, tive todo o apoio da família, isso é o mais importante". De certa forma, um ensaio que foi o símbolo de uma boa fase de Vanessa Menga. FOTO J.R. DURAN EDIÇÃO ARIANI CARNEIRO PRODUÇÃO BETINA BERNAUER E CINCHIA KISTE CABELO E MAQUIAGEM KAKÁ MORAES Resenha de autoria do leitor Felipe Souza, de São Paulo - SP.

  • NEGUINHO DA BEIJA-FLOR | FEVEREIRO, 2011

    Playboy Entrevista Uma conversa franca com o sambista mais emblemático do Carnaval carioca sobre sambas de enredo, Anísio Abraão David, amigos que entraram para o crime, racismo na Europa, namoradas famosas, vaidade, câncer e o dia em que ele quase foi assassinado por emplacar o samba da Beija-Flor "Amanhã eu vou assar uma carne aqui. Passem a hora que vocês quiserem", avisa no fim da tarde de sábado à equipe da PLAYBOY Luiz Antonio Feliciano Marcondes, um senhor de 61 anos e físico invejável que passou o dia contando suas histórias. No dia seguinte, de bermuda, relógio, brinco e cordão de ouro com um enorme beija-flor e jogando cartas com o sorriso largo de sempre, Luiz recebeu a revista de novo. Mas dessa vez totalmente à vontade no papel que o fez conhecido no país inteiro: o de Neguinho da Beija-Flor, um dos maiores puxadores de samba do Carnaval carioca — cujo apelido está desde 2006 oficialmente incorporado ao nome. Neguinho nasceu em Nova Iguaçu, município de 830 mil habitantes na Baixada Fluminense, no estado do Rio de janeiro, filho de uma empregada doméstica e de um padeiro que tocava pistom em bailes. Seu Benedito Feliciano Marcondes, o Bené do Pistom, lia partituras, tocou com a Orquestra Tabajara, era fã de Nat King Cole e foi o primeiro contato com a música do pequeno Luiz — que quis aprender o instrumento do pai, mas a mãe não permitiu porque deixava uma marca feia na boca. Quarto de seis irmãos, Neguinho nasceu e foi criado com dificuldades na casa simples em que nos recebeu. Sua primeira aparição pública foi aos 10 anos, quando cantou Se Acaso Você Chegasse, de Lupicínio Rodrigues, em uma praça para ganhar duas latas de goiabada. Bom de bola, chegou a treinar como ponta-direita nas categorias de base do Olaria em 1965, e o futebol facilitou sua entrada na Aeronáutica dois anos mais tarde. Passou quatro anos no ambiente militar, lá terminou o segundo grau e pretendia seguir carreira enquanto dividia seu tempo entre a caserna e os bailes do conjunto Os Devaneios, do qual era fã. Mas foi obrigado a dar baixa como soldado de primeira classe em 1971. No mesmo ano um carro atingiu sua perna, e o acidente acabou com as pretensões futebolísticas. Sobrou a música. Neguinho já escrevia uns sambas e mostrava para os amigos, que gostavam delas. Depois do acidente começou a cantar. Na vizinhança, fez parte das escolas de samba Acadêmicos de Miguel Couto e Leão de Nova Iguaçu, na qual despontou e de onde foi levado em 1975 para a Beija-Flor pelo contraventor e patrono Aniz Abraão David, o Anísio, para substituir o puxador Bira Quininho, que havia sido assassinado. Em sua estreia, no Carnaval seguinte, levou a agremiação de Nilópolis ao primeiro título cantando um samba de sua autoria, Sonhar com Rei Dá Leão. Nunca mais saiu. Ao longo de 35 anos de avenida Neguinho colecionou amigos, sambas, desfiles e uma extensa família. São dois casamentos no currículo, um com Cláudia, nos anos 1980, que durou 23 anos, e o atual, com Elaine Reis, que depois de três anos e meio foi oficializado no Carnaval de 2009, em plena Sapucaí, com o então presidente e amigo Lula como padrinho. A cerimônia ocorreu durante o tratamento contra um câncer de intestino que ele havia descoberto no ano anterior. A atual mulher, ex-destaque do Carnaval carioca, é 22 anos mais nova, tem duas faculdades e cuida de sua carreira. Neguinho tem cinco filhos: Paulo César, cuja mãe é uma namorada da juventude, tem 42 anos; Carla, filha de criação que mora na França, tem 36; Luiz Júnior, de 29 anos, e Ângela, de 24, são do primeiro casamento; e a caçula, Luiza Flor Morena, de 2 anos, com Elaine. Tem ainda quatro netos entre 5 e 14 anos e vai ganhar mais um em abril. Hoje mora com a mulher e a filha mais nova em Copacabana, de frente para o mar. Mas desde que seu Bené faleceu, em 2007, sete anos depois da mãe, começou a reformar a casa onde nasceu (toda em azul e branco), e foi lá, entre operários, familiares, a piscina e a churrasqueira, que ele recebeu o editor Jardel Sebba para duas longas conversas sob um calor de quase 40 graus em um fim de semana de dezembro. Sorridente, simpático e esparramado no sofá da sala, falou por mais de 4 horas e nos brindou com uma visão íntima e privilegiada do Carnaval carioca por aquela que é considerada a grande voz da Marquês de Sapucaí. PLAYBOY — Por que a Beija-Flor vai ser campeã neste ano? NEGUINHO DA BEIJA-FLOR — Porque temos um excelente samba, e um bom samba é 70% de um campeonato. A comunidade está superfeliz como enredo sobre o Roberto Carlos. E nossas fantasias estão mais leves, o que vai facilitar muito a evolução. Se com fantasias pesadas a Beija-Flor já faz o que faz, imagina ela solta. E luxo não vai faltar porque nisso a escola não economiza. Carnaval se ganha no chão, na disciplina, e a Beija-Flor é uma escola disciplinada. Nossa comunidade vive distante da praia, do Pão de Açúcar, do Maracanã. A opção de lazer são os ensaios; então quando a gente chega na avenida dá um banho. Em outras escolas tem componente que mora na Barra, outro em Niterói; na Beija-Flor todos moram por aqui mesmo. Tem ensaio segunda-feira, todo mundo vai. As pessoas dizem que a Beija-Flor é uma escola rica, pode até ser que os diretores sejam ricos, mas hoje ela é a que reúne o maior número de pessoas pobres. PLAYBOY — Dá para saber quando a escola não tem chance de ganhar? NEGUINHO — Já houve carnavais que eu pensei: "Pô, nesse não vai dar". Eu só saio de casa faltando duas escolas para a Beija-Flor desfilar. Fico vendo tudo em casa. Ano passado sabia que ia ser difícil ganhar da Unidos da Tijuca, no retrasado ia ser dificílimo ganhar do Salgueiro. No ano do "explode coração" [Peguei um Ita no Norte, enredo do Salgueiro de 1993], se pudesse tinha ficado em casa. O Salgueiro foi a terceira escola; quando veio aquele "explode coração na maior felicidade", a Sapucaí toda cantando, só saí de casa porque tinha de ir mesmo, mas a campeã estava ali. Às vezes chego na avenida dizendo: "Olha, a escola tal passou comendo o chão". Vou de ala em ala, falo com todos os presidentes de ala. "Escola tal deu tudo certo, não quebrou carro, os caras passaram 100%. Fiquem espertos." Isso vai passando de um para o outro. PLAYBOY — Você comanda o samba da escola desde 1976. A responsabilidade ainda assusta? NEGUINHO — Assustava; hoje não mais. Quando dou o grito, sinto que entrei no tom, vai tudo embora. O medo é porque é 1 hora e 20 na sua responsabilidade, sua e da bateria, em um evento que eles se programaram o ano inteiro e com investimentos fabulosos. A Beija-Flor hoje para ganhar um Carnaval gasta 8 milhões de reais. Todo esse trabalho de um ano, todo esse investimento, todos aqueles ensaios árduos que a escola fez, fica tudo na responsabilidade do cantor e do diretor de bateria. São as únicas duas peças que desfilam o tempo todo. Um cara de ala ou um mestre-sala e uma porta-bandeira desfilam no máximo 22 minutos. Se passar de 22, 23 minutos, é sinal de que a escola está estourando o tempo. O pior momento para mim, e as pessoas pensam que estão me agradando, é quando chega um diretor da escola e fala: "Aí, rapaz, tudo contigo agora, já sei que esse gogó está bonito!" Parece elogio, mas na verdade o que ele está dizendo é: "Olha aí, negão, não faz merda, não vai vacilar..." [Risos.] Ele diz dessa forma e acha que eu não estou entendendo. "Quando um diretor chega antes do desfile e diz: 'Tudo contigo agora, esse gogó tá bonito, eu sei que ele está dizendo: 'Olha aí, negão, não faz merda, não vai vacilar..." PLAYBOY — Oito milhões de reais em um Carnaval não é dinheiro demais? NEGUINHO — É muita grana. Mas a Beija-Flor faz questão de ser a melhor, isso é primordial. A melhor no canto, na evolução, na bateria, os ensaios são árduos. E faz questão de ser a mais bonita, tem esse porém. PLAYBOY — Mas 8 milhões em um desfile não é perder a noção do dinheiro? NEGUINHO — Não acho. É para fazer bonito? Então vamos fazer bonito. É para fazer bem? Então vamos fazer bem. Para isso tem que gastar xis. PLAYBOY — E onde a escola tem retorno desse dinheiro? NEGUINHO — Da própria comunidade, no comércio, na venda de fantasias. PLAYBOY — Dá vontade de ir ao banheiro em cima do carro de som? NEGUINHO — Eu já urinei na calça em 1986; minha sorte é que estava chovendo. Quase sempre desfilo com vontade de urinar porque a expectativa é tanta, a adrenalina é tanta que quando toca a sirene dá vontade. Quando o cara me dá o microfone, não vou correr para o banheiro; tocou a sirene, tem que entrar. PLAYBOY — Número 2 já pintou lá em cima? NEGUINHO — Não, nunca. [Risos.] Uma coisa que aconteceu foi que há dois anos eu estava em pleno tratamento de quimioterapia e o Anísio [Abraão David, contraventor e patrono da escola] botou lá em cima comigo um médico dizendo que era para homenagear o profissional que me operou. Mas era mentira, ele estava ali de prontidão para qualquer emergência comigo. Teve uma hora que vi o mundo rodando, já tinha uns 40 minutos de desfile, e eu pensei: "Meu Deus do céu!" Estava cantando, olhei pro médico, olhei pra minha mulher, vi a avenida rodando e pensei que Deus precisava me dar força. De repente parou de rodar. PLAYBOY — Você vê muita coisa estranha nas arquibancadas e nos camarotes lá de cima? NEGUINHO — Não, a adrenalina está muito voltada para o que eu estou fazendo. No desfile oficial as pessoas ficam te gritando, te chamando, e no que eu olhar pro lado posso esquecer uma melodia, esquecera letra, esquecer de bisar o refrão, então pode ser o papa que eu não olho. Na hora do grito eu só dou um alô para o Anísio porque esse tem que dar, ele é o responsável por aquilo tudo que está acontecendo na Beija-Flor. PLAYBOY — Foi Anísio quem o levou para a Beija-Flor em 1975. Você já o conhecia? NEGUINHO — Conhecia. Ele distribuía bala, doce, brinquedo, e eu, garoto, com 12, 13 anos, ia lá pegar dinheiro, moeda, doce no dia de Cosme e Damião. Ele juntava moeda o ano todo para jogar, e só criança podia pegar. E ainda dava, para cada um, um short, uma blusa, uma bola, uma boneca... E eu lá... PLAYBOY — Ter um contraventor como patrono atrapalha a escola de alguma forma? NEGUINHO — É uma contravenção que contribuiu e contribui muito para que o desfile das escolas de samba seja o que é hoje. Esse trabalho era uma desorganização generalizada, e os chamados patronos fizeram ser o que é hoje: o maior espetáculo do país. Minha relação com ele é maravilhosa. Não sou homossexual, mas costumo dizer que o Anísio é o homem da minha vida. Se não fosse ele talvez nem estivesse aqui dando essa entrevista porque todas as oportunidades que tive na música foi ele quem proporcionou. Ele segurou minha onda quando lancei meu primeiro disco, sempre esteve do meu lado. Eu o respeito muito. "A contravenção contribuiu muito para que os desfiles sejam o que são hoje. Costumo dizer que o Anísio Abraão David é o homem da minha vida" PLAYBOY — O fato de ele ser um contraventor não faz diferença? NEGUINHO — Não. O dia que o Brasil liberar o jogo ele passa a ser uma pessoa normal. A única diferença dele para uma pessoa normal é que o jogo no Brasil é ilegal, e ele gosta de jogo. Quando for legal ele vai se tornar um grande empresário do jogo e gerar, como gera, milhares de empregos. O Lula foi o melhor presidente que o Brasil já teve, mas ficaram só duas coisinhas que eu acho que ele devia ter feito e não fez. Uma é a prisão perpétua para crime hediondo. E a outra é justamente a abertura dos cassinos. Eu não bebo, não fumo, não uso drogas e nunca joguei, até porque respeito muito o meu dinheiro, mas os cassinos iam favorecer muita gente e ajudar nosso turismo. PLAYBOY — Em 35 anos de avenida, quantos sambas ruins você já teve de cantar? NEGUINHO — Ah, muitos. [Risos.] Eu costumo dizer que samba bom é o que o povo canta. Claro que tenho noção do que é um bom samba, mas prefiro seguir essa filosofia. Para você ter uma ideia, tenho um samba com o Murilo Rayol que tem quase 40 anos e diz assim: "Mulher, mulher, mulher, mulher, mulher, é a mulher, é a mulher, melhor que a mulher só a mulher, só a mulher". Não sai disso. Se é ruim? O samba é uma porcaria! [Risos.] Foi feito de sacanagem; nunca lancei porque tinha vergonha, e foi um dos mais cantados do Carnaval retrasado. PLAYBOY — E por que você tirou esse samba da gaveta? NEGUINHO — Foi a minha mulher que teve a visão. Eu tinha ido fazer um show na abertura do Festival de Parintins em 2008 e reencontrei o Murilo, meu parceiro no samba. Ele chegou no palco, aí lembrei da nossa parceria e começamos a cantar. Tinha 60 mil pessoas, e eles não me deixaram cantar outra, só essa. Quando cheguei em casa cantei para a Elaine, e ela perguntou: "Que música é essa? Melô do tarado, não tem, letra, é só isso?" Na manhã seguinte pediu para cantar de novo e falou que eu ia gravar. Achei que ela estava maluca. Gravei numa quarta-feira; na quinta, no ensaio da Beija-Flor, cantei e ela fez mais sucesso do que o samba de enredo. Por onde passava eu cantava e a música era um sucesso. PLAYBOY — Você já ficou chateado por perder na disputa de sambas de enredo na Beija-Flor? NEGUINHO — Já perdi mais do que ganhei. Hoje eu não concorro mais. PLAYBOY — É o dinheiro que faz um samba de enredo ganhar hoje? NEGUINHO — Hoje tem o compositor e os parceiros. Eventualmente o compositor financeiro, o cara que entra com a torcida porque tem aluguel de ônibus, tem entrada, ingresso, foguete, alegorias. A disputa do samba de enredo virou uma campanha política. PLAYBOY — O que você achou do samba em homenagem a Roberto Carlos que Erasmo fez para este ano e que perdeu na Beija-Flor? NEGUINHO — Um bom samba. Claro, vai dizer que o Erasmo Carlos não sabe fazer música? Claro que sabe, o cara é fera. Só que o samba de enredo especificamente já é mais a especialidade da negrada. Faltou ao samba do Erasmo Carlos cheiro de sovaco, faltou "criolice", faltou a malícia da negrada que eles não têm. Por exemplo, um final de nota com um "ê", um "ô", um "á". O cara me bota um final de nota cheia com um "í" lá no coqueiro, ele enforca a nota. "A" dá mais eco. Tem essas maldades que a gente tem de pôr dois refrãos, um no meio, outro embaixo esquentando, uma largada valente. Era um bom samba, o Erasmo é um puta compositor, mas não tinha o cheiro de sovaco. Faltou maldade. "Faltou cheiro de sovaco ao samba do Erasmo Carlos para este ano que perdeu a disputa na Beija-Flor. É um bom samba, mas faltou 'criolice', faltou a maldade da negrada" PLAYBOY — Mas os sambas de enredo não estão cada vez mais parecidos entre si? NEGUINHO — Isso é por causa do samba do condomínio. Sabe o que é o samba do condomínio? O cara é professor de português e letrista, aí pega outro que é forte em melodia. Junta os dois, bota o nome dele, o teu, tal, tal, tal, o cara bota três, quatro sambas em todas as escolas. E ganha. Esse cara existe. Ele pega uma parceria que tenha uma boa influência na comunidade, mostra o samba, paga uma cerveja, queima uma carne, parte para a quadra, pronto, não tem como não dar. Ele concorre em seis escolas, ganha em cinco. PLAYBOY — E por que todo samba de enredo tem a princesa Isabel e Maurício de Nassau? NEGUINHO — Porque ela foi uma figura que marcou a história do negro no Brasil. Tudo que fala sobre escravidão é marcante. Zumbi, por exemplo. PLAYBOY — E Mauricio de Nassau? NEGUINHO — Ele marcou também, é uma história de Recife, dos holandeses, está muito lá atrás, mas é recente na cabeça do brasileiro. São coisas que marcam muito a história do Brasil, o descobrimento, Zumbi, Maurício de Nassau, princesa Isabel, Canudos, Lampião. De vez em quando são lembrados. PLAYBOY — E por que também sempre tem de ter um "iluminou", "resplandeceu", "reluziu"? NEGUINHO — Antigamente tinha mais, hoje nem tanto, era um vício. O compositor da escola de samba, por não ter muita instrução, busca frases espetaculares, mirabolantes, e isso não era diferente comigo, eu também buscava no dicionário aquela frase de efeito. Então sempre pintava um "resplandeceu", um "reluzente como a luz do dia" [risos]. PLAYBOY — Como é que você criou o grito de guerra que virou sua marca? NEGUINHO — Surgiu em 1977 ou 1978 por acaso. Naquela época as principais escolas eram Mangueira, Salgueiro, Portela e Império Serrano. Beija-Flor, Imperatriz, hoje escolas de grande porte, eram coadjuvantes. Quando saía o LP, as pessoas ficavam procurando aquelas quatro, então dei o grito para avisar que aquela era a Beija-Flor. Era só o "Olha a Beija-Flor aí, gente!" PLAYBOY — E o "chora cavaco"? NEGUINHO — Esse veio uns três ou quatro anos depois. Tinha um cara do cavaquinho, acho que era o Alceu Maia, que quando eu dava o grito ele tinha de entrar. Uma vez ele estava dormindo, eu emendei: "Chora, cavaco!" Era uma espécie de "Vai tocar não, pô? Toca aí!" Ele olhou e falou: "Pô, Neguinho, desculpa..." Aí pegou. PLAYBOY — Você não bebe mais, mas já bebeu, não é? NEGUINHO — Uma vez ou outra. Nunca precisei beber para subir ao palco, por exemplo. No meu show não tem bebida alcoólica nem antes nem depois, e eu prefiro trabalhar com músicos que também não fumem, que eu odeio cigarro. Odeio cigarro! PLAYBOY — Já ficou de porre? NEGUINHO — Já. O pior porre que eu tomei foi quando dei baixa na Aeronáutica. Aquela turma conviveu quatro anos, muitos não queriam sair. Eu também não. No dia que saímos, em 1971, fomos do Campo dos Afonsos a um bar ali em Cascadura, acho que ele ainda existe, chamado Amarelinho. Tinha mais ou menos uns 200, ficamos bebendo das toda manhã às 4, 5 da madrugada. Era o último pagamento; recebemos, assinamos e fomos tomar um porre. PLAYBOY — Você queria ser militar? NEGUINHO — Foi o que pintou na época, em1967, e naquele tempo militar tinha uma moral, carteirada valia. Chegava ao baile e era carteirada direto. Eu queria me tornar um sargento. Tinha uma certa intimidade com o futebol, jogava bem, e bom de bola em caserna naquele tempo tinha uma regaliazinha, jogava no time do capitão. Foram meus quatro anos inesquecíveis. Como soldado eu só podia ficar quatro anos. E só queria saber de ir dançar no baile do grupo Os Devaneios, um conjunto da época. Aonde esse conjunto ia levava a negrada que gostava de dançar um baile. PLAYBOY — Como militar em 1967, você sabia o que estava acontecendo com os militares e o país naquele momento? NEGUINHO — Não tinha a menor noção do que era ditadura. Eu falava alto: "Aí, meu camarada". E me diziam para falar baixo porque podiam achar que camarada tinha alguma coisa a ver como comunismo. Eu percebia que volta e meia saíam carros da Aeronáutica cheios de pessoas com marcas de Capão no rosto, ouvia falar que sargento fulano era da polícia secreta, e a gente ficava cabreiro com aquele cara, não dava muito papo, né? [Risos.] PLAYBOY — Mas dava para bater ponto como soldado de dia e no Devaneios à noite? NEGUINHO — Dava. Devaneios era sexta, sábado, domingo e quarta direto. Eu já fazia algumas musiquinhas, mas guardava para mim porque tinha medo que as pessoas zombassem. Quando dei baixa, passei muita dificuldade e tive um acidente na perna na porta da [escola de samba] Leão de Nova Iguaçu. Havia tentado jogar profissionalmente no Olaria em 1965, cheguei a treinar no juvenil e no infanto-juvenil. Mas quatro dias depois da baixa sofri esse acidente. Eu tinha uma namorada, o apelido dela era Neusão porque era uma mulata boazuda, hoje seria uma rainha de bateria. A gente teve uma discussão, ela meio, assim [faz sinal de embriaguez], ia atravessando a rua daquele jeito, vi que o carro ia pegar, pulei, empurrei ela, me joguei, mas a perna ficou. Ali acabou a carreira no futebol. Comecei a mostrar essas músicas na Leão de Nova Iguaçu, e as pessoas gostaram, e fui dando continuidade. Eu sou muito tímido, e a timidez já nasce com você, né? Tem três coisas que acredito que já nascem com o cara: a índole ruim, a homossexualidade e a timidez. Eu nasci tímido. PLAYBOY — Algum preconceito contra gays? NEGUINHO — Não, preconceito nenhum. Mas sou contra, por exemplo, os caras ficarem se beijando na rua, trocando intimidade na praia. Como você vai explicar isso a uma criança? A passeata gay foi legal, mas chega uma hora que eles extrapolam, querem beijar na boca em público, empurrar isso na marra. Na marra, não. PLAYBOY — Tem gay na sua família? NEGUINHO — Tem, meu sobrinho, filho do meu irmão. E, se eu tivesse um filho gay, aceitaria. Fazer o quê? Meu sobrinho é uma pessoa maravilhosa. Meu irmão no princípio não aceitou, agora já aceita. Claro, agredir um cara porque ele é gay é um absurdo, Deus me livre! Vai me bater porque eu sou preto, sou tímido ou canto samba? Ou porque o cara é nordestino? O que não aceito são certas atitudes na marra. O gay que quer que eu aceite que ele beije na boca ao meio-dia num shopping, com isso não concordo, não sou obrigado a concordar. Sou tímido, preto, feio e sambista, e ninguém tem que gostar de mim também. PLAYBOY — Você foi criado em uma região pobre da Baixada Fluminense. Teve muitos amigos que viraram bandidos? NEGUINHO — Com 8, 9 anos, vi muita mãe botando filho para dentro na palmada dizendo que não queria vê-lo brincando com esse neguinho porque esse neguinho ia ser bandido. E hoje muitas daquelas mães enterraram seus filhos porque eles viraram marginais, e o que ia ser bandido hoje é o Neguinho da Beija-Flor. Dos meus amigos, praticamente todos se envolveram com o crime. Eu corri esse risco também, não cheguei a ter envolvimento, sempre fui meio tímido e frouxo. [Risos.] Tinha muito medo da polícia. Eu tinha medo de levar uns cascudos, muito medo. Na minha época a polícia baixava o pau mesmo. Hoje tem direitos humanos, mas na minha época de adolescente o couro comia. [Risos.] Mas eu via gente fumando maconha, gente armada. "Dos meus amigos, praticamente todos se envolveram com o crime. Eu não me envolvi porque era tímido e frouxo, tinha medo de polícia, de levar uns cascudos" PLAYBOY — Chegou a correr perigo em alguma situação? NEGUINHO — Eu era muito amigo aqui no bairro do Jorge Mochiba, andava muito com ele, ia pros Devaneios, e as pessoas diziam que ele não tinha um comportamento legal. Um dia foram para pegar ele, e eu estava junto, eu com uma namorada e ele com outra, e os caras que chegaram dando nele chegaram dando em mim também... PLAYBOY — Porrada? NEGUINHO — Tiro! Três caras dando tiro na gente! A gente largou as namoradas e saiu correndo. [Risos.] Teve outra com ele também, o cara deu uma navalhada nele, que caiu, ia dando uma cortada nele, quando dei uma tijolada no cara e saímos correndo. Ele era muito meu amigo. Hoje, se estivesse vivo, teria a minha idade, fomos criados juntos. Mataram ele lá em Nilópolis. PLAYBOY — No Carnaval você passou por situação parecida? NEGUINHO — Em 1983, na disputa do samba de enredo da Beija-Flor. Eu ganhei; quando estava indo embora parou um Fusca amarelo, me lembro como se fosse hoje, saíram os caras armados e falaram; "Aí, meu irmão, tu não vai mais ganhar samba em lugar nenhum". Um cara da escola chamado César Morcego viu o lance e se botou na frente. "Vocês não vão matar ele e depois ainda vão ter de conversar com o Anísio!" Aí os caras desistiram. Quiseram me matar só porque perderam o samba. PLAYBOY — E você teve coragem de inscrever samba no ano seguinte? NEGUINHO — Claro. E depois esses caras morreram todos. Eram amigos dos caras que perderam. Eles também já estavam meio assim [faz sinal de embriaguez]. Depois a diretoria da Beija-Flor ficou sabendo, os caras foram lá, pediram desculpas, e ficou por isso mesmo. PLAYBOY — Quanto vale o seu passe como puxador? NEGUINHO — Não sou contra os intérpretes que mudam de escola para ser melhor remunerados, mas no meu caso nunca pedi nada para a Beija-Flor, talvez porque dos intérpretes eu seja o mais bem-sucedido financeiramente. Se alguém tem que remunerar alguém entre mim e a escola, eu viveria 500 anos e não pagaria o que a escola me proporcionou. Eu não tenho salário, não ganho nada. Também não tenho compromisso de ira todos os ensaios para cantar, vou quando posso, a Beija-Flor não me incomoda quando tenho uma temporada, por exemplo, de três meses na Europa. Não tem nada assinado, nada de contrato, nada de dinheiro, é assim desde 1975. Logicamente que quando a corda aperta o Anísio paga o pato, né? Eu mordo e mordo bonito. Já tive várias propostas de outras escolas de apartamento, de botar a milhão na conta, não sei se era blefe também. PLAYBOY — Alguma escola insistiu mais para levar você para lá? NEGUINHO — [Pensativo.] Teve uma, mas deixa pra lá... Uma escola azul e branca também, mas isso foi lá atrás. Hoje eles nem me perguntam mais. PLAYBOY — Mas em 35 anos você nunca pensou em deixar a Beija-Flor? NEGUINHO — Não! Já briguei com todo mundo lá, menos com o Anísio, que aí é briga ruim... De vez em quando o pau quebra, mas é coisa de família. PLAYBOY — Você vive do que então? NEGUINHO — Venda de discos, shows, contratos publicitários. Geralmente fica pior em época de festa junina, quando predominam outros segmentos, mas em compensação é verão na Europa, e é quando eu meto o pé. Ai pintam uns eurozinhos... PLAYBOY — Você passou por alguma demonstração de racismo nessas temporadas na Europa? NEGUINHO — Uma vez, na Alemanha, a gente saltou numa estação de trem de madrugada e foi andando até o hotel em Dusseldorf. Eram uns 20 minutos de caminhada. Táxi, só ligando, e a gente não sabia. Demos de cara com uns dez carecas de bota metidos a racistas, eles vieram na nossa direção, e a gente se preparou para eles também. Tinha um na banda que arranhava um alemão e falou pros caras: "Aqui é Brasil, meu irmão". E eles desconversaram. Viram oito crioulos, vieram com negócio de racismo e perceberam que, se partissem pra dentro, o couro ia comer, ninguém ali ia apanhar deles, não. Nas estações de trem geralmente os policiais passam com os cachorros perto da gente de sacanagem; na imigração também, eles vêm com os cachorros como quem não quer nada justamente para perto da gente. E os cachorros nem aí... PLAYBOY — Já foi barrado em algum lugar? NEGUINHO — Só uma vez que o cara cismou na Itália. Peguei uma pasta e dei pra ele. Quando abriu, de cara tinha uma foto minha com o Pelé, na outra com o Ronaldinho Gaúcho, na outra com o Lula. Depois disso nem pediram passaporte pro pessoal da minha banda. De repente umas três meninas que estavam chegando lá no mesmo voo quiseram entrar na aba e pediram para dizer que estavam comigo. Ai eu falei: "Não, senhora, no avião fizeram carão pra mim, puxei assunto e nem me deram papo, agora querem dizer que estão comigo? Estão não, comigo só os crioulos". [Risos.] Viu a minha moral aqui e quer entrar na minha aba? Não... PLAYBOY — Falando em meninas, Pinah, passista que entrou com você na Beija-Flor, era a maior gostosa na época? NEGUINHO — Ela era maravilhosa, mas é minha irmãzinha. Pinah e [a porta-bandeira] Selminha Sorriso são duas irmãs que eu tenho. PLAYBOY — Tirando as duas, não perdoava mais nada? NEGUINHO — Tive uma fase na vida que não passava nada; se viesse, morria. Tirando Pinah e Selminha, o resto morria geral. Antes de casar, no auge do sucesso, jovem, eu não perdoava nada. Podia ser bonita, feia, jovem, magra, gorda, a distinção era: morria ou não morria. PLAYBOY — Sua contabilidade chega perto das mil mulheres? NEGUINHO — Mais ou menos. [Risos.] Já tive muitas, mas mil acho que é exagero. Fui bastante namorador. Sexo é importante; ninguém vive sem sexo. PLAYBOY — Teve capa da PLAYBOY nessa trajetória? NEGUINHO — Teve. Namorei Nicole Puzzi, Adele Fátima, Enoli Lara e muitas que nem lembro o nome. Uma rainha de bateria, uma rainha de Carnaval. [Risos.] A minha mulher inclusive era uma das destaques mais disputadas na minha escola. Você vê que ela tem quarentinha, mas a bagagem ainda está ali, né? "Namorei Nicole Puzzi, Adele Fátima, Enoli Lara, entre muitas outras. A Elaine, minha mulher, era uma das destaques mais disputadas da Beija-Flor PLAYBOY — Você está usando brinco, relógio e cordão com um beija-flor, tudo de ouro. É a sua principal vaidade? NEGUINHO — Eu gosto. Não sei se é autoafirmação, se é coisa de quem vem do nada. O Agnaldo Timóteo diz que, quando o crioulo dá mais sorte, ou casa com loira ou se pendura de ouro. Eu prefiro morena, mas me dou bem com o ouro. Gosto desde jovem. Ia pro baile às vezes só com o dinheiro da entrada e da passagem; se arrumasse uma namorada não podia pagar uma Coca-Cola pra moça, mas sempre bem vestido. Era talvez o mais bem vestido do baile. Não dava para usar ouro como hoje, mas já era vaidoso, usava um ourinho humilde. [Risos.] Minha vaidade é perfume, joia e andar bonito. PLAYBOY — Você enfrentou um câncer de intestino em 2008. Como foi o impacto inicial da doença? NEGUINHO — Minha mulher que descobriu. Comentei que saía sangue nas minhas fezes, ela ficou preocupada, me levou para ver um negócio ali. Chegou lá, tinha marcado um exame. Era surpresa. Resultado: câncer no intestino. Mais quatro meses e não tinha mais jeito. Estava no nível 2, quase no 3, que é quando ele rompe o intestino e ataca outros lugares. Se entrasse no 3, saía pegando fígado, pulmão... E minha mulher com sete meses de gravidez. Fiz um ano de quimioterapia e seis meses de radioterapia. E faço colonoscopia todo ano porque é um câncer traiçoeiro, não dói, você não sente nada. A minha sorte foi que eu tive um alerta. PLAYBOY — A primeira colonoscopia a gente nunca esquece? NEGUINHO — Você nem vê, eu nem imagino o tamanho do tubo. E nem de curiosidade quero conhecer esse tubo... Mas é tudo muito tranquilo. PLAYBOY — Há perigo de o câncer voltar? NEGUINHO — Em mais três anos tenho que fazer exame para ver se ele não volta. Mas não vai voltar, não. Há essa remota possibilidade que acaba em 2013. PLAYBOY — Você fez alguma coisa pensando que podia morrer? NEGUINHO — Eu comprei o meu apartamento em Copacabana por causa da pequenininha e casei rapidinho para não ter briga. [Risos.] Mas casar já era uma pretensão minha. PLAYBOY — Falando em Copacabana, você mora de frente para o mar. Por que está reformando a casa onde nasceu, em Nova Iguaçu? NEGUINHO — Em 2012 vou ser candidato a prefeito de Nova Iguaçu. Acredito, por exemplo, que sou a personalidade mais conhecida nascida na Baixada, especialmente nesse bairro, e a rua em que eu nasci nem calçada é. Não tenho partido, estou escolhendo. E lógico que vou continuar com a minha música, mas quero ajudar. POR JARDEL SEBBA FOTOS RODRIGO BUENO Publicado em fevereiro de 2011, ed. 429. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • GLÓRIA MARIA

    Perfil Globetrotter Guerra, aventuras e (muitas) viagens. A frenética vida da repórter Por MARCELO DUARTE Na hora de escrever a Enciclopédia da Televisão Brasileira, os historiadores terão uma pequena dificuldade para acertar datas num verbete da letra G. Mais precisamente em "Glória Maria". O começo será simples: Glória Maria Matta da Silva, natural do Rio de Janeiro, já foi eleita a repórter de TV mais querida público e começou a apresentar o programa dominical Fantástico, da Rede Globo, em maio de 1998. Sua presença elevou os índices de audiência do programa em média 6 pontos. Mas é aí que vem o maior mistério da televisão brasileira, erradamente atribuído ao nome dos assassinos de Salomão Ayala, na novela O Astro, e de Odete Roitman, em Vale Tudo. Afinal, qual é a idade de Glória Maria? Ela nasceu em 15 de agosto (dia de Nossa Senhora da Glória), mas não revela o ano. Nas entrevistas, cada hora diz uma coisa. Numa edição de Contigo! de 1988, por exemplo, declarou 36 anos. Passadas dez primaveras, porém, nossa personagem aparece com 41 em Caras. Para não dar pistas, ela consegue esquecer o ano de falecimento do próprio pai ou o de seu primeiro casamento. O negócio é tão sério que até virou folclore pelos corredores da emissora. Sabe-se de produtores e cinegrafistas que foram escalados para ficar de olho quando ela preenchesse o cartão de desembarque dentro do avião em vôos internacionais. Não adiantou: Glória, sempre deixa as datas em branco. Se é preciso tirar um visto, ela vai pessoalmente ao consulado. Não entrega o passaporte ou qualquer documento na mão de ninguém. "Esconder a idade dá o maior trabalho", assume, bem-humorada. "Mas é uma questão de honra. Minto desde os 12 anos, pois tenho pânico de ficar velha." Antes de passar os números de telefone das amigas, por exemplo, Glória liga e dá instruções para que nenhuma data elucidativa seja revelada ao repórter. Com o ar mais descarado do mundo, ela diz que está com 38 anos. Mesmo tendo contado um pouco antes que uma de suas primeiras reportagens na Globo foi a cobertura do desabamento do elevado sobre a Avenida Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro, em novembro de 1971. Fazendo as contas, teríamos o primeiro caso na história da TV de uma repórter com apenas 11 anos. Ginseng, pó de guaraná e energético japonês Na verdade, Glória acaba se divertindo com esse jogo de esconder a idade. Parece até uma forma de abastecer o seu ritmo de vida com um elixir da juventude. Basta ver o corre-corre das reportagens que fez nos últimos tempos. Para mostrar os bastidores do videoclipe de Julio Iglesias com os brasileiros Zezé di Camargo e Luciano, por exemplo, ela deixou o Rio de Janeiro numa segunda-feira cedo e seguiu direto para Estocolmo, capital da Suécia. Entre ida e vinda, viajou 21.000 quilômetros. Retornou na manhã de sábado e foi direto para o estúdio, com mala e tudo, gravar as chamadas do programa. Não é à toa, portanto, que, ao anunciar a atração que vem logo depois da sua, o apresentador Fausto Silva se refira a Glória Maria como a "repórter mais viajada do mundo". Ela nunca se preocupou em contar o número exato de milhas ou de países visitados. Acha que estes já são cinqüenta, responsáveis por carimbos em doze passaportes sucessivos. O Brasil, segundo seus cálculos, já foi todo percorrido quatro vezes. Quando assumiu a função de apresentadora do Fantástico — lugar que já tinha sido ocupado por outras belas mulheres, como Márcia Mendes, Valéria Monteiro, Dóris Giese, Carolina Ferraz, Fátima Bernardes, Cláudia Cruz e Carla Vilhena —, Glória achou que estava apenas quebrando um galho. Ao ser efetivada, porém, deixou claro que não abriria mão das reportagens e das viagens. "Até a minha decisão de não ter filhos foi pensada para não perder essa liberdade", diz. Quem sai ganhando é o sobrinho Flávio, de 20 anos, filho de sua única irmã, a advogada Lúcia. É ele quem acaba faturando algumas das passagens que Glória ganha com seus gordos programas de milhagem. O rapaz já visitou Florianópolis e Maceió. Na lista de futuras viagens, Glória planeja conhecer a China, os países da África Negra, o Afeganistão, a Sibéria e uma tribo de esquimós no Canadá. Na montanha, a 4.000 metros de altitude, compra de espelhinho, banho gelado e o ritual de passar creminhos Esconder a idade também exige cuidados com o corpo. Glória, 1,67 metro e 52 quilos, faz caminhadas diárias pelo calçadão da Praia do Leblon, tem aulas de alongamento e uma alimentação muito saudável. "Tomo café da manhã de rei, almoço como príncipe e janto como mendigo", receita. Detesta sanduíches, refrigerantes, cremes e molhos brancos. Fast food? Glória tem pavor. Vai a bons restaurantes e champanhe é sua bebida preferida. Bebe muita água, ginseng, pó de guaraná. Outro vício é um pó branco energético chamado One Million Power, que conheceu no Japão. Quando o estoque está baixo, Glória pede socorro a amigos. Diretor do Fantástico, Luiz Nascimento foi ver o jogo Vasco x Real Madrid, em Tóquio, pela decisão do título mundial interclubes de futebol, no final do ano passado. Voltou trazendo uma caixa com 500 envelopinhos. Dentro do avião, Glória não faz nenhuma refeição. Se bate a fome, ela se alimenta com uma barra de chocolate. Gosta de dormir a viagem inteira. Na subida ao Monte Everest, no Nepal, ficou desesperada ao saber que teria de comer carboidratos, alimentos de digestão mais rápida e que liberam energia rapidamente. Preferiu trocar a papa de macarrão por pacotes de chocolatinhos M&M. Encheu a bolsa. No terceiro dia, entretanto, rendeu-se e encarou o que chamou de "gororoba". Mesmo durante a subida da montanha mais alta do mundo Glória conseguiu comprar um espelho no caminho e, num banheiro a 4.000 metros de altitude, tomou um banho gelado e passou seus creminhos. Na mochila, que pesava 10 quilos, calcula que 5 eram de produtos de beleza. Vaidosa declarada, não vive sem a sua sacola de cremes. São dez todas as manhãs antes de sair de casa. Quatro para o corpo, cinco para o rosto e um para o cabelo. Aliás, a mala de cremes é parceira inseparável de todas as viagens. E, geralmente, a bolsa volta mais recheada. Ao chegar a um novo país, a farmácia e o supermercado são os dois primeiros lugares visitados. Além de cremes, tem fixação por escovas de dentes. Os cuidados com a forma física e a beleza já causaram alguns situações engraçadas. Durante a Copa da França, no ano passado, Glória fazia jog-ging pelas ruas de Paris todas as manhãs e parava numa igreja próxima ao seu hotel, em Montparnasse, para uma oração. Certo dia, entrou na fila da comunhão. Ao se aproximar do altar, deu de cara com um defunto. Só aí percebeu que era urna missa de corpo presente. "Devem ter achado que eu era amante do falecido", ri. Pior: Glória já teve horror de cemitério. Perdeu o medo depois que foi obrigada a cobrir vários enterros. Guerra, quatro Copas do Mundo e quatro Olimpíadas O Fantástico não está sendo a primeira experiência de Glória como apresentadora. Ela já comandou o RJ TV (1977-1978) e o Bom Dia Rio (1984-1985). "Foi uma aposta arriscada dos diretores do programa", acredita. "Se eu não fosse bem e me tirassem do ar logo, muita gente iria dizer que foi problema de preconceito", diz Glória, puxando espontaneamente um tema do qual não se pode fugir quando se fala dos — poucos — negros que fazem sucesso na televisão brasileira. Sim, ela viveu casos de discriminação e reagiu sempre com vigor nessas circunstâncias. Mas seguramente está mais marcada na vida pelos momentos em que seus êxitos de audiência apareceram como um fenômeno sólido, audível e palpável. Em 1991, o instituto de pesquisa Vox Populi e a revista Imprensa fizeram uma eleição e Glória foi apontada a repórter preferida do público, muito à frente dos concorrentes. É tão identificada com o povo que, durante uma cobertura do desfile de Carnaval, foi saudada pelas arquibancadas do Sambódromo com o coro "Glória! Glória! Glória!" Era uma espécie de consagração para uma jornalista que vivia desafiando o perigo ao voar de parapente, saltar de asa-delta, enfrentar intermináveis loopings na montanha-russa do Tivoli Park, no Rio de Janeiro, ou gritar de dor ao ser espetada na frente das câmeras com um piercing na sobrancelha. A única coisa que incomoda a repórter é ser lembrada apenas por momentos como esses. Glória fez muito mais: esteve na Guerra das Malvinas, que opôs Argentina e Grã-Bretanha em 1982. ("Guerra nunca mais, é horrível, muito tenso"), cobriu quatro Copas do Mundo e quatro Olimpíadas, fez reportagens sobre a invasão da embaixada do Japão em Lima, no Peru, em 1996. "Dormia apenas 2 horas e voltava para a frente da embaixada", lembra-se. "Passei o Natal comendo panetone da Cruz Vermelha." E continua enumerando dezenas de trabalhos. A primeira cobertura internacional de sua carreira foi a posse do presidente americano Jimmy Carter, em janeiro de 1977. Dez anos depois, em Israel, Glória passou o maior nervosismo na hora de entrevistar Yitzhak Rabin, ex-primeiro-ministro trabalhista que depois voltaria ao cargo e que foi assassinado em 1995. "Não tinha inglês perfeito", confessa. "Dava para entrevistar artistas, não um político tão importante. Ele percebeu que eu estava nervosa e me ajudou." Nos momentos de maior nervosismo, Glória recorre a uma toalhinha que leva sempre na bolsa. É uma mania. Ela segura discretamente a toalha e, por alguma razão que não sabe explicar, fica mais tranqüila. Bate-boca com o futuro presidente da República Quem conheceu bem seu jeito de ser foi o cinegrafista Júlio César Morais, que a acompanhou durante dezoito anos. Glória exigia sua companhia em todas as reportagens e os dois formaram uma dupla bastante azeitada. As afinidades entre os dois era tão grande que, coincidência, a mulher de Júlio também se chama Glória Maria. Entre as inúmeras loucuras da dupla, em 1986 eles foram para o Deserto do Saara com a idéia de filmar um oásis. Acabaram se perdendo e foram salvos por nômades. Depois de uma viagem à Turquia, na qual percorreram quase 800 quilômetros de carro, Júlio percebeu que não tinha mais o mesmo fôlego da amiga. Pouco depois, deixou a emissora. Perdida no Deserto do Saara junto com o cinegrafista: a salvação veio com os nômades A incansável Glória cobriu política por muitos anos e se lembra de uma história com aquele que acabaria se tornando seu maior desafeto: o ex-presidente João Figueiredo. Durante uma entrevista coletiva, em 1978, o então candidato à Presidência disse: "É para abrir mesmo. Quem não quiser que abra, eu prendo e arrebento". A fita do equipamento da câmera da Globo terminou justamente nesse instante e não pegou a célebre frase. Glória resolveu pedir ao general que a repetisse. Para quê? Seguiu-se o maior bate-boca, devidamente documentado e levado ao ar. As relações entre os dois ficaram estremecidas. Glória diz que Figueiredo dava ordens para a segurança do Palácio do Planalto "ficar de olho na crioulinha da Globo". Romance com Julio Iglesias? "Somos amigos" Outras personalidades, no entanto, são apaixonadas pelo estilo de Glória. Roberto Carlos fez questão de ser entrevistado por ela no seu especial de 50 anos. "No tempo da Jovem Guarda, Glória era fã de Roberto", diz Jeaneth Medeiros, amiga dos tempos de escola. "Em 1992, quando demos a primeira entrevista para o Fantástico, eu disse uma palavra errada", conta o cantor romântico Luciano, que faz dupla com seu irmão Zezé di Camargo. "Glória parou a gravação e mandou voltar. Depois da entrevista, me deu dicas para cuidar de minha imagem. Sou eternamente grato a ela." Depois da reportagem em Estocolmo, os dois saíram com Glória para jantar e dançar. Luciano ficou impressionado com o apetite da repórter por frutas no café da manhã e com sua disposição para trabalhar. "O Zezé comentou que gostaria de conhecer o estádio em que o Brasil foi campeão mundial de futebol pela primeira vez", narra Luciano. "No dia seguinte, estávamos lá fazendo urna outra matéria." Fora do meio artístico, Glória também tem amizade com Roberto Irineu Marinho, vice-presidente da emissora. Tanto que, em seus aniversários, ela costuma receber telefonemas de felicitação de alguém da família. "Glória é muito profissional e nunca tirou proveito dessa amizade", afirma um diretor global. "Estou na Globo há muito tempo e conheço todo mundo", conta Glória, secamente, sobre a amizade com o patrão. "Sou de uma época em que todas as pessoas tinham mais acesso umas às outras." Glória não é de badalação. Raramente sai em colunas sociais. Pouco se sabe de sua vida particular. Mesmo assim, ela acabou sendo alvo de uma grande bomba em 1984. Espalhou-se pelo país a notícia de que, pouco antes da posse de Tancredo Neves — que jamais aconteceria —, ela estava entrevistando o presidente na entrada da Catedral de Brasília. Os dois teriam sido baleados. Por coincidência, Glória estava fora de cena, em uma de suas viagens pelo exterior. O boato ganhou repercussão internacional. Mesmo ao voltar, ela não foi poupada do tititi. "Diziam que eu só podia aparecer da cintura para cima porque o tiro atingiu a perna", conta. "Até hoje, motoristas de táxi me perguntam sobre isso." Mais recentemente, falou-se que ela e Julio Iglesias teriam vivido um pequeno romance. Ela jura que é tudo mentira. "Somos amigos, trocamos confidências", diz. "Julio é uma pessoa adorável, um homem encantador. Faz aquele tipo sedutor com todas as mulheres." Em 1996, Glória Maria foi escalada para entrevistar o cantor a respeito do lançamento do CD Tango. Ao saber quem era a repórter, o cantor-galã espanhol Julio enviou seu jatinho particular de Miami ao Rio de Janeiro para apanhar a equipe do Fantástico. "Glória é uma pessoa envolvente", elogia Ricardo Silveira, gerente nacional de TV da gravadora Sony. "Ela arranca declarações de artistas que não se abrem com ninguém mais. Com muita habilidade, conseguiu convencer o Julio a mostrar pela primeira vez o seu quarto e o seu guarda-roupa." Topless em Búzios e férias em lbiza Por ser negra, Glória acha que desperta mais atenção em artistas internacionais. Durante uma entrevista com o cantor porto-riquenho Ricky Martin, rolou até um certo jogo de charme ("Qual é a mulher que não gosta?"). Glória também não aguentou de emoção quando ganhou um beijo do superastro Michael Jackson durante as gravações de um videoclipe numa favela do Rio de Janeiro. "Fui a única repórter que subiu o morro", conta. "Michael Jackson foi de helicóptero e eu demorei quase 1 hora para chegar lá a pé. Quando me viu, ele disse que iria fazer uma declaração de amor ao Brasil. Depois me agarrou e me deu um beijo. Fiz cara de surpresa. Afinal, diziam que ele vivia dentro de uma bolha e eu estava toda suada e suja. Michael foi da maior simplicidade." Durante uma entrevista com o cantor Ricky Martin, rolou um jogo de charme: "Qual é a mulher que não gosta?" Glória já foi casada duas vezes, ambas com estrangeiros. O primeiro casamento, com o engenheiro austríaco Hans Bernhard, durou oito anos. Com Eric Auguin, um francês que tinha uma empresa de importação e exportação, Glória viveu entre 1985 e 1991. Nessa época, era assídua freqüentadora de Búzios, onde tem uma casa. Fazia topless na praia, provocando a queda de muitos queixos. Quando está de férias, seu local preferido é Ibiza, na Espanha (sim, ela também viaja nas férias!), onde pode voltar aos velhos tempos de seios ao léu sem se preocupar com a presença de fãs brasileiros. Antes dos dois casamentos, Glória foi noiva de um rapaz chamado Walter Azevedo, que fazia o CPOR no Rio Grande do Sul e morreu num acidente de carro ao voltar para o Rio de Janeiro. Foi um grande choque. Sobre os namorados atuais, Glória desconversa. Sua única paixão, despista, atende pelo nome de "Kiko". É um cachorro da raça esquimó-americano que ela ganhou de um casal que foi entrevistar em Miami. Kiko foi autorizado pelo comandante do vôo a vir no seu colo, e não no compartimento de carga. Vantagem de quem viaja muito e é amiga dos tripulantes. Várias vezes, por sinal, Glória foi convidada a ocupar lugares melhores no vôo, incluindo a primeira classe. Disposição de estagiária e salário de 20.000 reais Glória Maria também chama atenção por sua elegância, que diz ter herdado do pai, Cosme, alfaiate já falecido. Na infância, nunca comprou roupas em lojas. A mãe, Edna, desenhava e os modelos eram feitos na alfaiataria. Hoje segue um padrão clássico, sóbrio e elegante. Traz alguns modelos exclusivos de suas viagens. Gosta de ter, como ela mesma diz, um "look especial". Pegue-se como exemplo o Carnaval, quando todos os repórteres globais são obrigados a usar a mesma camiseta. Nessas situações, Glória apanha uma tesoura e dá o seu toque. As roupas que usa no Fantástico, no entanto, não são dela. A produção do programa seleciona três ou quatro peças e ela decide a que será utilizada. Glória conta que abandonou também o hábito de ficar comprando lembrancinhas nas viagens. Traz poucas coisas, todas muito especiais. Como tapetes da Turquia e do Marrocos. Na Índia, encontrou exemplares do milenar manual da arte de amar Kama Sutra, desenhados a bico-de-pena, em bazares de beira de estrada. Tem duas mesas com cristais de vários países, que revelam o que chama de seu forte lado místico. Eles estão juntos de estatuetas de duendes que trouxe da Noruega, um dos países que mais gostou de conhecer, seguido da África do Sul e da Turquia. Foi deste último que veio o narguilé que ocupa um lugar de destaque no seu apartamento de quatro dormitórios no Leblon, a duas quadras da praia. O cachimbo usado pelos turcos traz a recordação de que Glória fumou durante quase vinte anos. Chegava a fumar três maços por dia. Desistiu dos cigarros, mas não conseguiu se livrar do hábito de roer as unhas. Glória guarda vinte cadernos com as anotações que faz de cada viagem. Tem uma coleção de quarenta fitas com o material bruto das principais reportagens. "O que vai ao ar é apenas um centésimo do que apuro", conta. Ela pretende escrever um livro com essas experiências quando deixar a televisão. Nunca leva máquina fotográfica, mas tem dez álbuns com fotos das viagens tiradas por seus companheiros. De tanto viver no ar, Glória pegou gosto e aprendeu a pilotar helicóptero. Mas, ironia, não dirige em terra. Para se locomover em sua perua Tempra, conta com um motorista. O atual, Francis, está com ela há dois anos. "Sou muito desligada", explica. Desligada, só se for fora do trabalho. Na Globo, onde seu salário é estimado em 20.000 reais mensais, todos dizem que ela tem a mesma disposição dos tempos de estagiária. Glória trabalhava como telefonista da Embratel para pagar a faculdade de Jornalismo. Sua melhor amiga, Tânia Ignatiuk Alves, trabalhava no departamento de jornalismo, mas não conseguia se adaptar ao lugar. As duas estudaram juntas, freqüentaram uma a casa da outra, eram inseparáveis. "Nos tempos de escola, ela namorava dois, três ao mesmo tempo", entrega Tânia. "Eu era obrigada a ficar driblando os apaixonados." Quando resolveu mudar de área, Tânia indicou Glória ao seu chefe. Foi um casamento perfeito. Glória se transformou numa repórter de sucesso e está conquistando cada vez mais prestígio como apresentadora. Tânia também está feliz. Hoje é secretária executiva da gravadora Som Livre, o braço musical da Globo. Tânia está atualmente com 48 anos. ILUSTRAÇÕES MONTALVO Publicado em abril de 1999, ed. 285. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • N.º 497 DEZEMBRO 2017: AS COELHINHAS

    ENTREVISTAS ENTREVISTÃO REGINA NAVARRO LINS 20P SIMONE E SIMARIA ENSAIOS NOSSAS COELHINHAS A melhor invenção de Hugh Hefner THAYSE SOUZA Ahhh, o verão RENATA BERTOLINO Mudanças e descobertas MAIS MQA Kell Smith COELHINHA MousseArte INSIDERS O lindo e o estranho de Tóquio DIFERENÇA CORPORATIVA A gestora do bem ENTRELINHAS Mauro Holzmann e José Roberto Marques EMPREGO As reformas de Temer PORTFÓLIO Fábio Setti CONTO ERÓTICO Festa sem fim

  • N.º 497 DEZEMBRO 2017: HUGH HEFNER

    ENTREVISTAS ENTREVISTÃO REGINA NAVARRO LINS 20P SIMONE E SIMARIA ENSAIOS NOSSAS COELHINHAS A melhor invenção de Hugh Hefner THAYSE SOUZA Ahhh, o verão RENATA BERTOLINO Mudanças e descobertas MAIS MQA Kell Smith COELHINHA MousseArte INSIDERS O lindo e o estranho de Tóquio DIFERENÇA CORPORATIVA A gestora do bem ENTRELINHAS Mauro Holzmann e José Roberto Marques EMPREGO As reformas de Temer PORTFÓLIO Fábio Setti CONTO ERÓTICO Festa sem fim

  • N.º 496 SETEMBRO/OUTUBRO/NOVEMBRO 2017: ARIANA MARTINS

    ENTREVISTAS ENTREVISTÃO WALTER CASAGRANDE 20P MÔNICA MARTELLI (Ver a entrevista) ENSAIOS JUJU SALIMENI Por André Schiliró LELLY E GI Sem maldade BRITT LINN Sexy ARIANA MARTINS É primavera MAIS MQA Carla Diaz: ela cresceu (Ver a matéria) INSIDERS Teatros pelo mundo TRABALHO Marlos Melek: o juiz é pop DIFERENÇA CORPORATIVA O gestor do cooperativismo COELHINHA Alpino CONTO ERÓTICO Você também quer? SEXO Como transam os jovens que querem salvar o mundo ENTRELINHAS Paulo André e José Roberto Marques PORTFÓLIO João Guilger

bottom of page